sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Democracia sob o sol a pino:: Maria Cristina Fernandes

No papel do artista mambembe Lorde Cigano, da caravana Rolidei, José Wilker monta seu picadeiro no sertão e anuncia que realizaria o sonho de todos os brasileiros. Uma chuva de flocos de algodão cai sobre a maravilhada plateia enquanto Cigano declara: "Agora, como em todo país civilizado, o Brasil também tem neve".

A cena é de "Bye Bye Brasil", de Cacá Diegues. O filme é de 1979, ano em que o Brasil iniciava o último governo da ditadura com desarranjos que levavam parte dos militares e dos civis a acreditar que o vaticínio de Samuel Huntington, se comprovaria.

Conselheiro do governo Médici, o futuro autor de "O Choque das Civilizações" (1997), Huntington advertiu-o de que o relaxamento de controles provocaria uma explosão de demandas sobre as quais o regime não teria controle.

Venceu a tese da abertura gradual, mas a crise econômica que presidiria o governo João Figueiredo e as tensões que marcaram a transição para o governo Sarney deram, até a bomba do Riocentro, sobrevida aos partidários da linha dura.

A lógica ianque, que descria nas chances da democratização brasileira pela ausência de instituições tão desenvolvidas quanto as dos ricos, também influenciaria a visão tupiniquim de que a saída para fazer nevar passa pela cópia de suas instituições. Essa visão alimentou o debate político ao longo dos últimos 30 anos e, ainda hoje, a cada leva de iniciativas reformistas, volta ao asfalto em botas de couro sob o sol a pino.

Seus proponentes, adeptos do voto em lista, distrital, distritão ou bambalalão são movidos pelo desejo de reduzir a competição na política. Não é à toa que as propostas sempre apareçam depois de eleições. Os sobreviventes temem não ter uma nova oportunidade de sobreviver à arena eleitoral. A plateia adere por inércia e sob a ilusão de que um novo sistema eleitoral funcione com pega-ladrão e faça nevar.

Aos reformistas da hora somem-se os analistas, cada vez mais frequentes desde a crise financeira internacional, que levantam preocupações com a possibilidade de os países emergentes terem um peso maior na ordem mundial.

No Valor de ontem, Dani Rodrik, professor de Economia Política em Harvard, foi buscar em Huntington os fundamentos para seu argumento de que o crescimento econômico não apenas é insuficiente para a estabilidade política como pode multiplicar as demandas e provocar mudanças que chamou de devastadoras.

Em outro artigo no Valor (11/10/2010), Rodrik já demonstrara que seu foco vai além dos manifestantes da praça Tahir. Neste texto exibiu sua descrença na estabilidade de uma ordem global em que Brasil, China, Índia e África do Sul tenham maior preponderância. São países que, segundo argumentou, mostraram, até agora, pouco interesse em contribuir para a construção de regimes globais: "Se o centro de gravidade da economia mundial mudar substancialmente para o lado dos países em desenvolvimento, o processo não será suave - e possivelmente nem mesmo benigno".

Professora da USP e organizadora da conferência internacional que, na próxima semana, sob os auspícios da Associação Internacional de Ciência Política e sua congênere nacional, a ABCP, debaterá em São Paulo as mudanças nas relações entre os hemisférios Norte e Sul, Marta Arretche diz que essas análises movem-se como o sarrafo do salto em altura. Imprensa livre, eleições limpas e Judiciário independente já não bastam. Agora os movimentos sociais também têm que estar sob controle.

"Países em desenvolvimento foram condenados pela teoria à incapacidade crônica de incorporar social e politicamente seus cidadãos e agora estão desafiando esse postulado", diz Marta, citando Adam Przeworski, pioneiro na desconstrução da teoria de que a democracia só sobrevive sob a neve.

Há imperfeições em toda parte, diz, mas ninguém acredita que a democracia americana esteja em risco porque um juiz da Flórida indeferiu um pedido de recontagem de votos que deu vitória a George W. Bush sobre Al Gore. Tampouco há sinais de descontrole num país em que um jovem, insuflado à violência pelo ultrarreacionarismo do Tea Party, atira numa deputada do Partido Democrata que votou pela reforma da saúde. E, finalmente, não se manifestam dúvidas de que a governança mundial está segura sob a liderança de um país em que o medo do perigoso comunista Barack Obama inflacionou a venda de armas.

A xenofobia tem inspirado política de governos e a eleição de parlamentares em toda a Europa e, nem por isso, alardeia-se déficit democrático no continente. É o superávit de neve que parece equilibrar essa balança institucional.

Um dos convidados da conferência, Peter A. Gourevitch, da Universidade da Califórnia, não vê modelos a serem transplantados aos países em desenvolvimento. Otimista em relação ao esforço regulatório das finanças mundiais, Gourevitch diz que a economia americana recupera-se numa esfera marcada pela consolidação do multilateralismo.

Em artigo publicado no ano passado ("The Politics of Stock Market Development", Review of International Political Economy) Gourevitch analisou o desempenho das bolsas de valores de 82 países entre 1975 e 2004 e constatou que aqueles governados por coalizões de centro-esquerda promoveram políticas de transparência e proteção aos acionistas mais atraentes ao investidor do que aqueles presididos por alianças orientadas à direita. O artigo cita o Brasil governado pelo PT.

A numeralha de Gourevitch engrossa a percepção de que se a democracia sobreviveu num país sem neve ao longo dos últimos 26 anos é porque a maioria levou vantagem.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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