quinta-feira, 8 de abril de 2010

Reflexão do dia – Fernando Henrique Cardoso

Passados 25 anos, nos encontramos frente a circunstâncias históricas que novamente requerem grandeza dos líderes e unidade de todos. Não está em jogo o admirar ou não o presidente Lula, nem mesmo as qualidades de liderança (ou a falta delas) de sua candidata Dilma Rousseff. Por trás das duas candidaturas polares há um embate maior. A tendência que vem marcando os últimos 18 meses do atual governo nos levará, pouco a pouco, para um modelo de sociedade que se baseia na predominância de uma forma de capitalismo na qual governo e algumas grandes corporações, especialmente públicas, unem-se sob a tutela de uma burocracia permeada por interesses corporativos e partidários. Especialmente de um partido cujo programa recente se descola da tradição democrática brasileira para dizer o mínimo. Cada vez mais nos aproximamos de uma forma de organização política inspirada num capitalismo com forte influência burocrática e predomínio de um partido. Tudo sob uma liderança habilidosa que ajeita interesses contraditórios e camufla a reorganização política que se está esboçando.


(Fernando Henrique Cardoso, no artigo Hora de união, domingo, em o Globo)

Trair e coçar... :: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

Caminhamos para ter uma eleição para presidente da República não apenas muito disputada, como também com um dos maiores graus de traições políticas já registrados nos últimos tempos. A candidata oficial, Dilma Rousseff, já deu mostras de que não dá muita bola para lealdades políticas, a não ser, é claro, a seu criador, o presidente Lula. Mais espantoso do que a homenagem que prestou a Tancredo Neves ontem em São João Del Rei foi a aceitação pública do voto PT-PSDB em Minas.

Assim como nas eleições de 2002 e 2006 houve por lá o voto Lulécio, que elegeu Lula presidente e Aécio Neves governador, querem repetir a dose com o voto Dilmasia, com a candidata oficial aliada ao candidato do PSDB ao governo, Antonio Anastasia.

Dilma chegou a fazer a gentileza de dizer que preferia que essa modalidade de voto fosse conhecida como Anastadilma, colocando na frente o candidato tucano. Quem não deve ter gostado muito da brincadeira é o candidato do PMDB, Hélio Costa, que aguarda o apoio do PT.

Há um vasto terreno nos dois partidos para a "cristianização" de seus candidatos. O termo, segundo o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da Fundação Getulio Vargas, define a "traição de um partido político a seu candidato a cargo eletivo".

Passou a ser usado a partir de 1951, depois que o PSD, tendo indicado Cristiano Machado candidato à Presidência, apoiou na verdade a candidatura de Getulio Vargas.

Nas eleições de 1950, Vargas ganhou com cerca de 48% dos votos, contra 29% do segundo colocado, o udenista Eduardo Gomes. Cristiano Machado acabou em terceiro, com 21%.

Outro detalhe importante é que o desempenho geral do PSD foi muito melhor que o de seu candidato à Presidência em vários estados, inclusive nas Minas Gerais de Cristiano Machado.

Por esse critério, Serra foi "cristianizado" por Aécio em 2002 e Alckmin em 2006 com a candidatura Lulécio, que Dilma quer repetir agora.

Ao mesmo tempo em que se oferece para uma dobradinha com o partido de Aécio, jogando para o lado tanto o PT quanto o PMDB mineiros, a ex-ministra Dilma Rousseff tenta unir sua imagem também à de Tancredo Neves, avô de Aécio, e que representa integralmente a mais nobre tradição da política mineira.

Uma homenagem tão estapafúrdia que deve ter provocado náuseas nos que acompanharam a trajetória do presidente que morreu antes de tomar posse.

O partido que Dilma representa hoje não apenas recusou-se a votar em Tancredo no Colégio Eleitoral como expulsou três deputados federais que, tendo visão política menos imediatista, se recusaram a seguir a orientação partidária e deram seus votos para a eleição do primeiro presidente civil de oposição no regime militar.

O mais surpreendente é que o gesto eleitoreiro tenha partido da mesma pessoa que, dias antes, acusara o candidato oposicionista de ser um lobo em pele de cordeiro por não atacar o presidente Lula diretamente.

Dificilmente existirá atitude mais dissimulada do que essa de homenagear um líder político 25 anos depois, no momento em que seu estado é fundamental para o resultado da eleição, sem ao menos uma explicação, muito menos autocrítica.

A mesma atitude dúbia ela tomou no Rio de Janeiro ao afagar Garotinho, o candidato do PR ao governo, para desilusão do governador Sérgio Cabral, do PMDB, que se considera o candidato oficial de Lula.

A relação de Cabral com Dilma não anda boa desde a crise dos royalties do petróleo, cujo cerne está no projeto do novo marco regulatório para exploração do pré-sal, organizado pela então chefe da Casa Civil.

Para Sérgio Cabral, é mais fácil brigar com Dilma do que com o presidente, e por isso ele já andou dando um recado para a candidata oficial de que nem mesmo sua mulher votaria nela caso prevalecesse a disposição de mudar a distribuição dos royalties.

Uma disputa presidencial apertada como se avizinha valorizará cada adesão que um dos lados conseguir. Assim como pode haver o voto Dilmasia ou Anastadilma em Minas, pode haver um voto suprapartidário no Rio que una o tucano José Serra e o governador Sérgio Cabral. Já existem até comitês nesse sentido sendo montados no estado.

Há ainda a situação do ex-prefeito Cesar Maia, rejeitado pelo PSDB e PV locais, que já se aproximou do ex-governador Garotinho e pode perfeitamente ajudar Dilma no interior.

Em vários outros estados a relação do PT com o PMDB está dando margem a negociações paralelas, que vingarão ou não na medida em que as pesquisas eleitorais mostrarem para que lado o vento está soprando.

Também o PSDB tem problemas, e não apenas no Rio. Um estado emblemático é o Ceará do senador Tasso Jereissati, um dos principais líderes tucanos.

Ele é candidato ao Senado em uma aliança branca com o governador Cid Gomes, do PSB, que tenta fazer com que o partido lance seu irmão, o deputado Ciro Gomes, como candidato a presidente da República.

No Rio Grande do Sul, a governadora Yeda Crusius insiste em tentar a reeleição apesar das crise política em que se viu envolvida, mas a direção do partido gostaria de uma aliança com o PMDB do ex-prefeito de Porto Alegre José Fogaça.

Há, como se vê, um vasto terreno para traições de todos os matizes, até mesmo a do próprio PMDB, que, tudo indica, formalizará seu apoio à candidatura Dilma na convenção de junho, mas não lhe dará apoio integral, ficando de fora do acordo seções importantes do partido como algumas do Sul e Sudeste do país.

Isso se, até lá, a disputa continuar emparelhada, com Dilma mostrando ser competitiva. Se a "boca do jacaré" voltar a se abrir, ampliando a diferença a favor de Serra, até mesmo o "amor verdadeiro" do PMDB poderá desaparecer.

Se, ao contrário, a "boca do jacaré" se fechar cada vez mais, será o candidato tucano que será abandonado pelo meio do caminho.

Com ar de moço bom:: Dora Kramer

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Nos últimos dias o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem tido um comportamento diferente do habitual. Pediu aos ministros que tenham cuidado no cumprimento da lei eleitoral, alertou ao filho que pegue leve nos comentários homofóbicos no Twitter e criticou o uso da máquina pública em campanha eleitoral.

Movimentos puramente táticos? Pode até ser, mas de todo modo é a primeira vez que o presidente defende em público uma boa causa. Em geral, ele costuma criticar as leis, os controles, proteger gente envolvida em escândalos de corrupção, levar os amigos do filho para passear no avião oficial.

Recentemente debochou da Justiça Eleitoral e até então advogava o direito de atuar livremente em prol de sua candidata a presidente da República, Dilma Rousseff.

Seja qual for a motivação do presidente Lula, o resultado imediato é positivo. O histórico não lhe confere credibilidade, mas tampouco autoriza que se lhe subtraia um crédito de confiança por antecipação.

Muito melhor que ele discorde das multas impostas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nos termos ditos numa entrevista à rádio Tupi do que naquela forma de desqualificação pública da Justiça praticamente fazendo leilão das multas para divertir plateias e deformar o foco da questão: a transgressão de uma lei.

Na entrevista à rádio Lula disse que a multa deveria ter sido aplicada à emissora que focalizou o rosto da então ministra Dilma quando ele falou em eleições. Esqueceu-se de que a penalidade foi aplicada ao presidente justamente porque a emissora em questão era a TV Brasil o que, no entendimento do tribunal, caracterizava uso da máquina pública.

Mas a discordância do presidente, e este é o ponto em análise, deu-se de maneira respeitosa.

Como deve ser, mas de forma diferente do que vinha sendo feito.

"Acho que o Poder Judiciário tem um papel importante na garantia da democracia deste País e, obviamente se ele entender que eu sou culpado de alguma coisa, como qualquer ser humano comum, tenho que pagar pelo erro que cometi."

Tanta mansidão e correção de procedimentos coincide com uma inflexão no sentido oposto por parte da candidata Dilma Rousseff, mais agressiva no uso e na busca de expressões - "lobos em pele de cordeiro" - que possam marcar o adversário junto ao eleitorado.

Talvez isso signifique o velho truque em que um morde enquanto o outro assopra o adversário e depois os papéis vão se alternando até que se consolidem os perfis.

Na largada, Lula assumiu o magistrado republicano, deixando para Dilma o papel da belicosa defensora de seu legado.

Devido lugar. Em boa hora o PSDB desistiu de esconder o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, agora incluído na lista de oradores da cerimônia de lançamento da candidatura de José Serra à presidência da República.

Não se trata de fazer de FH um cabo eleitoral de luxo ou de jogá-lo na arena para duelar com Lula. Este seria um embate do passado.

É só uma questão de lidar de maneira adequada com a própria trajetória, com os fatos e personagens que dão sentido ao projeto de governo que o partido apresentará para tentar voltar à presidência da República.

No painel. Um trecho da entrevista de Aécio Neves à revista Veja, talvez explique sua resistência em ser vice na chapa presidencial. Diz ele: "Não se vota em candidato a vice-presidente".

De fato, como senador, Aécio teria patrimônio eleitoral próprio. Medido e comprovado.

Chuvas. Note-se, tanto no Rio, agora, quanto em São Paulo no início do ano, que não estamos diante de fenômenos gigantescos da natureza.

Não se trata de ciclones, tsunamis, terremotos, nada disso. São chuvas fortes, em proporções além das previstas, mas que necessariamente não teriam de se transformar em tragédias do cotidiano se a precaução fosse política pública prioritária.

Uma dupla perdida nas contradições::Villas-Bôas Corrêa

DEU NO JORNAL DO BRASIL

O presidente Lula e sua candidata, a ex-ministra Dilma Rousseff, habituaram-se a atuar em dupla, não apenas nas visitas as obras do Programa de Aceleração do Crescimento o PAC, que até já gerou filhote, o PAC 2 - e do Minha Casa, Minha Vida para a construção de 1 milhão de residências populares até a eleição de 3 de outubro próximo, como nos ensaios de campanha eleitoral, com o apelido de fiscalização do andamento do parque florido do maior governo de todos os tempos desde a descoberta do Brasil.

Pela primeira vez nesta pré-campanha tão precariamente estruturada, até posa para as fotos da imprensa e para as câmeras de televisão. Mas a dupla se desfez rio fim de semana, com o presidente no Rio para as entrevistas de horas à Rádio Tupi e TV Bandeirantes e a candidata enfrentando o teste da campanha solo, em visita ao chão mineiro de Ouro Preto e São João Del Rei, a terra do falecido presidente Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse.

Pois ambos se deram muito mal na experiência, embora nem sempre acertem em dupla. Lula ainda resmunga para não pagar as duas multas que totalizam R$ 15 mil, aplicadas pelo Superior Tribunal Eleitoral (STE). Ora, em mais de sete anos dos dois mandatos habituou-se a não pagar nada, pois são justas e fartas as mordomias presidenciais.

No caso, seria muito menos desgastante pagar as multas sem alarde, como faz todo mundo, do que se expor às constrangedoras contradições. Voltou a negar, contra a mais clara evidência, que tenha feito campanha antecipada da candidatura de Dilma. E, na forma do criticável costume, responsabilizo as redes de TV que editaram as imagens ao comentarem as punições que ameaçam o seu bolso. Conformado, afirmou que pagará a multa se a Justiça entender que cometeu o lamentável erro.

O desempenho da candidata Dilma Rousseff deve estar preocupando seriamente o presidente Lula e a turma que marca passo no cordão que cada vez aumenta mais. A pré-candidata falou pelos cotovelos. Além do improviso na Câmara Municipal de Ouro Preto, atendeu aos jornalistas e conversou com os membros da sua comitiva.

Na toada dos desmentidos negou que vá usar a tática do "bateu, levou". Mas, no galeio da contradição, atacou com aspereza a oposição. Os que se calam são hipócritas que não querem bater de frente com a popularidade do presidente Lula. E no recado direto advertiu a oposição que ela, e somente ela, representa a continuação do governo Lula. Muitos mudaram o discurso nos últimos dias - continuou sem dar exemplos, mas prolongando a explicação são lobos na pele de cordeiro". A candidata é exigente do seu reconhecimento como a única candidata que representa o presidente Lula.

A candidata Dilma ainda não aprendeu a toada de campanha. Repetir como realejo que é candidata do presidente Lula é chover na inundação que castigou o Rio, Niterói e várias cidades fluminenses em dois dias em que não se viu nem o presidente Lula, a candidata Dilma ou os figurões do primeiro time ao lado das autoridades estaduais e municipais.

Tragédia não dá voto. E, como no caso, pode tirar muitos.

Historia do Brasil / Lamartino Babo

Nem demônio, nem anjo, mas ator social:: Maria Inês Nassif

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A técnica de discurso doutrinário, particularmente usada em situações históricas onde grupos de poder precisam de forte respaldo popular para seus projetos próprios, centra-se na repetição de "verdades" - verdades mesmo, verdades aumentadas ou simplesmente mentiras - que respaldem ideologicamente não apenas esses setores, mas convençam a um maior número de pessoas de que são verdades únicas, contra as quais não existe argumento racional. Essas verdades têm que ser apresentadas como dogmas, sob pena de não parecerem "a" verdade. Isso é muito usado eleitoralmente, mas não apenas nesses momentos em que o convencimento de parcelas majoritárias da população pode se converter em votos que respaldarão democraticamente um projeto de poder. Ela se incorpora à própria vida social quando o que está em jogo é uma disputa pela hegemonia.

O livro "Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil", organizado por Miguel Carter - mexicano criado no Paraguai - professor da School of International Service da American University, em Washington DC, coloca em perspectiva o senso comum criado em torno do MST. Primeiramente, ele propõe que se deixe de lado dois exageros: da direita, que, no limite, equipara o movimento pela reforma agrária ao terrorismo; e o de esquerda, que o romantiza, superestimando a sua influência. Na introdução ao livro, que traz 16 artigos de autores variados, Carter relativiza uma e outra posição. O MST é um movimento complexo e duradouro, mas é uma "associação de pessoas pobres", "opera com recursos limitados" e é susceptível a problemas de ação coletiva como qualquer outro movimento social. Não agrega mais do que 1% da população, nem chega a 5% da população rural. Não é bandido e não é mocinho: apenas um ator social sujeito a erros, mas que representa setores sociais expostos à miséria e vitimados por uma das piores distribuições de renda do mundo.

O MST tem dois grandes méritos históricos, segundo o autor: o de expor e desafiar enormes desigualdades de renda e fundiária do Brasil, internamente; e, externamente, de ter recolocado na agenda internacional a reforma agrária, depois da hibernação do tema no período pós-anos 80, quando a forte urbanização do Terceiro Mundo, o avanço tecnológico agrícola e a ascensão do neoliberalismo começaram a questionar fortemente a reforma agrária como política pública. E a forte reação interna de determinados setores sociais ao movimento responde muito mais ao que o MST expõe - um país com uma imensa concentração de renda e fundiária - do que propriamente pelo risco "revolucionário" que representa.

O movimento, de fato, tem um elevado grau de sofisticação de organização popular, registra Carter: estima-se "1,14 milhão de membros, mais de 2 mil assentamentos agrícolas, cerca de 1.800 escolas primárias e secundárias e uma escola de ensino superior, vários meios de comunicação, 161 cooperativas rurais e 140 agroindústrias". Entre 1985 e 2006, conseguiu assentar seus integrantes em 3,7 milhões de hectares. Mas, embora o mais visível e organizado movimento pela reforma agrária - até 2006, tinha mais de um quarto dos 7.611 assentamentos do país -, não mantém a mesma proporção de participação na terra distribuída pelos governos. Segundo o organizador do livro, mais de 90% da terra distribuída entre 1979 e 2006 responderam a reivindicações de outros movimentos de sem-terras.

O outro mito seria o de negação do Estado pelo MST. As reformas agrárias, por definição, "implicam o envolvimento do Estado na reestruturação de relações de direito de propriedade". Sem o Estado, isso só acontece em situações de guerra - mas, mesmo nessas ocasiões, o Estado deve sancionar o resultado da disputa. Também não existe reforma agrária se não houver demanda social por distribuição fundiária. Carter sugere que a execução de reformas agrárias acabem se constituindo numa articulação de impulsos do Estado - que sanciona - e da sociedade - que demanda. No caso do MST, o movimento articula as duas faces da reforma: as marchas e invasões normalmente são apenas um lado da mobilização, que se completa - e concretiza a reforma agrária - com a negociação com o Estado.

Outro dado que relativiza o poder de interferência na vida institucional do país, reproduzido pelo autor, é o de sua representação política, em relação à dos grandes proprietários rurais e do agronegócio. Segundo ele, de 1995 a 2006, a representação política média dos camponeses sem-terra e agricultores familiares foi de um deputado federal por 612 mil famílias. Os grandes proprietários rurais fizeram um deputado federal para cada 236 famílias - tiveram, portanto, uma representação parlamentar 2.587 maior que a dos sem-terra. Essa distorção decorre de uma precariedade de direitos políticos entre os pobres - a negação do direito do voto aos analfabetos até 1985, o clientelismo político, a prática de compra de votos e distorções de representação. O maior acesso dos latifundiários ao poder político resultou em acesso correspondente ao orçamento público: para cada dólar disponibilizado de dinheiro público aos sem-terra, foram liberados US$ 1.587 dólares para os maiores fazendeiros do país.

A realidade que se esconde nas amplificações do "perigo" do MST não é boa para o processo civilizatório brasileiro. Mesmo andando nos governos FHC e Lula - de forma "reativa, restrita e de execução morosa" - , a reforma agrária brasileira é, em termos proporcionais, uma das menores de toda a América Larina. A reforma feita entre 1985 e 2006 situa o Brasil no 15º lugar no Índice de Reforma Agrária da América Latina, dois lugares antes do último colocado. Um por cento dos proprietários rurais controla 45% de todas as terras cultiváveis do país, e 37% dos proprietários rurais possuem apenas 1% dessas terras (números de 2005 do Ipea).

Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras

PT e PMDB mandam ficha limpa para 'geladeira'

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Projeto ainda precisará passar pelo Senado e de sanção de Lula até o fim de maio para valer nas eleições deste ano

Eugênia Lopes, Denise Madueño

BRASÍLIA – Partidos da base aliada do Planalto, comandada pelo PT e PMDB, mandaram para a "geladeira" o projeto de lei que impede a candidatura de políticos com ficha suja. A votação da proposta de iniciativa popular no plenário da Câmara foi adiada para a primeira semana de maio.

Além do PT e do PMDB, PR, PTB e PP negaram-se a pedir a urgência para o projeto, obrigando sua análise pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Essa mesma coleção de partidos, por outro lado, chancelou a urgência para a votação do projeto de autoria do deputado Paulo Maluf (PP-SP), conhecido como "mordaça" para o Ministério Público.

Com o atraso na votação do projeto, é praticamente impossível que o impedimento para os políticos com "ficha suja" se candidatar tenha validade para as eleições de outubro.

Para valer para este ano, o projeto precisa ser aprovado na Câmara e no Senado, além de ser sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva até o fim de maio, antes do início das convenções partidárias para escolher os candidatos.

"Não dá tempo para estas eleições", disse o deputado Índio da Costa (DEM-RJ), relator do projeto no grupo de trabalho criado para consolidar a proposta popular. Mesmo assim, negocia-se uma amenização do projeto na CCJ da Câmara.

A ideia é permitir que os políticos condenados por órgão colegiado possam recorrer a tribunais superiores antes que seja decretada a inelegibilidade por oito anos, conforme prevê o atual texto do projeto conhecido como "ficha limpa".

Decepção. "O nosso sentimento é de frustração", disse o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante. "É decepcionante que os partidos grandes estejam tão temerosos, com tantos medos, com tantas obstruções, quando se trata de ética", lamentou Dom Dimas Lara Barbosa, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

A decisão de adiar a votação do projeto foi tomada depois de reunião do presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), com os líderes partidários. Sem o apoio dos governistas, ficou acertado que a proposta ficará na CCJ até o dia 29 de abril, período em que passará por mudanças. Depois, ela irá ao plenário da Câmara. "Nós vamos votar esse projeto de qualquer maneira", garantiu Temer.

Inelegibilidade. Além de permitir o recurso a tribunal superior, a ideia é tipificar nitidamente na CCJ quais crimes cometidos por políticos serão passíveis da punição da inelegibilidade por oito anos. A atual proposta torna inelegível por esse período os políticos condenados por órgão colegiado por conduta dolosa (quando há a intenção de violar a lei).

Com a possibilidade de recurso a tribunal superior, a inelegibilidade do político condenado poderá ser suspensa. "O tribunal superior pode suspender a inelegibilidade se houver uma possibilidade robusta de o recurso ser acolhido, quando houver veementes indícios de que o recurso será acolhido", explicou o deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP), cotado para ser o relator do partido ao projeto na CCJ.

Pelo acordo firmado entre Temer e os líderes partidários, a CCJ terá o prazo até o fim de abril para analisar e aprovar a nova versão do ficha limpa. O PMDB e o PT se comprometeram a dar o número necessário de assinaturas para que o projeto siga em regime de urgência para votação no plenário. "Há uma obstrução aqui e esse projeto não será votado se não houver um acordo. Por isso, preferimos ganhar um tempo para vencer as resistências", argumentou o líder do PT, deputado Fernando Ferro (PE).

PSDB tenta salvar aliança com Gabeira e DEM

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Comando tucano busca reverter a crise entre deputado e Cesar Maia para garantir um palanque forte para Serra no Rio

Luciana Nunes Leal


RIO - Sem nome competitivo para disputar o governo do Rio de Janeiro e garantir um palanque forte ao pré-candidato à Presidência José Serra, o PSDB se esforça para salvar a aliança em torno do candidato do PV, deputado Fernando Gabeira, que reúne também o PPS e o DEM.

O movimento envolverá a direção nacional tucana, após o lançamento da candidatura de Serra, no próximo sábado, em Brasília. A festa de Serra é a prioridade absoluta dos tucanos, que não querem, até lá, evidenciar a fragilidade do PSDB no terceiro colégio eleitoral do País.

Na semana que vem, o presidente do partido, senador Sérgio Guerra (PE), e o próprio Serra deverão se envolver na busca de uma solução que mantenha a aliança dos quatro partidos.

"Meu maior interesse é que não haja nenhum ruído no lançamento da candidatura do Serra", disse Gabeira ontem.

O ex-prefeito Cesar Maia, pré-candidato do DEM ao Senado, está no centro do impasse. Os verdes dizem que Maia tira votos do candidato ao governo, especialmente na classe média, e não querem o ex-prefeito na chapa de Gabeira. Para o PSDB nacional, porém, é fundamental a manutenção da aliança com o DEM, principal aliado na disputa presidencial. Sem o DEM, os tucanos não levarão adiante o apoio a Gabeira.

Em reação ao PV, Cesar Maia passou a defender uma candidatura própria do PSDB, com apoio do DEM. O problema é a falta de um tucano capaz de enfrentar o governador Sérgio Cabral (PMDB), que disputa a reeleição, e o ex-governador Anthony Garotinho, candidato pelo PR.

Sem plano B. Um parlamentar do PSDB do Rio admite que o partido "não tem plano B". Por outro lado, o PV precisa do tempo de televisão do PSDB e do próprio DEM. "Meu eleitorado mais básico resiste não ao DEM, mas ao nome de Cesar Maia. Não posso trocar de eleitorado a essa altura da vida. Mas vou esperar passar o dia 10, o lançamento da candidatura do Serra, para me manifestar", afirmou Gabeira.

"Reafirmamos nosso objetivo da aliança dos quatro partidos, que tem mais chance de vitória no Rio. Nossos passos serão aqueles estabelecidos pelo comando nacional da campanha e que forem mais importantes para a candidatura Serra", disse o deputado Otávio Leite (RJ).

Se a aliança for mantida, o PSDB indicará o ex-deputado Márcio Fortes para vice de Gabeira.

No lugar de Cesar Maia, o PV quer lançar a vereadora Aspásia Camargo candidata ao Senado.

Aécio entregará a Serra lista com pedidos de Minas

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Objetivo é fazer com que relação de projetos prioritários do Estado seja incluída na plataforma de governo do candidato do PSDB

Eduardo Kattah

BELO HORIZONTE - O ex-governador Aécio Neves e o diretório estadual do PSDB vão apresentar ao pré-candidato tucano à Presidência, José Serra, uma lista de projetos e obras considerados prioritários em Minas Gerais. A intenção é que a relação conste da plataforma de governo do presidenciável.

No último encontro que tiveram, Serra pediu que Aécio elaborasse documento com as demandas de grande repercussão no Estado. De acordo com o presidente do PSDB mineiro, deputado federal Nárcio Rodrigues, o manifesto - inicialmente batizado de Agenda Minas Gerais - deve ser entregue ao pré-candidato tucano até o início de maio, durante uma visita de Serra ao Estado.

A lista inclui reivindicações como a ampliação do metrô de Belo Horizonte e do Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins, que já opera no limite de sua capacidade, além da recuperação do Anel Rodoviário da capital, a duplicação da BR 381, no sentido Belo Horizonte-Vitória, e a revitalização da bacia do Rio São Francisco.

Desenvolvimento. Para reduzir eventuais resistências ao nome de Serra no segundo colégio eleitoral do Brasil, Aécio recomendou ao paulista que se comprometa efetivamente com o desenvolvimento de Minas e citou também a necessidade de uma política específica que dê estabilidade ao setor cafeeiro. O ex-governador mineiro - que resiste à pressão para compor a chapa de Serra como vice - tem dito que não basta aos pré-candidatos visitar Minas, pois, mais do que visitas, o Estado "precisa de propostas".

"Estamos entregando a ele (Serra), eu próprio vou fazer isso dentro de algumas semanas, um conjunto de ações que considero complementares àquelas que o governo do Estado vem fazendo e que permita que ele tenha identidade maior com Minas", disse Aécio. "O mais relevante para nossa vida não é o local de nascimento do candidato, mas o compromisso efetivo que ele tenha com o nosso Estado."

Para o deputado Nárcio, o governo Lula "se omitiu no que era estruturante para Minas". "Será um documento importante porque sinaliza também uma relação de compromissos de Serra com Minas na elaboração da sua plataforma de governo", disse.

As obras e projetos já foram objetos de reclamações públicas de Aécio, principalmente quando ele ainda se colocava como pré-candidato à Presidência.

Em setembro passado, Aécio homologou decisão do prefeito da capital, Márcio Lacerda (PSB), que havia decretado estado de calamidade pública no Anel Rodoviário, em razão do grande número de acidentes. Ambos cobravam intervenção urgente na via de 26,5 quilômetros.

O ex-governador já tinha cobrado a Casa Civil - quando ainda era ocupada por Dilma Rousseff, hoje pré-candidata do PT à Presidência - pela falta de investimentos no metrô de Belo Horizonte. Aécio acusou a pasta de "descaso" em relação à proposta do governo e da prefeitura de uma Parceria Público-Privada (PPP) para ampliar o sistema de transporte público.

O assunto voltou a ser discutido ontem durante evento na Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), que contou com a presença de Dilma. Ela foi questiona sobre a falta de investimentos no metrô. "Para nós, ministra, há muitos anos é uma demanda importantíssima para Minas", reclamou o presidente da Fiemg, Robson Braga de Andrade. "O metrô de Belo Horizonte tem tido poucos recursos e a gente tem recebido pouco apoio do governo federal."

"Barbaridade, uai". Em entrevista à rádio Itatiaia, em Belo Horizonte, Dilma falou sobre a infância e da relação afetiva com Minas. Embora tenha nascido em Belo Horizonte, a ex-ministra fez carreira política no Rio Grande do Sul. "Muitas vezes eu já me peguei falando barbaridade e uai", declarou. "Às vezes eu falo tu, ocê." Ela também citou a experiência vivida no Sul. Segundo ela, os dois Estados possuem "tradição libertária".

Aloprado do PT é preso de novo

DEU EM O GLOBO

Tesoureiro do PMDB de MT também é detido pela PF por fraudes na área de saúde

Anselmo Carvalho Pinto*

O aloprado e ex-petista Valdebran Padilha - um dos pivôs do escândalo do dossiê de petistas contra tucanos, na campanha de 2006 - voltou a ser preso ontem pela Polícia Federal em Cuiabá, na Operação Hygeia. Ele e outras 30 pessoas também detidas, entre as quais 17 funcionários públicos, são acusados de fraudar licitações para obras públicas no interior de Mato Grosso. A maioria dos presos é do quadro da Fundação Nacional de Saúde (Funasa)

A nova operação da PF também levou para a cadeia importantes dirigentes do PMDB de Mato Grosso. Um deles é Carlos Miranda, tesoureiro do diretório estadual do partido e homem de confiança do deputado federal Carlos Bezerra (PMDB/MT). Miranda chegou a ser cotado para comandar a Secretaria estadual de Fazenda no início deste mês, quando o peemedebista Silval Barbosa assumiu o governo estadual, em substituição a Blairo Maggi (PR), que vai se candidatar ao Senado. Também estão presos o secretário-geral do PMDB de Mato Grosso, Rafael Bastos, e o assessor parlamentar José Luiz Bezerra, sobrinho de Carlos Bezerra.

Valdebran ficou conhecido em setembro de 2006, às vésperas da eleição presidencial, ao ser preso num hotel em São Paulo. Era filiado ao PT, mas foi expulso do partido após o escândalo. Com Valdebran, foi detido na época o também petista Gedimar Passos. Os dois levavam uma mala de dinheiro com R$1,7 milhão para a compra de um dossiê fraudado, que comprometeria candidatos do PSDB, como José Serra, que, na época, disputava o governo de São Paulo.

Fraudes de até R$ 200 milhões

A Operação Hygeia, referência à deusa grega da saúde, pretende cumprir 35 mandados de prisão temporária expedidos pela Justiça Federal de Cuiabá. Quatro acusados estavam foragidos até o fim da tarde de ontem. Dez presos são do escritório da Funasa de Cuiabá e um é de Brasília. Até agora, a PF detectou um prejuízo de R$51 milhões aos cofres públicos, mas a estimativa é que as fraudes cheguem a R$200 milhões.

O esquema de Valdebran funcionava basicamente nas licitações e na execução de obras no município de Santo Antônio de Leverger, cujo prefeito Faustino Dias (DEM) - cassado por compra de votos no ano passado - também foi preso.

As empresas de Valdebran realizaram diversos tipos de obras para a prefeitura local, incluindo serviços de melhoria do sistema de abastecimento de água, no valor de R$1.478.123. Suas empresas também realizaram obras numa praça e instalação de uma rede de energia elétrica.

As três empresas de Valdebran estão registradas no nome de seu irmão, Valdemir Padilha, também preso ontem, e de outros sócios, possivelmente laranjas. No caso da Engessan, Valdemir tem 99% das ações, enquanto uma pessoa identificada como Antônio de Paula tem 1%. Na V-3, o irmão do aloprado tem 57,2% da participação, enquanto Rosilene Correa de Oliveira detém 42,8%. Valdemir é controlador de 57% da Saneng Saneamento e Construção. O restante pertence à sua mãe, Terezinha da Conceição Padilha, que já morreu.

Em entrevista ontem à tarde, o delegado federal Éder Rosa de Magalhães disse que a PF não está investigando políticos com mandatos.

- Mas se ficar provada a participação desses agentes, eles serão responsabilizados - disse o delegado.

As fraudes se davam em três níveis. Um era na Funasa, onde, segundo a PF, o esquema fraudava contratos e licitações para obras e serviços. Mediante pagamento de propina, servidores do órgão direcionavam concorrências e permitiam que os contratos fossem executados a custos superiores ao valor de mercado, além da simulação de serviços jamais prestados.

Em segundo lugar vinham obras do Ministério das Cidades, realizadas por meio de recursos federais transferidos diretamente aos municípios. As licitações eram viciadas. Em alguns casos, as obras sequer foram concluídas.

Serviços de saúde com notas frias

O terceiro esquema consistia no desvio de recursos do Fundo Nacional de Saúde, que eram enviados diretamente aos municípios. Nesse caso, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips) terceirizavam serviços de saúde, fraudavam folhas de pagamento e emitiam notas fiscais frias. Dirigentes da Oscip Creatio, ligada ao PMDB, estão entre os presos.

- As Oscips contratavam funcionários fantasmas. Alguns deles nem moravam nas cidades de atuação - explicou Israel Carvalho, coordenador-geral de operações especiais da Controladoria Geral da União, que participou da investigação.

Cerca de 300 policiais participaram da operação, feita nos municípios de Cuiabá, Tangará da Serra, Cáceres, Pontes e Lacerda, Sinop, Canarana e Santo Antônio de Leverger, em Mato Grosso, Timóteo (MG), Porto Velho (RO), Goiânia e Brasília.

O advogado Roger Fernandes, que defende Valdemar, negou que seu cliente tenha cometido algum crime. Sobre irregularidades em obras em Santo Antônio de Leverger, o advogado disse que todas foram realizadas de acordo com o previsto.

- Se houve obra não finalizada, foi porque o governo federal não repassou os recursos contratados - afirmou o advogado.

Fernandes afirma que seu cliente está sendo equivocadamente relacionado com o caso, em razão dos telefonemas trocados entre ele e o diretor da Creatio, Luciano Carvalho Mesquita.

- A PF poderia ouvir meu cliente sem a necessidade desta medida extrema - disse.

O advogado Daniel Padilha, que é primo de Valdebran, reconheceu que as empresas do aloprado atuam fazendo obras principalmente com recursos da Funasa.

- Verba federal é o foco dele (Valdebran). E verba federal para saneamento, só vem pela Funasa - disse.

Já o advogado Sebastião Monteiro, que defende Faustino Dias, diz desconhecer a acusação, já que não conseguiu acesso ao inquérito policial.

Procurado, o deputado federal Carlos Bezerra não se manifestou sobre o envolvimento de seus assessores e aliados.

(*) Especial para O GLOBO

Compra de dossiê pode virar pizza

DEU EM O GLOBO

Ainda não foi descoberta a origem do dinheiro dos petistas envolvidos

CUIABÁ e SÃO PAULO. O empreiteiro Valdebran Padilha, que em 2006 foi preso com cerca de R$1,7 milhão na tentativa de compra de um dossiê contra tucanos, ficou conhecido como um dos "aloprados" do PT. Esse foi o termo cunhado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao se referir aos envolvidos no escândalo. As investigações do Ministério Público Federal sobre a compra do dossiê correm o risco de serem encerradas sem que se chegue à origem do dinheiro, que seria usado por petistas para a compra do dossiê contra os tucanos.

Valdebran foi tesoureiro da campanha do hoje deputado estadual Alexandre César à prefeitura de Cuiabá, em 2004. Ele tinha prestígio no PT do estado e chegou a ser indicado duas vezes para a diretoria financeira da Eletronorte - iniciativas do PT matogrossense, liderado pelo deputado Carlos Abicalil.

Com o escândalo do dossiê e as denúncias de fraudes nas licitações para favorecer suas empresas, Valdebran acabou sendo expulso do PT pela Comissão de Ética, no fim de 2006. Sua gestão na campanha de 2004, no entanto, deixou uma herança para os petistas. Em fevereiro passado, com as contas de campanha consideradas irregulares pela Justiça Eleitoral, o partido teve, como punição, a suspensão dos recursos do Fundo Partidário por três meses.

O procurador da República Mário Lúcio Avelar, responsável pelas investigações sobre o dossiê dos "aloprados", admitiu ontem, pela primeira vez, que pode encerrar o caso sem conseguir chegar à origem do dinheiro. Em entrevista ao GLOBO, ele se queixou de que está difícil concluir o trabalho.

- Estou pensando em encerrar o caso. O juiz não defere nossos pedidos de quebra de sigilo.

A coisa não anda. Está difícil seguir com esta investigação - lamentou o procurador.

O caso dos aloprados teve início em 15 de setembro de 2006, quando Valdebran Padilha e Gedimar Passos foram flagrados no hotel Íbis, em São Paulo, com o dinheiro que seria usado para o pagamento de um dossiê montado para atingir o PSDB, especialmente o então candidato a governador de São Paulo, José Serra. O dossiê fora oferecido por Luiz Antônio Vedoin, dono da empresa Planan e preso na operação Sanguessuga, que investigou fraudes na aquisição de ambulâncias por meio de emendas parlamentares dirigidas.

O inquérito ainda corre na Justiça de Mato Grosso sem que o Ministério Público tenha oferecido denúncia. Estão indiciados pela Polícia Federal: Valdebran Padilha, Gedimar Passos, José Giácomo Baccarin (tesoureiro da campanha do senador Aloizio Mercadante), Hamilton Lacerda (coordenador da campanha de Mercadante), Fernando Manoel Ribas Soares e Sirlei da Silva Chaves; os dois últimos eram donos de uma casa de câmbio.

Hamilton Lacerda ensaiou uma volta ao PT do ABC paulista, mas seu retorno ao partido está em discussão na direção nacional petista. No último domingo, a "Folha de S.Paulo" informou que Lacerda comprou uma fazenda no Sul da Bahia, em sociedade com Juscelino Dourado, ex-assessor do deputado e ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci. (Anselmo Carvalho Pinto e Tatiana Farah)

Oposição: homenagem a Tancredo é encenação

DEU EM O GLOBO

Partidos lembram que PT foi contra o mineiro e dizem que Dilma fez gesto oportunista

Adriana Vasconcelos e Flávio Freire

BRASÍLIA, SÃO PAULO e BELO HORIZONTE. A homenagem da presidenciável do PT, Dilma Rousseff, ao presidente Tancredo Neves irritou a oposição. Em nota conjunta, os presidentes de PSDB, DEM e PPS criticaram o gesto, que, na avaliação dos três, ocorreu com "25 anos de atraso". Diante da decisão da ex-ministra, em passagem por São João Del Rei, de depositar flores no túmulo do presidente, morto em 1985 antes de assumir o cargo, a oposição fez questão de ressaltar que o PT de Dilma negou apoio a Tancredo e ao pacto de transição democrática que a candidatura presidencial dele possibilitou:

"Tardia e mal explicada, a homenagem a Tancredo Neves se reduz a uma encenação com as marcas inconfundíveis da impostura e do oportunismo, presentes em outras passagens da carreira da neopetista Dilma Rousseff".

A passagem de Dilma pelo cemitério levou o senador Sérgio Guerra (PE), presidente do PSDB, a afirmar que o PT está praticando, neste caso, "necrofilia eleitoral":

- Um dos expedientes mais arriscados em política é subestimar a memória do povo. Quem o faz nunca está bem intencionado. É o caso presente do PT e de sua candidata, que decidiram praticar necrofilia eleitoral à beira do túmulo de Tancredo.

Para ele, o PT estaria trabalhando para tentar reverter sua própria memória política, já que, na sua avaliação, o partido de Dilma sempre jogou em campo oposto - apesar de que, na época do colégio eleitoral, em 1985, ela era do PDT, que apoiou Tancredo.

- Sabemos que, se houve um momento de sintonia entre o PT e o regime militar, foi justamente na aversão que ambos devotaram à figura de Tancredo e à causa democrática (...). Lula e o PT são beneficiários da obra de Tancredo, mas dela não participaram e, pior, ainda conspiraram contra ela. A falsa homenagem do PT e de Dilma agride a inteligência e o sentimento dos mineiros - disse Guerra, e emendou: - O PT poderia, no mínimo, ter um gesto de grandeza e admitir seu erro histórico, mas não. Ao contrário, tentou falsificar o passado, façanha que nem mesmo as maiores tiranias lograram alcançar.

Dilma volta a criticar Serra e a citar FH

Ontem, em Belo Horizonte, Dilma voltou a atacar o ex-governador de São Paulo José Serra, pré-candidato tucano à Presidência, e disse que não há como desvinculá-lo do governo de Fernando Henrique Cardoso:

- É muito importante que a gente compare projetos. As realizações dos tucanos mais recentes são de Fernando Henrique Cardoso. Não conheço nenhuma outra experiência federal (do PSDB). O ex-ministro Serra, tanto do Planejamento quanto da Saúde, terá de ser analisado no quadro do governo do Fernando Henrique.

Colaborou: Marcelo Portela

Acusou o golpe:: Deu no Blog Pitacos

Durante quase dois anos, os marqueteiros se esmeraram em construir a imagem da "Dilminha, paz e amor". Tiraram os óculos da candidata e mudaram seu visual para que nas suas aparições públicas, sempre ao lado de Lula, ela pintasse nas fotos como uma pessoa afável, conciliadora e com aversão a bola dividida.

De repente, esta estratégia foi jogada para o alto. Entrou em campo a Dilma-troglodita, aquela que xinga a oposição de "lobo em pele de cordeiro", tenta colar em Serra o selo do "anti Lula" e apela para o terrorismo eleitoral mais rastaqüera Insinua que o candidato oposicionista irá acabar com o PAC e com o Bolsa-Família, caso seja eleito.

A troco de quê houve uma mudança da água para o vinho no discurso da candidatura do lulo-petismo, exatamente quando Serra começou a por o pé na estrada e iniciou sua campanha?

Só há uma explicação plausível. O comando da campanha, a candidata e Lula sentiram o golpe e passaram recibo de que a estratégia de Serra está no rumo certo. Nem mesmo eles acreditam na missa rezada pelo Vox Populi, cuja pesquisa apontou um empate técnico entre as duas candidaturas, como se Dilma estivesse apenas a três pontos de diferença do tucano.

Se isto fosse verdadeiro, Dilma continuaria na mesma toada de antes e não haveria razão para a adoção do discurso do confronto. É óbvio que o Palácio do Planalto tem pesquisas qualitativas e quantitativas indicadoras de um quadro mais desfavorável para a candidatura governista.

O começo efetivo da campanha não tem sido bom para Dilma. Ao pautar sua estratégia pelo retrovisor, a candidata corre o risco de polarizar com moinhos de vento e de atrair antipatias e rejeições. O editorial "Chega de Saudades", da Folha de hoje, reduz a poeira sua cantilena de acusar a oposição de "lobo em pele de cordeiro", desnuda que se alguém, na história recente, mudou de pele várias vezes, este alguém foi o PT. Ainda bem que o PT "tucanizou-se", ao menos no que toca à aos fundamentos econômicos adotados no governo de Fernando Henrique, continuados no período lulo-petista.

Para desgraça da candidatura governista, o histórico recente das eleições brasileiras mostra que quem apelou para o terrorismo eleitoral findou por quebrar a cara. Os tucanos pagaram um preço alto, em 2002, com aquela história de Regina Duarte pregar o medo. O eleitorado amadureceu e não acredita mais em "bicho-papão".

E quem disse que o centro da preocupação dos brasileiros é comparar Lula e FHC? Eles querem mesmo saber o que os dois candidatos têm a dizer quanto ao seu futuro. Até mesmo o ministro Nelson Jobim, a quem não se pode chamar de jejuno em política, já alertou aos governistas: "o eleitorado vota com os olhos no futuro." Ele não é museu para viver de passado.
Dilma está tão azarada que os tucanos estão tendo uma rara competência, coisa que não aconteceu nas duas últimas disputas presidenciais. Espertamente Serra faz cara de paisagem diante da "Dilma troglodita" e ignora a casca de banana colocada à sua frente. Deixa para o comando de sua campanha a tarefa de denunciar o terrorismo eleitoral e de colocar armadilhas na frente da petista.

Finalmente a oposição parece ter acertado o passo e tem-se antecipado à ação do adversário. Em vez de esconder Fernando Henrique no armário, o PSDB decidiu que o ex-presidente será um dos oradores do ato de lançamento da pré-candidatura de Serra. Esvazia-se o discurso petista segundo o qual os tucanos se envergonham do governo de FHC.

O PSDB dirá abertamente que Serra conta com o apoio de Fernando Henrique e de Itamar Franco. Já Dilma tem em seu palanque Collor e Sarney. Para a oposição, é simples sair da defensiva e deixar o adversário em saia justa, em matéria de apoios de ex-presidentes da República.

Até por ser uma noviça em matéria de disputa eleitoral, Dilma findou por pisar em terreno minado ao dizer que se sentia confortável para travar o debate ético. Óbvio que o presidente do PSDB, Sérgio Guerra, percebeu que a candidata levantou a bola para os tucanos chutarem, tal o rabo-de-palha do governo Lula e do PT nessa área.

Era tudo o que a candidatura Serra queria. Trazer para o centro do debate os escândalos do "mensalão", dos "aloprados petistas", do Bancoop, a blindagem de Sarney e Renan.

A campanha está apenas no começo. A imagem que o Planalto quer colocar na ex-ministra ainda pode sofrer retoques e inflexões. Sempre de olho nas pesquisas, Dilma ainda tem muito chão para vestir de novo os trajes da boa moça, a tal "Dilminha paz e amor".

Por enquanto, não há como esconder que ela acusou o golpe e amarelou diante da competência política de José Serra e da cúpula oposicionista.

Dilma faz elogio a Aécio e prega 'união' entre PT e PSDB em MG

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

No segundo dia de sua viagem a Minas Gerais, a pré-candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, elogiou o ex-governador tucano Aécio Neves e disse ser possível que os eleitores mineiros votem nela e no PSDB para o governo do Estado.

Nota de tucanos, com apoio do DEM e do PPS, classificou de "oportunismo" o roteiro de Dilma em Minas, que incluiu visita ao túmulo de Tancredo Neves, avô de Aécio.

Dilma elogia Aécio e prega "dobradinha" PT-PSDB em MG


Petista admite voto "Anastadilma", com tucano Anastasia para o Estado e ela para o Planalto

Pré-candidato de Lula em Minas, Hélio Costa (PMDB) reage e afirma que seria "tão estranho como "Serrélio", em referência a ele e Serra

Paulo Peixoto
Da agência Folha, em Belo Horizonte
Ana Flor
Enviada especial a Belo Horizonte

No segundo dia de sua viagem a Minas Gerais, a pré-candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, abandonou o tom beligerante que vinha dirigindo ao PSDB, elogiou o ex-governador Aécio Neves e defendeu que o eleitor mineiro vote nela e no tucano Antonio Anastasia para o governo -compondo a chapa "Dilmasia", ou "Anastadilma", que ela disse preferir.

O elogio a Aécio, que deixou o governo para concorrer ao Senado, foi feito em entrevista à rádio Itatiaia: "Respeito muito o governador Aécio Neves".

Ela o chamou de "governador exemplar", disse esperar que em Minas o PT e Aécio tenham "a melhor relação possível" e admitiu a possibilidade de o eleitor mineiro votar em uma dobradinha PT-PSDB para presidente e para governador.

Dilma falava sobre a eventualidade de ocorrer algo semelhante a 2002 e 2006, quando Aécio foi eleito governador, mas Lula foi o mais votado para presidente em Minas -o voto "Lulécio".

Agora, a dobradinha seria entre ela para o Planalto e Anastasia para o governo, o que vem sendo chamado pela mídia mineira de "Dilmasia".

"A gente não escolhe a forma pela qual o povo monta as alianças. É possível que ocorra: como houve o "Lulécio", [é possível] a "Dilmasia". Eu acho até melhor a inversão, né?

"Dilmasia" é meio esquisito. "Anastadilma", qualquer coisa assim", afirmou Dilma.Ao defender a chapa híbrida, Dilma aposta no desgaste da relação entre Aécio e José Serra, seu adversário na disputa pela Presidência. O ex-governador de São Paulo ainda sonha atrair o mineiro para sua chapa.

O flerte com os tucanos, por outro lado, cria um embaraço para a própria Dilma, uma vez que o PT tem dois pré-candidatos em Minas: o ex-ministro Patrus Ananias e o ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel. Além disso, o partido discute a possibilidade de apoiar o peemedebista Hélio Costa para o governo.

A declaração da petista repercutiu mal. Hélio Costa afirmou que uma eventual chapa "Anastadilma" faria tanto sentido quanto uma hipotética parceria entre ele e Serra. "Isso [o "Anastadilma"] é tão estranho como um "Serrélio"",disse.

Ontem, Dilma voltou a atacar Serra, afirmando que não há como ele ficar desvinculado do governo FHC, pois foi ministro do Planejamento e da Saúde na era tucana: "Acho que o ex-ministro José Serra vai ter que ser analisado no quadro do governo FHC. Eu não escondo o Lula. Espero que ele não esconda o governo do qual participou".

Dilma tem procurado reforçar a sua origem mineira -nasceu em Belo Horizonte e depois foi para o Rio Grande do Sul- e diz que agora costuma usar interjeições gaúchas e mineiras, como "barbaridade, uai".

Após 42 anos, ela voltou ontem à escola onde cursou em BH o atual ensino médio. Ouviu apelos de professores -que reivindicaram aumento- e de alunos -que querem a sua ajuda para evitar uma greve.

Depois, numa livraria na zona sul, onde foi rever três amigos, ganhou um livro e uma foto de quando tinha 12 anos.

Na rádio, ela foi questionada sobre sua participação no combate ao regime militar e, ao falar do assunto, citou uma ficha apócrifa que circulou na internet com acusações a ela.

Essa ficha foi motivo de uma reportagem da Folha, a qual Dilma citou, acrescentando que o jornal "retificou o que tinha escrito" e que ela agradecia isso ao ex-ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva.

Também foi questionada se estava namorando: "Infelizmente, não. As pessoas devem se apaixonar. É muito bom".

Feitiço do tempo:: Míriam Leitão

DEU EM O GLOBO

No filme "Feitiço do tempo", o personagem principal, de Bill Murray, recomeça o mesmo dia como se já não o tivesse vivido, com a vantagem de que os outros não se lembram do que ele disse na véspera. O presidente Lula deve pensar que tem esse benefício da amnésia alheia. O problema com Lula não é o que ele diz, mas combinar com o que ele disse ou fez no dia anterior.

Ele disse aos ministros que não se pode iniciar projetos novos, dois dias depois de ter lançado o PAC-2 com projetos para até o ano 2016. Ele fez piadas e brincadeiras pelas multas que recebeu da Justiça Eleitoral, por flagrantes de uso político da máquina. Dias depois, condenou o uso da máquina em propaganda, como se isso fosse atitudes de outros, jamais dele.

Desde que lançou o PAC-2 com uma enorme fanfarra, ele não perde oportunidade de alertar os novos e acidentais ministros que não lancem nenhum outro projeto, nenhum plano novo. "Nós não estamos em época de pensar em um novo programa, estamos na época de executar os programas que vêm andando", disse ele, 48 horas depois de ter lançado uma interminável lista de novos projetos, com quase todo o PAC-1 pendente. Dias depois, voltou a dizer que não se pode iniciar nada agora, faltando nove meses. Então por que lançou planos que não irá executar? Confirmado, portanto, o entendimento geral de que nada daquilo era para ser levado a sério, era apenas uma peça de marketing político.

Certas declarações que ele faz nos levam a pensar que das duas uma: ou é ele que se esquece do que disse ou fez na véspera, ou pensa que esse é um país de desmemoriados, que dá a ele a enorme vantagem de reescrever diariamente o enredo da sua história.

Infelizmente, talvez seja a segunda alternativa. Do contrário, como explicar o que Lula disse sobre a Emenda Ibsen? A versão do presidente na entrevista concedida à Rádio Tupi é a seguinte: "Fomos pegos de surpresa pela emenda." Uma versão feita de encomenda para agradar o estado castigado pelas chuvas dos últimos dias e ameaçado de perder receita: "De repente, aparece alguém e resolve fazer uma proposta tirando tudo do Rio de Janeiro, sem levar em conta que o Rio é uma região que já perdeu a capital. Isso explica um pouco a deterioração do Rio."

Para acreditar que o presidente foi "pego de surpresa" pela emenda, é preciso aceitar que ele não tem qualquer assessor, ministro das Relações Institucionais, chefe da Casa Civil, nem se interessa em saber como vota a sua base aliada. Há vários canais que ligam o Executivo ao que se passa no Congresso. Tinham que estar todos fechados para que o presidente não soubesse da emenda do deputado Ibsen Pinheiro.

Depois de ter feito campanha ostensiva por meses a fio para a ex-ministra Dilma Rousseff, ele agora condena o uso da máquina: "É preciso que a gente seja definitivamente republicano neste país", disse.

O presidente criticou as administrações passadas pelo que aconteceu no Rio, esquecido de que, um dia antes, sua candidata Dilma Rousseff veio ao Rio fazer campanha para o ex-governador Anthony Garotinho, que, com sua mulher, governou o estado por oito anos. Juntando-se aos três anos do seu incondicional aliado Sérgio Cabral, são 11 anos de governo. Mas para dizer isso, e culpar os outros, o presidente deve acreditar que ninguém se lembra que ele permitiu que seu governo distribuísse de forma politiqueira a verba para prevenção e reparação de acidentes como esse. Os números da manipulação da distribuição das verbas federais foram tão escandalosos, que o único benefício da dúvida que o presidente pode requerer é desmoralizante: é ele não saber o que seu próprio governo faz, ter sido também apanhado de surpresa por essa distribuição paroquial do dinheiro.

Seu raciocínio sobre a Emenda Ibsen tem outro defeito. Ela não é condenável porque um dia o Rio perdeu a capital. Isso foi há 50 anos, já deu para a cidade se recuperar do trauma. Não é isso que explica a "deterioração" do Rio, para usar a palavra do presidente. Governos federal e estadual têm errado na cidade e no estado, como o governo Lula e de seus aliados no Rio. Mesmo assim, há boas perspectivas pela frente. O Rio acaba de receber o grau de investimento e tem uma chance olímpica de enfrentar problemas sempre relegados. O que o Rio não pode é ser vítima de uma união interesseira entre os estados em torno de uma emenda oportunista e expropriadora. O que o estado quer é manter sua receita atual e não voltar 50 anos no tempo. O que o estado precisa é de um presidente atento e não de um que alega ter sido o último a saber que havia uma emenda tramitando no Congresso, a bordo de um projeto governamental com carimbo de urgência, que simplesmente desorganiza o futuro do estado.

Lula se comporta no fim do governo como se esse fosse seu primeiro dia de administração e ele não tivesse que prestar contas e sim cobrar malfeitos dos antecessores. Alguém precisa dizer ao presidente que os brasileiros sabem que ele está chegando ao final de oito anos de governo e que os moradores dessa terra não têm amnésia recorrente. Todos sabem o que ele fez ou disse ontem, na semana passada e nos últimos anos. No filme "Feitiço do tempo", Bill Murray tenta consertar num dia o erro que cometeu no dia anterior. Nem isso se pode dizer das contradições do presidente Lula.

Yundi Li toca Chopin Nocturne Op. 9 No. 2

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História dos temporais cariocas(* O GLOBO, 20.2.1991)::Affonso Romano de SantÁnna

O Rio não está preparado para as formidáveis chuvas de verão. A cidade se atrapalhou toda de novo com as águas que caíram esta semana. É um problema antigo que não sei que prefeito corrigirá. Já em Machado de Assis encontro várias crônicas onde ele faz uma história dos diversos dilúvios cariocas.

A primeira referência que é um "assombroso" temporal com a "violência mais aterradora que se tem visto. Há cerca de duzentos mil vidros quebrados no Rio de Janeiro" . Isto foi em 1864. Em 28.04.1895 ele descreveria nova tragédia: "Que dilúvio, Deus de Noé!(...) a princípio não tive medo: cuidei que eram dessas chuvas que passam logo. Quando porém os elementos se desencadearam deveras, e as ruas ficaram rios, as praças mares, então supus que realmente era o fim dos tempos. As águas entravam pelas casas, outras desciam dos morros,cor de barro. Carro nem tílburi disponíveis. algum veiculo particular aparecia, ou levava o dono ou esperava por ele. Bondes alagados,sem horário, quase sem cortinas. Entramos em alguns em um, e o bonde começou a não a não andar, mas a boiar; boiou a noite inteira, ainda agora bóia".

Em 02.02.1896 volta ao tema dos vendavais cariocas exclamando: "Avocat, oh passon au déluge!:" Antes que me digas isso, começo por ele. ˜não esperes ouvir de mim senão que foi e vai querendo ser o maior de todos os dilúvios. Sei que o espetáculo do presente tira a memória do passado, e mais dói uma alfinetada agora que um calo há um ano. Mas em verdade a água, depois de ter sido enorme, tornou-se constante, geral e aborrecida"

A seguir refere-se ao fato de que as ruas fizeram-se lagoas e dezenas de casas desabaram. Mas que talvez isso fosse uma medida "sanitária" dos céus, pois curiosamente diminuiram as epidemias na cidade.

Mas refazendo a história das tempestades no Rio, diz: "Podia citar dilúvios anteriores, os dous, pelo menos, que tivemos nos íltimos quinze anos, ambos os quais ( se não me engano) mataram gente com as suas simples águas. Águas passadas. O primeiro desses durou uma noite quase inteira: o segundo começou a uma ou duas da tarde e acabou `as sete. Era domingo, e creio que de Páscoa. Mas um e outro, tiveram um predecessor medonho no de 1964, que antecedeu ou sucedeu, um mês certo, ao dilúvio da praça. O da praça, arrastou consigo todas as casas bancárias, ficando só os prédios e os credores. não perdi nada com um nem com outro. Pude, sim, verificar que os poetas acertam quando comparam os poemas `as águas. Vi muitas vezes as ruas perpendiculares ao mar cheia de água que desciam correndo, Uma dessas vezes foi justamente a do dilúvio de 1864; a sala da redação de um jornal ora morto, estava alagada; desci pela escada, que era uma cachoeira, cheguei às portas de saída, todas fechadas, exceto a metade de uma, onde o guarda-livros, com o olho na rua, espreitava a ocasião de sair logo que as paredes da casa arriassem. Pois as águas que desciam por essas e outras ruas não eram mais nem menos que as multidões de gente que desceram por elas no dia do dilúvio bancário.

"Pior que tudo, porém, se a tradição não mente, foram as 'águas do monte' assim chamadas por terem feito desabar parte do morro do Castelo. Sabe-se que essas águas cairam em 1811 e duraram sete dias desde o mês de fevereiro., Parece que o o nosso século nascido com água, não quer morrer sem ela. não menos parece que o morro do Castelo, cansado d esperar que o arrasem, segundo velhos planos, está resoluto a acabado a obra de 1811. Naquele ano chegaram a andar de canoas pelas ruas; assim se comprou e vendeu, assim fizeram visitas e salvamentos. Também é possível , como ainda viviam náiades, que assim as fossem buscar às fontes.Talvez até se pescassem amores"

"Se remontares ainda uns sessenta anos, terás o dilúvio de 1756, que uniu a cidade ao mar e durou três longos dias de vinte e quatro horas. Mais que em 1811, as canoas serviram aos habitantes, e o perigo ensinou a estes a navegação. Uma das canoas trouxe da Rua da Saúde ( antiga Valongo) até a Igreja do Rosário não menos que sete pessoas. Caíram casas dessa vez; a população refugiou-se ao pé dos altares. Afinal, como a cidade não tinha ainda contados os seus dias, fecharam-se as cataratas do céu; as águas baixaram e os pés voltaram a pisar este nosso chão amado"

Este é o Rio dos temporais que Machado descreveu. Se pensarmos que naquele tempo não havia asfalto, nem velas pelos morros, veremos que o Rio tem uma vocação maritima inequívoca. Talvez a solução fosse transformar logo a cidde numa espécie de Veneza.Construir os prédios sobre palafitas e cada um começar a ter um carro anfíbio na sua porta. Ou,então, com a tecnologia moderna inventarmos uma solução para um problema que é mais velho que o velho Machado.

Tragédia se agrava com mais 50 casas soterradas em Niterói

DEU EM O GLOBO

A tragédia no Estado do Rio - que até ontem à noite registrava 148 mortes - foi agravada com novo desabamento de pelo menos 50 casas em Niterói. Três corpos foram resgatados, elevando para 82 o número de vítimas naquele município. No Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, os bombeiros lamentaram não ter conseguido salvar um menino de 8 anos, que sobreviveu por uma noite, soterrado. Auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) constatou que o Rio, apesar dos temporais, ficou com apenas 0,9% das verbas do governo federal. A análise dos repasses confirmou que a Bahia foi, sem histórico ou análise de risco justificáveis, o estado mais favorecido pelo Programa de prevenção e Preparação para Desastres (64,6% do total das verbas) na gestão do ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB), que vai concorrer justamente ao governo baiano. Mesmo que as chuvas deem trégua nos próximos dias, continuarão interditadas vias importantes como a Avenida Borges de Medeiros, a Estrada da Grota Funda, a Grajaú-Jacarepaguá, a Linha Amarela, a Avenida Niemeyer e o Alto da Boa Vista. Moradores de condomínios e comunidades de Vargem Grande e Vargem Pequena, na Zona Oeste, ainda ontem estavam ilhados por causa do temporal de segunda-feira e da chuva que continuava caindo na região.

Número de óbitos sobe para 148, mas novo deslizamento em Niterói pode agravar muito mais a tragédia

Antônio Werneck, Claudio Motta e Waleska Borges
Quando viu o filho Marcos Vinícius Vieira França da Mata, de 8 anos, sendo retirado morto ontem de manhã dos escombros no Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, o pai, Valmir França da Mata, não se conteve. Depois de quase 40 horas do deslizamento, chorando muito, ele tirou o corpo das mãos dos bombeiros e o abraçou.

- Meu filho, minha vida, eu te amo - gritou Valmir.

Outros parentes que acompanhavam o drama de perto também se emocionaram com o resgate, que não pôs fim à espera da família. Uma tia do menino, Geucilanda da Silva, de 42 anos, ainda estava sob a lama e, até o fim da tarde de ontem, não tinha sido encontrada.

A morte de Marcos Vinícius engrossa a estatística das vítimas dos temporais que castigam o estado desde a segunda-feira. Até a noite de ontem, o total chegava a 148 mortes, pelo menos 135 feridos e mais de 15 mil desabrigados. Niterói é a cidade que mais sofreu, registrando até então 82 mortes confirmadas. Os números podem aumentar devido ao soterramento de cerca de 50 casas na noite de ontem, no bairro Viçoso Jardim. O Rio já tem 46 mortos, enquanto em São Gonçalo há 16 mortes e pelo menos cinco mil desabrigados. Nilópolis, Petrópolis, Magé e Paulo de Frontin registraram um morto cada um.

Só no Morro dos Prazeres já são 22 mortes, sendo que quatro corpos resgatados ontem. O sargento bombeiro Luiz Carlos dos Anjos Lira ficou inconsolável por não conseguir retirar o menino com vida. Cheio de lama, ele abraçou Valmir.

- Era a razão da minha vida tirar este garoto hoje (ontem). Não consegui. Era uma criança, isso toca a gente - disse o bombeiro.

Vinícius morava a cerca de 200 metros da casa onde foi soterrado. Como lá também houve queda de barreira, a família achou mais seguro levá-lo até a casa das tias. Meia hora depois de chegar, aconteceu o desastre. Além de Geucilanda, que era professora em Niterói, a irmã dela, Ana Lúcia dos Santos, de 30, também foi atingida. Seu corpo fora resgatado pouco antes do menino.

De acordo com bombeiros, Ana Lúcia estava sentada numa cadeira e, na hora do deslizamento, o menino teria corrido em sua direção para obter proteção. Eles foram achados abraçados. Ela era recepcionista do Hospital dos Evangélicos, na Tijuca.

- Ele jogava futebol, brincava com meu filho de 4 anos que era louco por ele. Era um bom menino. A vida continua, mas vai ser muito difícil viver sem eles - disse a tia Raquel Brito Leite Silva, que mora no segundo andar do prédio em cujo térreo o menino morava.

Durante os trabalhos de resgate anteontem, os bombeiros chegaram a localizar e conversar com Vinícius, dando esperança de que ele seria retirado com vida. Mas, no início da noite de anteontem, um deslizamento e as chuvas interromperam os trabalhos. Bombeiros relatam, ainda, que foi detectado um vazamento de gás, o que também atrapalhou as buscas.

- O local foi coberto por água e lama. Foi necessário cavar tudo de novo. O risco é muito grande porque o solo está encharcado - explicou o coronel Carlos Correia, do Grupamento do Maracanã.

Para tentar identificar melhor a localização das pessoas desaparecidas, bombeiros pediram a moradores e vizinhos que desenhassem o mapa das casas. Em alguns casos, até mesmo a divisão por cômodos era importante. Geucilanda, por exemplo, estava na cozinha na hora do deslizamento, que pode arrastar os corpos por até 50 metros.

As buscas mobilizaram 80 bombeiros de seis quartéis, 15 funcionários da Empresa de Obras Públicas do governo do estado (Emop) e voluntários, além de duas escavadeiras. Houve pequenos deslizamentos, que assustaram os bombeiros.

Jorge Ferreira da Silva também perdeu parentes. Ele buscava cunhado, concunhado e dois sobrinhos, sendo que um conseguiu sobreviver.

A família Maria de Lourdes Barreto, que mora há 18 anos no Morro dos Prazeres, escapou por pouco da tragédia. A casa dela foi totalmente destruída. Mas, por estar em obras, não havia ninguém no local:

- Voltaríamos no domingo. Perdi 15 amigos e vizinhos. No andar de cima da minha casa morava Imaculada. Junto com ela, Alcione veio de Minas com seus quatro filhos para fazer o tratamento do mais novo, de 1 ano. Ele não resistiu, assim como outros dois irmãos. Apenas Alcione e o mais velho sobreviveram.

Casal perde as três filhas em Niterói

Outro lugar onde a tragédia das chuvas se abateu com força foi o bairro de Santa Rosa, em Niterói. Ali, na Travessa Beltrão, 11 casas desabaram, arrastadas por uma queda de barreira. O pintor Igor Brito de Moura, de 30 anos, perdeu três filhas - de 3, 5 e 10 anos - no deslizamento. Igor e a mulher estavam em Friburgo, na Região Serrana, quando souberam do deslizamento. As filhas do casal tinham ficado na comunidade com a avó, retirada viva dos escombros.

Sem esperanças de encontrar vivos o cunhado e o sobrinho soterrados, Arlindo da Silva Filho, de 32 anos, acompanhava desolado o trabalho dos bombeiros ontem à tarde. Cães farejadores e uma retroescavadeira também ajudavam a tentativa de localizar seis pessoas desaparecidas.

- Diferente de um terremoto onde tudo fica seco, o deslizamento da chuva traz uma avalanche de lama e água. É muito difícil sobreviver a uma situação dessas - lamentou Arlindo contando que sua sobrinha, de 17 anos, e cunhada morreram soterradas.

Irmã de Arlindo, Ana França era ex-mulher de José Carlos de Paula, de 39 anos, e tia de Márcio dos Santos Silva, de 24. Até ontem à tarde, ambos continuavam soterrados. Ana conta que, na madrugada de terça-feira, quando soube que a casa dos parentes tinha desabado tentou ir de ônibus de Duque de Caxias, onde mora, para Niterói.

- A ponte estava fechada. Pulei a roleta e fui correndo do vão central até Santa Rosa. Minha filha, de oito anos, ainda não sabe que o pai dela está soterrado - emocionou-se Ana lembrando que o irmão dela, que também morava no local, foi soterrado e socorrido pela vizinhança:- Ele está internado em coma no CTI do Hospital Santa Marta. Minha família morava ali há mais de 20 anos.

Moradores da Travessa Beltrão reclamaram que os Bombeiros e a Defesa Civil demoraram a chegar ao local. Pela manhã, parentes e amigos das vítimas trabalhavam com enxadas sozinhas no resgate. Segundo eles, os bombeiros só chegaram por volta das 12h. Cerca de 40 famílias desabrigadas na comunidade foram encaminhadas para o Colégio Estadual Guilherme Briggs, em Santa Rosa.

- Mesmo se a Defesa Civil parar de buscar os corpos à noite, vamos continuar procurando toda noite e madrugada. Não vamos desistir - garantiu Arlindo.

"As duas cidades" :: Eliane Cantanhêde

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Mesmo quem não é do Rio está cansado de ouvir falar de Copacabana, Ipanema, Leblon.

Mas que tal passar os olhos pelo mapa de ontem na Folha com os locais onde ocorreram mortes? Você conhece Taquara, Turano, Borel, São Gonçalo? E os morros dos Macacos, do Andaraí, dos Prazeres?

Esse mapa reaviva um texto do poeta e jornalista Augusto Frederico Schmidt, há 62 anos, na então "Folha da Manhã": "As duas cidades". Era premonitório. É de uma atualidade espantosa.

"São duas cidades, como dois exércitos inimigos, uma diante da outra (...). A cidade de farrapos, a cidade de miséria, a cidade chamada das favelas desafia a outra cidade, a nossa", alertou em 1948, descrevendo justamente as áreas onde as tragédias têm acolhida e matam.

Como relatava Schmidt, "o próprio presidente da República, justamente alarmado, insiste em atacar o domínio da miséria, o exército de párias que se instalou em nossa cidadela". Muitos presidentes, governadores e prefeitos se revezaram no poder desde então, uns democraticamente, outros impostos.

Nem uns nem outros de fato atacaram a miséria e a questão das favelas. Mas as promessas atravessaram seis décadas. E continuam.

É constrangedor ouvir o presidente Lula, o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes procurando justificativas inúteis, prometendo que, da próxima vez (sempre da próxima vez...), tudo será diferente. OK. Eles entraram na dança há pouco, não há como culpá-los diretamente. Mas apenas aumentam a lista de responsáveis, empilhando promessas que não cumpriram nem vão cumprir.

Como dizia Schmidt, "as favelas continuarão a existir enquanto o Brasil não se redimir, não se salvar (...). As favelas são o retrato do Brasil". E onde se amontoam os brasileiros fadados a morrer, nesta e nas futuras tragédias no Rio, em São Paulo, no Nordeste, onde for. As "duas cidades" são os "dois Brasis".

Morte e vida Severina (Auto de Natal Pernambucano) – partes 17 e 18 (final)::João Cabral de Melo Neto

FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES ETC.

— De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
— Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.
— Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas
nas suas já se adivinha.

— De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.

— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondasem sua adição infinita.— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.

— E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA

— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

Este é o mais conhecido dos trabalhos do poeta pernambucano. Os versos foram extraídos do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág. 171.