domingo, 24 de abril de 2011

No Peru, um aparente paradoxo :: Sergio Fausto

Mario Vargas Llosa deu tom dramático ao resultado do primeiro turno das eleições presidenciais no Peru, disputado há duas semanas. No segundo turno, que ocorrerá em 5 de junho, "a escolha será entre o câncer e a aids".

Exageros à parte, os dois candidatos vencedores têm mesmo biografias políticas controversas, para dizer o menos. Ollanta Humala, que obteve pouco mais de 30% dos votos, é um ex-tenente-coronel do Exército que em 2000 liderou um mal explicado levante militar. Seu irmão, hoje preso, foi protagonista de outra "quartelada", cinco anos mais tarde. Em 2006, Humala venceu o primeiro turno das eleições presidenciais e perdeu o segundo por margem pequena, com o apoio de Hugo Chávez e uma plataforma ultranacionalista. Keiko Fujimori, com 23% dos votos no primeiro turno, é filha e herdeira política de Alberto Fujimori. Na presidência, entre 1990 e 2000, seu pai ganhou fama por estabilizar a economia e derrotar a guerrilha, mas também por atropelar a democracia, desrespeitar os direitos humanos, corromper e se deixar corromper. Hoje está na cadeia, para cumprir uma sentença de 25 anos, a não ser que venha a ser indultado por sua filha, se eleita presidente.

Mais do que adjetivar, cabe entender os resultados das eleições peruanas. Produtor competitivo de commodities, em especial minérios, com as contas públicas arrumadas e um ambiente de negócios favorável ao investimento direto estrangeiro, o Peru tem-se beneficiado grandemente do apetite insaciável da China por esses produtos. É isso que puxou a aceleração do crescimento, de uma média de 5%, entre 2000 e 2005, para mais de 7%, na média nos últimos cinco anos.

Como explicar que o eleitorado peruano, vivendo numa economia com crescimento "exuberante", dê a maioria dos votos a candidatos que representam sinais (não idênticos) de insatisfação com a situação do país?

Primeiro, é preciso lembrar que até recentemente, apesar da exuberância do crescimento, o Peru apenas havia recuperado a riqueza perdida no período do grande declínio econômico, entre 1979 e 1993. Em trabalho publicado pelo BID, os economistas Ricardo Hausmann e Bailey Klinger mostram que em 2005 a renda per capita peruana ainda era menor do que a verificada no início daquele período.

Segundo, os benefícios do crescimento recente distribuem-se de maneira muito desequilibrada. Na região costeira, em geral, e em Lima, em particular, o porcentual de pobres se reduziu. Já na região serrana, ele se manteve praticamente inalterado, em níveis superiores a 60% da população. Não por acaso, foi nelas que Humala colheu as suas votações mais expressivas, embora tenha sido bem votado também nos bairros populares da periferia da capital (ali só perdendo para Keiko Fujimori).

A dificuldade de distribuir melhor os frutos do crescimento tem várias causas. De um lado está a estrutura da economia, que pouco mudou, a despeito do crescimento. Seus setores mais dinâmicos empregam pouca mão de obra. Segundo o ministro de Energia e Minas, o PIB do setor mineral cresceu duas vezes mais do que o PIB nacional nas duas últimas décadas. O setor responde, no entanto, por menos de 1% dos empregos diretos criados no país e por uma fração reduzida dos empregos indiretos. O mesmo se aplica ao setor de petróleo e gás. Isso dá uma indicação de por que o Peru continua a ter, apesar do exuberante crescimento dos últimos anos, uma das mais altas taxas de informalidade no mercado de trabalho em toda a América Latina.

Outra dificuldade para melhor disseminar os frutos do crescimento está na debilidade do Estado peruano. A carga tributária é relativamente baixa (menos de 20% do PIB) e o gasto social está entre os menores da região (8% do PIB, no governo central, conforme o Panorama Social da América Latina, 2010, produzido pela Cepal).

A análise da "realidade objetiva", porém, não explica tudo. Importa também - e muito - o desempenho dos candidatos. Sob esse aspecto decisivo, Humala sobressaiu-se. De um lado, dissociou-se de Chávez, fantasma que o derrotou em 2006. Apresentou-se como candidato do diálogo político e da pacificação social. Fez juras à liberdade de imprensa e ao dispositivo da Constituição que proíbe a reeleição. De outro, crítico do status quo, conseguiu de alguma forma renovar "velhos temas" da esquerda peruana - o caráter social e geograficamente "excludente" e "colonizado" do modelo primário-exportador - à luz de uma "nova agenda", voltada para os mais jovens e o futuro, com ênfase em temas como educação, democratização da internet, inovação e criação de empregos formais. Nacionalista, não adotou retórica antiamericana ou antiglobalização, tal como hoje se escuta na Venezuela e na Bolívia.

Em que pese o sucesso eleitoral, a fórmula encontrada é cheia de zonas cinzentas e ambiguidades. O programa de Humala prega uma nova Constituição para transformar o Estado, flertando com a ideia de "refundação" do país. Difícil coadunar essa ideia com a promessa de estabilidade. No programa, leem-se coisas variadas sobre a "nacionalización de la economía", expressão reiterada, que ora parece sinônimo de fortalecimento do mercado interno e maior regulação sobre os setores de infraestrutura e recursos naturais, ora aponta obliquamente para a possibilidade de estatização de empresas estrangeiras, dominantes no setor mineral e petrolífero.

O risco é que, se eleito, diante das dificuldades ao longo do caminho, Humala tome o atalho da expropriação e do distributivismo, em nome do povo e da nação. Nesse caso, será uma volta ao passado, e não um passo na direção de um outro futuro possível. Vale lembrar que o colapso da economia peruana começou com as expropriações de terras e empresas promovidas na presidência do general Velasco Alvarado (1968-1975), a quem Ollanta já se referiu como uma de suas principais inspirações políticas.

Diretor Executivo do IFHC, é membro do GACINT-USP

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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