domingo, 17 de janeiro de 2010

Reflexão do dia – Roberto Freire

“Esse PNDH 3 até que tem aspectos que mereceriam ser discutidos e defendidos, mas, infelizmente, pela forma voluntarista com que foi elaborado e apresentado, pelas extravagâncias antidemocráticas da velha e recorrente tese da dualidade de poder dos conselhos, acaba por servir a determinados setores da sociedade que com isso ganham um amplo leque de manobra para impedir avanços e até mesmo impor retrocessos à causa dos direitos humanos.”


(Roberto Freire, no artigo “Direitos Humanos” publicado dia 15/1/2009 no Jornal Brasil Econômico)

Merval Pereira:: O papel de cada um

DEU EM O GLOBO

Desde outubro, o presidente Lula sabe que estava crescendo "chifre em cabeça de cavalo" devido ao Programa Nacional de Direitos Humanos e, na tentativa de chegar a uma posição que agradasse tanto aos militares quanto aos militantes de esquerda de seu governo, acabou fazendo com que o texto saísse da maneira que saiu, provocando a crise que teve depois de contornar. Aprofundando-se mais a apuração do que aconteceu nesses meses, aprende-se que é incorreto chamar a crise de "militar", pois dois civis estiveram sempre à frente da oposição ao texto original da Secretaria de Direitos Humanos: o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins.

Este último, antigo integrante do grupo guerrilheiro MR-8, tendo inclusive participado do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, foi um auxílio inesperado e importante para o ministro Jobim, já que tinha, por sua própria história política, peso para discordar do caminho tomado na elaboração do Programa de Direitos Humanos original.

Além de pedir para que seu nome fosse retirado do decreto, Franklin Martins atuou nos bastidores para convencer Paulo Vannuchi de que não haveria ganho político em criar atritos com a área militar.

Ao contrário, a chefe do Gabinete Civil, ministra Dilma Rousseff, a quem estava afeita a aprovação final do decreto antes da assinatura do presidente, não quis interferir em favor do ministro da Defesa, provavelmente para se colocar bem com a ala esquerdista do governo, com o objetivo de tê-la a seu lado na campanha presidencial em que se candidatará à sucessão de Lula.

Os ministros Jobim e Vannuchi trocaram diversas mensagens no decorrer desses meses, negociando os termos da constituição da Comissão Nacional da Verdade e seus objetivos.

Jobim já havia alertado o presidente Lula de que ele, como jurista e ministro da Defesa, não poderia aceitar que o texto do decreto desse margem a que a Lei de Anistia pudesse ser revista.

Desde o início, a expressão "repressão política" estivera na berlinda, pois ela indicava que a tal comissão só analisaria um dos aspectos do período militar.

Jobim explicou para o presidente que os chefes militares já haviam acatado sua determinação de apoiar a constituição da Comissão da Verdade, para que todos os fatos ainda não esclarecidos com relação aos desaparecidos políticos venham a público - inclusive a localização dos corpos, para que as famílias possam enterrar seus mortos, como salientou o próprio presidente Lula, no fim da semana.

Foi Lula mesmo, aliás, quem estabeleceu, em conversas ainda em outubro, os limites que deveriam ser seguidos na elaboração do decreto dos direitos humanos, já alertado por Jobim de que o texto continha afirmações inaceitáveis.

A ideia de que o ministro civil da Defesa esteve emparedado pelos chefes militares no episódio é a que parece mais verossímil, mas o fato é que, por ser um político experiente e de temperamento forte, o comportamento de Nelson Jobim no episódio só fez reforçar o papel do Ministério da Defesa de ser um poder civil comandando os militares.

Ao sentir cheiro de queimado no texto original do decreto, Jobim assumiu a dianteira das negociações e chamou os chefes militares para uma conversa, em que ele deu a direção.

Declarou-se contrário à revisão da Lei de Anistia, como político e como jurista, mas defendeu a necessidade de que a Comissão Nacional da Verdade pudesse investigar e revelar fatos ocorridos durante os "anos de chumbo".

Retirado o eventual caráter revanchista das investigações, a criação da comissão não enfrentaria resistências dos militares. Já nesta ocasião estava em discussão a troca da expressão "repressão política" por "conflitos políticos".

Como Paulo Vannuchi insistia no uso de "repressão política", alegando ao presidente Lula que era preciso usar uma expressão forte, houve um momento em que se pensou em pôr os dois termos no texto, para deixar claro que as apurações da Comissão da Verdade se dariam nos dois lados em confronto na ocasião.

Antes de viajar para Copenhague, para a reunião sobre o clima, Lula ainda foi alertado por Jobim de que o texto final do decreto que ele assinara não havia sido alterado, e ficou acertado que o chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, seria acionado para fazer a alteração, o que acabou não acontecendo.

Carvalho alegou que, quando o presidente falara com ele, o texto já estava sendo impresso na gráfica do Diário Oficial. O acerto que foi determinado após o regresso das férias de Lula, portanto, deveria ter sido feito antes da publicação do decreto criando o III Programa Nacional de Direitos Humanos.

Tudo indica que houve, pelo menos por parte do secretário nacional de Direitos Humanos, a tentativa de esticar a corda até o último momento, acreditando que, diante do fato consumado, os militares não reagiriam.

Os relatos de diversas fontes não permitem determinar exatamente qual foi o papel do presidente Lula no episódio. Alguns consideram que Lula não estava realmente interessado em abrir uma discussão com os militares, e foi enganado por Vannuchi e Dilma Rousseff, que jogaram com o fato consumado.

Outros acham que o próprio presidente levou a negociação até o limite, interessado em dar mais espaço para sua ala esquerda, também acreditando que os militares não concretizariam a ameaça de pedir demissão.

A solução final, de criar um grupo de trabalho para elaborar o anteprojeto de lei que cria a Comissão da Verdade para "examinar violações de direitos humanos, ocorridas no regime militar" foi acertada entre o ministro Nelson Jobim e o secretário Paulo Vannuchi, antes da reunião dos dois com o presidente Lula.

Dora Kramer :: Instituição questionada

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

No ano passado nem o "vício insanável da amizade" - na expressão do notório deputado Edmar Moreira, o do castelo - sustentou uma tradição do Senado: pela primeira vez não houve festa de confraternização entre os senadores, habitualmente recebidos pelo presidente na residência oficial da instituição.

Mais forte que o cerimonial foi a indisposição à fraternidade e a ausência de clima para comemorações, depois de um ano de crises e um longo período de escândalos que quase derrubaram dois presidentes e provocaram a renúncia de outros dois.

"As pessoas estão cansadas umas das outras", constata o senador José Agripino Maia, para quem o cancelamento da festa reflete o ponto de exaustão a que chegou o Senado com as próprias mazelas.

E, se nem os senadores aguentam mais uns aos outros, quem dirá o que pensa o cidadão a respeito da Casa, antes de excelências sereníssimas, e de dez anos para cá cenário de brigas, ilicitudes, operações-abafa e toda sorte de comportamentos condenáveis.

Nesse ambiente é que o Senado enfrentará uma eleição que tem tudo para ser diferente das outras. Em outubro haverá a renovação de dois terços da Casa que só por obra do improvável deixará de ser intensamente questionada pelo eleitorado.

Será uma eleição atípica e que chamará muito mais atenção do que habitualmente. Sobre o Senado o eleitor tem muito mais condições de interferir pelo voto do que na Câmara, pelo fato de a eleição ser majoritária e a marcação homem a homem.

Na votação para deputado, pelo sistema proporcional, o eleitor não tem controle sobre sua vontade. Vota em um candidato e pode perfeitamente - o que ocorre com frequência - eleger outro. Entram no jogo os cálculos, os coeficientes, as divisões entre as coligações, uma série de fatores que se interpõem entre o votante e o votado.

"O Senado chega à próxima eleição aos espasmos", diz o senador Agripino, otimista, entretanto, com a próxima legislatura. Acha que, se os candidatos não tomarem a iniciativa de fazer suas campanhas propondo a substituição do "velho" pelo "novo" Senado, os eleitores se encarregarão da faxina.

"Hoje ninguém fala sobre isso porque a eleição está distante. Mas, com toda certeza as pessoas guardaram na memória todos os episódios degradantes e vão levar em conta aquele acúmulo de acontecimentos para dar o troco na urna. Portanto, quem quiser ficar em consonância com a sociedade vai precisar se credenciar. Primeiro, com vida pregressa correta e, depois, com disposição de atuar na contramão dos velhos vícios."

E a força das máquinas? "No caso de eleição majoritária e do completo esgotamento do modelo, valerá mais o voto de opinião."

Nova embalagem

A oposição, que até agora dizia rechaçar a ideia de uma campanha eleitoral polarizada para presidente, já começa a propagar uma análise diferente.

Pela nova versão, a polarização não seria de todo má para a candidatura do PSDB porque facilitaria uma vitória no primeiro turno.

Claro que a premissa não é a de um embate nos termos propostos pelo presidente Luiz Inácio da Silva: um plebiscito entre o governo dele e o do antecessor Fernando Henrique Cardoso.

A polarização que os tucanos acham favorável é aquela em que de um lado esteja o candidato do PSDB e de outro a ministra Dilma Rousseff como tutelada pelo presidente.

Por esse raciocínio, a passagem de Dilma para o segundo turno daria a ela uma outra dimensão - passaria de "júnior" a "sênior" -, atrairia apoios e criaria dificuldades sérias aos oposicionistas.

Bom combate

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral de baixar uma resolução obrigando os partidos a identificarem os nomes dos doadores e dos beneficiários de recursos para financiamento de campanhas reflete as críticas da Justiça Eleitoral à chamada "reforma política" que o Congresso aprovou no ano passado.

Na época, o presidente do TSE, ministro Carlos Ayres Britto, alertou para as distorções das alterações feitas na legislação eleitoral, sendo uma das mais graves a permissão para que os partidos recebessem doações ocultas. Sem a identificação dos doadores nem dos beneficiários.

Alguns parlamentares, com destaque para o senador Eduardo Suplicy, tentaram até o último instante derrubar esse ponto da "reforma", mas os grandes partidos, inclusive os de oposição, foram contrários.

Na ocasião, Ayres Brito alertou que a modificação facilitaria o uso do caixa 2 e dificultaria o trabalho da Justiça para seguir o rastro das ilegalidades.

Como a questão ainda será debatida em audiências públicas e tem prazo até 5 de março para ser aprovada, nesse meio tempo, não dá dúvida: o Congresso dará algumas demonstrações de apreço ao mau combate em defesa da permanência das doações ocultas.

Janio de Freitas :: Precisamos, em vão

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

É preciso discutir o regime sob o qual vivemos, e que pouco tem a ver com a Constituição que a maioria saudou e apoia

O quarto de século, completado anteontem no esquecimento, da eleição do primeiro presidente civil passados 21 anos de ditadura -Tancredo Neves, na última eleição indireta- não corresponde ao que era ambicionado como volta ao Estado de Direito.

É preciso, embora improvável, discutir as características do regime sob o qual estamos vivendo, e que pouco ou nada tem a ver com a Constituição que a maioria saudou e defende. Sob surtos de perplexidade, nem sabemos onde estamos nem, portanto, podemos enveredar pela acomodação ou pela ação em busca da democracia mais real e promissora. Postos sob o autoritarismo remanescente e um transformismo degenerado, os valores da cidadania se esvaem antes de chegarem a ter dimensão de fato democrática.

É preciso discutir o que significa, para o regime e para a cidadania, o poder autoatribuído pelos comandos militares e reconhecido pelo presidente da República de impedir, sobrepondo-se à ordem institucional proclamada, medidas autorizadas ou determinadas pela Constituição. Os militares não se tornaram democratas, como têm atestado tantas demonstrações do seu apego à memória da ditadura. Mas, daí a interferir na função e na autoridade de um poder constituído, vai a distância entre regime constitucional democrático e a falência desse regime, da Constituição e da cidadania.

É preciso discutir o que é feito do Congresso pela venalidade como método de compor a "base aliada" e, agora, as bases partidárias para a candidatura patrocinada pela Presidência da República. Se a plenitude do Congresso é essencial ao regime democrático, e à validade da Constituição e da cidadania, então não é esse o regime em vigência. E tanto não é, que o governo se exerce por medidas provisórias, como a ditadura o exercia pelo decreto-lei, e a função legislativa do Congresso reduz-se à de cartório. Aliada à produção de escândalos.

É preciso discutir a aceleração da imoralidade administrativa. Não se trata, aqui, da corrupção nas malas e meias, mas do que está implícito em atos de governo que possibilitam negócios proibidos por lei (telefônicas), prorrogação anistiante de multas bilionárias a grandes produtores rurais, e compras de equipamento militar eivadas de suspeições, por exemplo. É apenas natural que a crescente sem-cerimônia desse regime do "quem decide sou eu" chegue, agora, à negação de todo escrúpulo, com a proposta de Lula de que não se fiscalizem as obras da Copa, "para não atrasar as obras". As do Pan, com "fiscalização" federal, estadual e municipal, ficaram 800% acima da previsão. Nem essa fiscalização Lula deseja a seus amigos empreiteiros, como os da Odebrecht e da Andrade Gutierres.É preciso, mas improvável, discutir o descaminho em que entramos, mais empurrados ainda por uma campanha eleitoral deformada a partir da própria Presidência da República e da máquina de governo.

No código

Pode ficar só no ridículo a infantilidade que leva Nelson Jobim, por ser ministro da Defesa, a fantasiar-se de militar para ir à Amazônia ou ao Haiti. Ele ainda não se deu conta de que haver civil como ministro de militares é tido, ao menos para as aparências, como uma conquista civilizatória.

Mas a por na roupa, ou na boina, emblema do Exército, está previsto no código penal: é falsidade ideológica.

Rubens Ricupero :: 25 anos da Nova República

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Neste um quarto de século, o país obteve conquistas sem nenhuma ruptura da legalidade constitucional

A eleição de Tancredo Neves pelo Congresso Nacional deu início à mais longa experiência na história do Brasil de uma democracia de massas autêntica que, ao mesmo tempo, demonstrou a competência para superar o passado de instabilidade, golpes militares, inflação e desigualdade extrema. A frustração das Diretas explica, sem justificar, o erro histórico de julgamento dos radicais que se recusaram a participar da escolha feita pelo Colégio Eleitoral.

O tempo se encarregou de dar razão ao punhado de corajosos deputados do PT que votaram por Tancredo a fim de evitar o risco do prolongamento da ditadura num colégio em que o resultado final era incerto. Engrandeceria o PT, ironicamente um dos maiores beneficiários da decisão, relembrar a data praticando o que João Paulo 2º chamava de "purificação da memória".

Esse processo implica o reconhecimento público do erro e a reparação aos que foram expulsos e tiveram a carreira política destruída, como Airton Soares. Por que não ampliar a autocrítica que, de uma forma ou de outra, o partido ou o presidente Lula já fizeram em relação a dois outros de seus equívocos históricos: a recusa de assinar a Constituição de 1988 e a oposição ao Plano Real? Ajudaria a retirar da data o estigma de efeméride envergonhada.

Afinal, o povo não se enganou sobre o sentido do momento, eternizando a imagem da multidão que cantava o hino nacional diante do Congresso, abrigando-se da chuva sob gigantesca bandeira auriverde.

A Nova República completa um quarto de século, seis anos mais que a redemocratização de 1945. É suficiente para um julgamento: consolidou a democracia; aprovou Constituição de grandes avanços sociais; liquidou a inflação crônica agravada pelo governo Kubitschek; redescobriu o caminho do crescimento econômico comprometido desde o fim do governo militar e, mais recentemente, com contribuição decisiva do governo Lula, vem atenuando de modo significativo a pobreza e a desigualdade herdadas do passado.

É um balanço impressionante por qualquer critério e provavelmente não tenha paralelo em nenhum outro período comparável da história nacional. São conquistas que merecem valorização porque alcançadas sem nenhuma ruptura da legalidade constitucional, em contraste com o regime de exceção, que não resolveu nenhum problema fundamental do Brasil e criou alguns novos.

A democracia provou sua força ao superar provas difíceis como a inacreditável fatalidade da doença e morte de Tancredo e do processo de afastamento de Collor. Seu fracasso mais inquietante tem sido a incapacidade de reformar as instituições de governo e de extirpar a corrupção sistêmica. A influência externa que mais a beneficiou foi o fim da Guerra Fria, que ajudou a deixar para trás a polarização e a radicalização da vida política, fator-chave do golpe militar e comum hoje em países vizinhos.

Obra coletiva, o sucesso da democracia revela o dedo de muita gente, mas é justo realçar que Fernando Henrique e Lula devem bastante a Sarney e a Itamar, obrigados a governar em tempos bicudos. Tancredo foi o maior presidente que o país nunca teve. Não pelo governo que podia ter sido e que não foi, mas porque, apesar da morte prematura, deixou impressa no Brasil de hoje a marca do seu espírito: equilíbrio, moderação, compromisso, tolerância e bom humor.

Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Maílson da Nóbrega :: O PT mudou o Brasil? Ou foi o contrário?

DEU NA REVISTA VEJA

"Lula e o PT conseguiram, mediante a desconstrução sistemática das realizações de outros governos, convencer a maioria de que o Brasil teria começado em 2003. Nunca antes"

Nunca antes na história deste país um partido se vangloriou tanto de feitos que não realizou. É o caso do PT. No seu último programa no rádio e na TV, o partido reivindicou o papel de marco zero. Até a estabilização da economia teria sido obra sua. Os petistas se jactam de ter mudado o país. Para um de seus senadores, 2009 foi "a segunda descoberta do Brasil".

No mundo, três transformações radicais sobressaem: (1) a Revolução Gloriosa (1688), que extinguiu o absolutismo inglês e levaria a Inglaterra à Revolução Industrial; (2) a Revolução Americana (1776), da qual surgiria a maior potência no século XIX; e (3) a Revolução Francesa (1789), a profunda mudança que substituiria os privilégios da nobreza, do clero e dos senhores feudais pelos direitos inalienáveis dos cidadãos.

Nada desse porte aconteceu no Brasil, nem agora nem antes. A independência foi declarada por dom Pedro, representante da metrópole. A República nasceu de um golpe de estado dado por Deodoro da Fonseca. A Revolução de 1930, a única que talvez possa ter esse título, promoveu mudanças, mas não daquela magnitude. Aqui não se viram rupturas nem violências. O regime militar findou sob negociação.

O PT pretendia mudar o Brasil, mas para pior. O título de seu programa para as eleições de 2002 era "a ruptura necessária". Prometia "uma ruptura com o atual modelo econômico, fundado na abertura e na desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado". Soa ridículo hoje, não?

As propostas continham inúmeros disparates: controles na entrada de capitais estrangeiros, mudanças na captação de recursos externos pelos bancos e a denúncia do acordo com o FMI, entre outros. Uma reforma tributária taxaria as grandes fortunas. O pagamento dos juros da dívida pública seria reduzido de forma voluntarista.

A Carta ao Povo Brasileiro (22 de junho de 2002) foi o começo do fim dessas ideias. Nela, Lula ainda defendia "um projeto nacional alternativo", mas falava em "respeito aos contratos e obrigações do país". O superávit primário seria preservado "para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos".

As visões econômicas do PT morreram de vez com Lula na Presidência. Um banqueiro foi presidir o Banco Central. No primeiro mês, elevaram-se a taxa de juros e a meta de superávit primário. Tudo o que o PT tachava de neoliberal. Na política, a coalizão de governo incluiu partidos políticos e figuras conhecidas que o PT abominava.

A política econômica foi mantida. Com a preservação da plataforma construída por seus antecessores, Lula conseguiu alçar o Brasil a novas alturas. O amadurecimento das mudanças anteriores ampliou o potencial de crescimento da economia, que foi adicionalmente impulsionada pelos ventos favoráveis da economia mundial entre 2003 e 2008. Tornou-se possível manter e ampliar os programas sociais herdados.

Muito se deve à intuição política do presidente e ao trabalho de seu primeiro ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Lula percebeu que a preservação de sua popularidade dependia do controle da inflação e por isso reforçou a autonomia do Banco Central. Ele cresceu aos olhos do mundo em razão de sua simpatia, de seu carisma e por ser um líder de esquerda moderado, defensor da democracia e da economia de mercado.

Lula e o PT conseguiram, mediante a desconstrução sistemática das realizações de outros governos, convencer a maioria de que o Brasil teria começado em 2003. Nunca antes. É um grande tento, que requereu doses elevadas de desfaçatez. Recentemente, na falta de energia no Sul e Sudeste, a preocupação não foi explicar, mas mostrar que o apagão de Lula era melhor que o de FHC.

A manutenção da política econômica foi uma decisão corajosa. Respondeu a um novo ambiente, caracterizado pela intolerância da sociedade à inflação, pela imprensa livre, pela nascente valorização da democracia e pela disciplina do mercado. Lula curvou-se às imposições dessa nova realidade. Ainda bem.

O Brasil mudou o PT, que agora é, em todos os sentidos, um partido como os outros.

Entrevista:''Democracia direta é impossível de realizar''

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Para Rodrigues, conceito que inspira conferências nacionais é forma de uma minoria organizada mobilizar a maioria

Clarissa Oliveira

Usado para fundamentar as conferências nacionais promovidas pelo governo, o conceito de democracia direta ainda custa a ganhar a adesão de alguns estudiosos, a exemplo do cientista político Leôncio Martins Rodrigues. Para ele, a proposta não apenas é "impossível de ser realizada", como representa mais uma fórmula para que uma minoria organizada mobilize a maioria. Foi por trás da tese de contato direto de um líder com a população, argumenta, que nasceram ideologias como o fascismo.

Rodrigues admite que a democracia representativa carrega defeitos e se desmoraliza diante das sucessivas denúncias de corrupção. "Mas as deficiências, na minha opinião, são menores do que se teria na chamada democracia direta."

A exemplo do Plano Nacional de Direitos Humanos, textos surgidos em conferências nacionais causam polêmica. Mas eles representam o que a população quer?

A população tem muito pouca informação a respeito desses textos. Esse programa, em especial, nem membros do governo leram, nem o próprio presidente. E 99% da população não tem interesse, não sabe do que se trata. Há várias leituras possíveis. A primeira é como o programa se apresenta, prometendo atender à população, aumentar a democracia, só bondades. A segunda é o que o programa realmente buscava, antes da intervenção do Lula: aumentar o poder do Estado sobre a sociedade e a força da Secretaria de Direitos Humanos. Seguramente, a imensa maioria das propostas não seria levada à prática. Se fosse, significaria aumentar enormemente a burocracia, o número de empregados e complicar seu funcionamento.

O sr. diz que há uma vontade de aumentar o controle da sociedade pelo Estado. As conferências serviriam de justificativa para isso?

A atuação, valores e intenções de grupos e partidos da esquerda de tipo socialista levam à diminuição da iniciativa da sociedade - embora eles digam o contrário - e ao aumento do controle do partido sobre a economia e todos os aspectos da sociedade. Devemos entender o programa como parte de um esforço do setor de esquerda para impor uma hegemonia ideológica. A esquerda perdeu a guerra militar, mas está ganhando a guerra ideológica.

Essa guerra ideológica está sendo inserida nos textos das conferências nacionais com a roupagem de democracia direta?

Democracia é uma coisa complicada, não é fácil definir. Não há democracia total. A França, antes do governo Vichy, era um governo que dizíamos democrático. Só que mulheres não tinham direito de voto. Nos Estados Unidos, até 1961, 1962, diziam ser uma democracia. Havia restrições à participação dos negros. Vivemos no Brasil situações em que havia democracia, mas a maioria da população não votava. Essa ideia de democracia direta é impossível de ser realizada. A ação política é uma ação de minorias organizadas, que tentam mobilizar maiorias. Afirmam que falam em nome dessa maioria, mas é discutível. Por exemplo, a Comissão da Verdade é um simplismo. Um nome bonito, aparentemente nobre. Um pequeno grupo na luta revolucionária não lutava pela democracia. Queria impor o socialismo. Não sei como ocorreria na prática. Grupos de esquerda não se punham de acordo e provavelmente teríamos um conflito entre eles, como houve em países onde o regime socialista se instalou. Em parte em consequência do próprio retorno à democracia, está havendo uma hegemonia das ideologias de esquerda. No governo Lula é mais complicado, não houve revolução socialista. Para governar, é preciso compor com várias forças. Lula não era socialista, nunca foi. Sempre foi um pragmático. Grupos de esquerda que tinham participado da luta armada, foram presos, desmantelados ou se refugiaram no exterior e voltaram. E fazem pressão dentro do governo.

O presidente tenta dar voz a setores da esquerda que o apoiaram mas não são contemplados por políticas do governo? Afinal, o governo endossa textos que encontram resistência no próprio governo.

Parte das ideias do programa (de Direitos Humanos) responde à ideologia e a um modo de pensar de setores da esquerda. Há modismos no texto, análises chinfrins, primitivas. Uma nova elite de origem plebeia ascendeu com o Lula. Chegou ao poder vindo de baixo. Essa elite não eliminou a outra, ao contrário, fez acordos. Pelo impulso do Lula, que tinha consciência de que precisaria de acordos, com Sarney, Renan. Houve aproximação com a elite conservadora. Engraçado, não houve aliança com a elite moderna, intelectualizada, agrupada em torno do Fernando Henrique.

Mas o discurso da participação direta da população no governo é real ou é de fachada?

Existem certas tendências no PT que acreditam efetivamente que a democracia direta seria "mais democrática" do que a democracia representativa. Mas essa ideia do contato do líder direto com a população e a crítica à democracia representativa, ao parlamentarismo, foi a base do fascismo. O fascismo está muito ligado a isso, ao líder popular de classe média, como o Mussolini.

É uma forma de controle da massa sem intermediários?

Esse corpo intermediário, com regras definidas, nunca representa toda a população e sempre se pode encontrar falhas. Mas as deficiências, na minha opinião, são menores do que se teria na chamada democracia direta. A massa, no seu conjunto, é desorganizada. Se isso acontece, temos um líder com muito mais domínio sobre a população, sobre a massa, do que sobre o Parlamento. Tanto é que a primeira coisa que candidatos a ditador fazem é liquidar o Parlamento. Hitler fechou o Reichstag, Mussolini a Câmara de Deputados. Até na União Soviética a ideia era "todo o poder aos sovietes". Não aconteceu nada disso. Até agora, não se encontrou para a democracia solução melhor do que esses organismos intermediários, com todos os defeitos que possam ter. Infelizmente, no Brasil, representantes do povo são muito ruins. E revelações de corrupção contribuem muito para desmoralizar a democracia representativa.

Não é positivo buscar um equilíbrio, dar um elemento de participação popular adicional no governo?

Não sei. Às vezes, se pensa em recorrer a plebiscitos. O que se tem são minorias que tentam influenciar a população. Usadas com alguma moderação, essas formas de participação direta podem ter um papel importante. Mas o problema do Brasil não está nas leis. Está em fazer cumprir as leis. Penso que poderia ser importante que a população se manifestasse sobre alguns assuntos. Em outros, mesmo a opinião pública - um grupo mais qualificado ou informado - não sabe das coisas.

Programas nascidos das conferências nacionais têm incluído sucessivamente propostas de controle da mídia. Como o sr. reage?

Há uma forte tendência da esquerda em querer um controle da mídia privada. Para contrabalançar, são favoráveis a uma mídia controlada pelo Estado. Acho muito má essa ideia. Os proprietários privados não têm o poder que parecem ter. E, quando se fala em mídia estatal, ela está sob o controle de um grupo político. Não seria mau se pudéssemos ter alguma coisa como uma mídia estatal competente, como a BBC de Londres. Mas a ideia de que a imprensa privada, a mídia privada, jornais e televisão modelam o pensamento dos brasileiros é um equívoco.

Conferência de Cultura arma novo ataque à mídia

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Documento cita ""monopólio na comunicação"" como ""ameaça à democracia"" e pede maior atuação do Estado

Felipe Recondo e Marcelo de Moraes

Depois da crise aberta pelo conteúdo do Programa Nacional de Direitos Humanos e da polêmica de controle de mídia proposta pela Conferência Nacional de Comunicação, o governo já tem nova confusão interna com data marcada para acontecer. Prevista para ocorrer de 11 a 14 de março, a 2ª Conferência Nacional de Cultura tem em seu texto-base conceitos e propostas que atacam a mídia, preveem interferência em áreas como ciência e tecnologia e meio ambiente e defendem ampliação da atuação do Estado.

O Estado teve acesso ao texto-base da Conferência de Cultura, que faz forte crítica à mídia no item 1.4, que trata de Cultura, Comunicação e Democracia.

"O monopólio dos meios de comunicação (mídias) representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural", diz o texto-base, que orientará as discussões da conferência.

O documento também defende a pressão pela regulamentação de artigos que obriguem emissoras de televisão a cumprir cotas de regionalização na produção e exibição de programas.

"Tão necessário quanto reatar o vínculo entre cultura e educação é integrar as políticas culturais e de comunicação. Nesse sentido, os fóruns de cultura e de comunicação devem unir-se na luta pela regulamentação dos artigos da Constituição Federal de 1988 relativos ao tema. Entre eles o que obriga as emissoras de rádio e televisão a adaptar sua programação ao princípio da regionalização da produção cultural, artística e jornalística, bem como o que estabelece a preferência que deve ser dada às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, à promoção da cultura nacional e regional e à produção independente (art. 221)."

E acrescenta: "As emissoras comerciais se organizam com base nas demandas do mercado, que são legítimas. Contudo, essas demandas não podem ser as únicas a dar o tom da comunicação social no País."

INTERVENÇÃO

Na prática, a proposta da Conferência Nacional de Cultura repete a mesma situação de reuniões anteriores e de documentos internos do governo, como o que estabeleceu o Programa Nacional de Direitos Humanos. O texto dispara em várias direções, defende a intensificação da participação do Estado e critica ou deseja intervir de alguma maneira sobre atividades de mídia.

Foi esse tipo de ação que causou crise de governo por conta da confecção do Programa Nacional de Direitos Humanos. A proposta acabou tratando de assuntos tão diversos como agronegócios, liberação do aborto e criação de Comissão da Verdade para discutir ações de tortura praticadas durante a ditadura militar. Bombardeado por todos os lados, o governo acabou sendo obrigado a rever o texto.

Agora, para a Conferência da Cultura, se repete a intenção de influenciar outras áreas de governo, como ciência e tecnologia. "A cultura deve relacionar-se com as políticas de ciência e tecnologia e reforçar a premissa de que o desenvolvimento científico tem de incorporar a diversidade cultural do País, com seus múltiplos conhecimentos e técnicas", cita o texto no item 3.1, chamado Centralidade e Transversalidade da Cultura.

Também traz propostas relacionadas à conservação do meio ambiente, que passa, de acordo com o texto, por uma mudança no modo de vida da sociedade.

"A política cultural não está alheia à crise ambiental, que se torna mais grave a cada dia. Mesmo porque essa crise decorre de um componente cultural: o modo de vida consumista, que explora exaustivamente os recursos naturais", diz o texto. "No Brasil aprendemos pouco com as culturas indígenas; ao contrário, o País ainda está preso ao modelo colonial, extrativista, perdulário e sem compromisso com a preservação dos recursos naturais."

DESCENTRALIZAÇÃO

Na primeira conferência, temas como esses foram debatidos e integraram as 30 propostas consideradas prioritárias. "Garantir a participação da sociedade civil, através de seus fóruns, na discussão da elaboração da lei geral de comunicação de massa assegurando a descentralização, a universalização, a democratização e o controle da sociedade civil sobre os meios de comunicação e que regule o sistema de concessão e produção de conteúdo", informava o texto de uma das propostas.

Outra sugeria "debater, defender e promover sistemas brasileiros de comunicação de massa, com a participação de atores públicos e da sociedade civil, assegurando a democratização dos meios de comunicação e a diversidade cultural".

O Ministério da Cultura está em fase de preparação da conferência. Na semana passada, durante videoconferência em que os preparativos eram discutidos, servidores do ministério disseram estar preocupados com a baixa quantidade de inscrições até o momento. E disseram aos organizadores nos outros Estados ser necessário fazer esforço adicional para aumentar o número de participantes.

Um debate que cabe em qualquer evento

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Felipe Recondo e Marcelo de Moraes

No governo Lula, as conferências nacionais têm sido realizadas constantemente e produzido propostas polêmicas, mas inócuas. Na prática, servem para que o presidente Lula dê voz ao público interno do PT e dos movimentos sociais, que levantam bandeiras controvertidas, mas acabam não tendo consequências. O controle sobre a mídia e sobre o comando editorial dos meios de comunicação parece ser tema comum entre várias delas.

Em 2006, a 1.ª Conferência de Economia Solidária aprovou, na sua conclusão, que "as políticas públicas da Economia Solidária devem privilegiar os meios de comunicação comunitários, populares e alternativos, sem esquecer de exigir a contrapartida dos grandes meios de comunicação, que são concessões públicas e devem estar a serviço da sociedade e sob seu controle social".

Ao fim da 1.ª Conferência Nacional da Juventude, os participantes defenderam o estabelecimento de cotas para a produção e exibição de conteúdo em todos os meios de comunicação. Pela proposta, 50% dos programas exibidos serão obrigatoriamente nacionais - com 15% de produção independente e 20% de produção regional.

Na 3.ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em julho de 2007, que não tinha a comunicação em sua pauta de discussões, os participantes aprovaram uma "moção de repúdio aos ataques da mídia às comunidades quilombolas". O ápice do tema foi a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), de 14 a 17 de dezembro do ano passado. Os participantes da Confecom aprovaram o "controle social" da mídia, o que poderá implicar a participação popular em todo o processo de produção dos meios de comunicação.

Em outras situações, as propostas aprovadas atacam projetos encampados pelo próprio governo, como foi o caso da conferência sobre segurança alimentar. No documento final, os participantes defenderam a interrupção das obras para transposição do Rio São Francisco. "O projeto de integração das bacias que implica a transposição do Rio São Francisco deve ser suspenso imediatamente, pois o diagnóstico atual indica a morte de seus afluentes", defendem os integrantes da conferência no documento final.

A mesma conferência propôs que uma parcela do dinheiro aplicado no mercado financeiro fosse destinada à produção de alimentos. "Instituir a obrigatoriedade da utilização parcial dos recursos financeiros não produtivos provenientes de especulação financeira em ações produtivas que contemplem a segurança alimentar e nutricional", propuseram os participantes.

O QUE PENSA A MÍDIA

EDITORIAIS DOS PRINCIPAIS JORNAIS DO BRASIL
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Demétrio Magnoli :: Direitos humanos reciclavéis

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Conceito deixou de se aplicar a indivíduos reais para exprimir prerrogativas de coletividades imaginadas


Samuel Pinheiro Guimarães, o número 2 do Itamaraty feito secretário de Assuntos Estratégicos, renomeou os direitos humanos como "direitos humanos ocidentais" e qualificou a sua defesa como uma política que dissimula "com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das grandes potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos". O ataque frontal aos direitos humanos é ineficaz e desqualifica o agressor. Os inimigos competentes dos direitos humanos operam de outro modo, pela sua usurpação e submissão a programas ideológicos estatais. O Plano Nacional de Direitos Humanos há pouco anunciado é uma ilustração acabada dessa estratégia. Desgraçadamente, os movimentos e ONGs que falam em nome dos direitos humanos não são apenas cúmplices, mas inspiradores da ofensiva de âmbito internacional.


A política internacional de direitos humanos nasceu de fato com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O texto célebre inscreve-se na tradição da filosofia política das Luzes, que se organiza ao redor do indivíduo. Ele proclama direitos das pessoas, não de coletividades étnicas, sociais ou religiosas. Tais direitos circulam na esfera política, mesmo quando se referenciam no mundo do trabalho ou da cultura.

Por esse motivo, a sua defesa solicita, sempre e inevitavelmente, o confronto com o poder político que viola ou nega direitos. A Declaração de 1948 é, essencialmente, um instrumento de proteção dos indivíduos contra os Estados. Não é fortuito que seus detratores clássicos sejam os arautos das utopias totalitárias: o fascismo, o comunismo, o ultranacionalismo, o fundamentalismo religioso.


Na sua fase heroica, as ONGs engajadas na defesa dos direitos humanos figuravam na lista de desafetos dos Estados, inclusive das democracias ocidentais. Elas denunciavam implacavelmente a censura, a repressão política, as detenções ilegais e as torturas promovidas pelos regimes tirânicos, mas também as violações cometidas pelos serviços secretos das potências democráticas, a pena de morte, a discriminação oficial contra imigrantes, o preconceito racial nos sistemas judiciário e policial. Nada disso servia para a obtenção de financiamentos de governos, instituições multilaterais ou fundações filantrópicas globais. O ramo dos direitos humanos não era um bom negócio.


O giro estratégico começou há menos de duas décadas, por meio de uma reinterpretação fundamental dos direitos humanos. As ONGs inventaram a tese útil de que os direitos humanos, tal como expressos na Declaração de 1948, representam apenas direitos "de primeira geração". Eles deveriam ser complementados por direitos econômicos, "de segunda geração", e direitos culturais, "de terceira geração". A operação de linguagem gerou um oceano de direitos indefinidos, um livro vazio a ser preenchido pelos detentores do poder de preenchê-lo. Simultaneamente, propiciou a aliança e a cooperação entre as ONGs de direitos humanos e os Estados.


Sob o amplo guarda-chuva dos direitos "de segunda geração", quase todas as doutrinas políticas podem ser embrulhados no celofane abrangente dos direitos humanos. A reforma agrária promotora da agricultura camponesa converte-se num direito humano, tanto quanto a coletivização geral da terra, que é o seu oposto, segundo a vontade soberana do poder estatal de turno. O Plano de Direitos Humanos apresentado pelo governo Lula declara o "neoliberalismo", rótulo falseador usado como referência genérica às políticas de seu antecessor, como um atentado aos direitos humanos. As políticas assistenciais de distribuição de dinheiro transfiguram-se em princípios indiscutíveis de direitos humanos. Aqui ao lado, em nome dos direitos "de segunda geração", Hugo Chávez destrói meticulosamente aquilo que resta da economia produtiva venezuelana.


Os direitos "de terceira geração", por sua vez, funcionam como curingas dos tiranos e das lideranças políticas que fabricam coletividades étnicas, raciais ou religiosas. A perseguição à imprensa independente, nas ditaduras e nos regimes de caudilho, adquire a forma da proteção de direitos sociais contra o "poder midiático". A introdução de plataformas ideológicas no sistema educacional é envernizada com a cera dos direitos culturais. O mesmo pretexto propicia um discurso legitimador para a implantação de políticas de preferências étnicas ou religiosas no acesso aos serviços públicos, ao ensino superior e ao mercado de trabalho. O Plano de Direitos Humanos contém um pouco de tudo isso, refletindo a intrincada teia de acordos firmados entre o governo, os chamados movimentos sociais e redes diversas de ONGs.


A revisão do significado dos direitos humanos empreendida por iniciativa das ONGs esvaziou o sentido original da política internacional de direitos humanos. Eles deixaram de exprimir direitos dos indivíduos reais para se transfigurarem em direitos de coletividades imaginadas. O "negro" ou "afrodescendente" genérico, supostamente representado por uma organização política específica, tomou o lugar do indivíduo realmente esbulhado pela discriminação racial. O "índio" abstrato, "representado" pelo Instituto Sócio-Ambiental, sequestrou a voz do grupo indígena concreto que não tem acesso a remédios ou escolas. O Plano de Direitos Humanos contempla todas as coletividades fabricadas pela "política de identidades", inclusive as quebradeiras de coco. Ao reconhecimento oficial de cada uma dessas coletividades vitimizadas corresponde uma promessa de privilégios para seus "representantes", que são ativistas internacionais do próspero negócio dos direitos humanos.


Os direitos humanos de "segunda geração" e "terceira geração" diluíram os direitos humanos. As ONGs de direitos humanos incorporaram-se à paisagem geopolítica das instituições multilaterais e seus ativistas ingressaram numa elite pós-moderna de altos funcionários do sistema internacional. Em contrapartida, pagaram o preço de uma renúncia jamais explicitada, mas nítida e evidente, a fustigar as violações de direitos humanos praticadas pelos Estados.


A "guerra ao terror" de George W. Bush, com suas operações encobertas de transferência de presos para ditaduras cruéis, suas prisões off-shore e suas técnicas heterodoxas de interrogatório, escapou relativamente incólume do bombardeio das ONGs amestradas. A submissão do sistema judicial da Rússia de Vladimir Putin às conveniências políticas do Estado quase desapareceu dos radares dos ativistas. A vergonhosa deportação dos boxeadores cubanos por um governo brasileiro disposto a violar tratados internacionais precisos não mereceu uma denúncia no âmbito da OEA. O fechamento de emissoras de TV e a nova figura dos prisioneiros políticos na Venezuela não merecem manifestações significativas dos altos executivos de direitos humanos. A agressão recente à blogueira cubana Yoani Sánchez não gera nem mesmo uma protocolar nota de protesto das organizações que redigiram junto com Paulo Vannuchi o Plano de Direitos Humanos. De certo modo, Samuel Pinheiro Guimarães triunfou.


Sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP, é colunista de O Estado de S. Paulo

Leonardo Dantas Silva :: Nabuco, um pensador liberal

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O ano de 2010 deverá ser dedicado ao centenário de falecimento de Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo que, nascido no Recife em 19 de agosto de 1849, na atual Rua da Imperatriz, veio a falecer em 17 de janeiro de 1910 em Washington, onde servia como embaixador do Brasil nos Estados Unidos.

Apesar de patrono da cultura Pernambucana, Joaquim Nabuco é figura por demais lembrada, em todas as camadas da população, mas muito pouco estudada e conhecida, daí o silêncio que se fez no ano que antecedeu ao centenário do seu falecimento.

Foi ele o maior pensador do seu tempo, notabilizando-se pelos seus pronunciamentos em favor das reformas sociais que, segundo ele, complementariam a abolição da escravatura negra (1888). Parte delas foram propostas quando da campanha eleitoral de 1884, cujos discursos foram reunidos, por ele, no livro Campanha abolicionista no Recife. Eleições 1884, Rio de Janeiro, Tipografia de G. Leuzinger & Filhos, 1885.

Nos seus pronunciamentos, Joaquim Nabuco defende uma lei agrária, em 5 de novembro de 1884, falando na Praça de São José do Ribamar: "A propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado da pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra a propriedade, como não faz honra ao Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões - a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão não nos basta, é preciso destruir a obra da escravidão".

A importância do operário, do artífice, daquele que ganha o pão com o seu trabalho manual e do seu suor, não foi esquecida, por Joaquim Nabuco que, em discurso pronunciado no Campo das Princesas, na tarde de 29 de novembro de 1884, dirigido por ele à classe dos Artistas Pernambucanos, vaticinara em tom profético: "Eu bem sei que vós não pesais pelo número, e não influis pela fortuna, e além disso estais desarmados por falta de organização, mas como na frase revolucionária de Sieyès, podeis desde já dizer: "O que é o operário? Nada. O que virá ele a ser? Tudo!..." escolheria sim, o insignificante, o obscuro, o desprezado elemento operário, porque está nele o germe do futuro da nossa pátria, porque o trabalho manual, somente o trabalho manual, dá força, vida e dignidade a um povo."


No Teatro de Santa Isabel, em 12 de outubro de 1884, faz a sua profissão de fé em Pernambuco, sua província natal, onde residem "as minhas origens, o meu berço, a minha pátria" (sic). Na ocasião ele abordou a sua preocupação com o separatismo que poderia advir com um regime de caráter republicano: "...se por uma dessas terríveis fatalidades, que eu daria a última gota do meu sangue para evitar, esse magnífico território fosse quebrado ao meio ou em pedaços, eu pensaria tanto em não ser Pernambucano como hoje penso em não ser brasileiro. Sim senhores, sinto-me tão Pernambucano como quem melhor o seja. Ninguém, acreditai-me, faz mais sinceros nem mais ardentes votos do que eu para que Pernambuco reconquiste no futuro algum reflexo pelo menos da hegemonia Nacional que, capitania ou província, exerceu no passado, do papel que representou neste Brasil em cuja alma insuflou o espírito da nacionalidade, o espírito de independência e o espírito de liberdade!"


» Leonardo Dantas Silva é jornalista e escritor

José Murilo de Carvalho ::Quincas, o belo

DEU NAFOLHA DE S. PAULO /+MAIS!

Celebrado em vida, Joaquim Nabuco redefiniu a tensão entre particular e universal no pensamento social brasileiro, em obras como "O Abolicionismo", "Um Estadista do Império" e "Minha Formação"

(Joaquim Nabuco em Nice (França), em 1904, quando trabalhava na questão da Guiana Inglesa)

A natureza é reconhecidamente injusta na distribuição de seus dons. Uns os recebem em abundância, outros escassamente. Joaquim Nabuco estava entre os primeiros. Tinha um físico invejável (Quincas, o belo, o chamavam), aguda inteligência, facilidade para aprender línguas e reconhecidos dotes oratórios. A sociedade juntou-se à natureza proporcionando-lhe, pelo lado materno, um berço de açúcar em Pernambuco e, pelo paterno, uma longa tradição familiar de participação na política nacional. Sua vida teve quatro fases bem distintas.

Nascido em 1849, viveu os primeiros 30 anos sem se distinguir muito de outros jovens talentosos da elite do Segundo Reinado [1840-89]. Formou-se em direito em São Paulo e Recife, abandonou cedo a advocacia, tentou o jornalismo, a literatura, a diplomacia.

Dessa fase, ficaram-lhe a grande admiração pelo pai, o senador Nabuco de Araújo (1813-78), e um amontoado de leituras desordenadas.

Em 1878, morreu o senador deixando preparada a eleição do filho a deputado geral por Pernambuco. Eleito sem dificuldade, deu início à fase mais brilhante de sua vida, que vai até a queda do Império. Embora já preocupado antes com o problema da escravidão, em boa parte graças ao exemplo do pai na luta pela aprovação da Lei do Ventre Livre [1871], só então decidiu abraçar a causa da abolição e o fez com total dedicação e em várias frentes.

Uma dessas frentes foi Londres, onde se autoexilou após uma derrota eleitoral na corte.

Lá escreveu e publicou, pela Abraham Kingdon, em 1883, "O Abolicionismo". Ganha gloriosamente a batalha em 1888, sobreveio no ano seguinte a grande derrota que foi a queda da Monarquia. Os próximos dez anos foram de isolamento, recolhimento, reflexão. Voltou à prática religiosa e, sobretudo, dedicou-se à escrita da biografia do pai, que foi publicada em três volumes, entre 1897 e 1899, pela Garnier, com o título de "Um Estadista do Império".

Ao mesmo tempo, foi redigindo aos poucos os capítulos de "Minha Formação", que saiu pela Garnier em 1900.

Guiana Inglesa

Em 1899, decidiu sair do isolamento e aceitou convite do governo republicano para defender a causa do Brasil na disputa com a Inglaterra pelos limites da Guiana Inglesa [leia na pág. 7 trecho de carta de Nabuco sobre a questão]. Perdida a causa, o barão do Rio Branco o nomeou primeiro embaixador brasileiro em Washington, cargo em que morreu em 1910. Dessa fase, não restaram escritos de maior relevância. "O Abolicionismo", "Um Estadista do Império" e "Minha Formação", no entanto, escritos em tempos de amargura, formam uma trilogia de clássicos. O primeiro aparece em qualquer lista de dez livros mais importantes na área que se convencionou chamar de interpretações do Brasil.

O segundo entra fácil na lista das cinco melhores biografias. O terceiro faz o mesmo na das cinco melhores autobiografias. Autor de três clássicos, é talvez caso único no Brasil. Gilberto Freyre pode emplacar dois, "Casa-Grande e Senzala" e "Sobrados e Mocambos", mas não "Ordem e Progresso".

Problema nacional

"O Abolicionismo" é, ao mesmo tempo, um programa de luta e um ensaio de sociologia política dos mais lúcidos já produzidos entre nós. O programa definia a escravidão como um problema nacional, acima dos partidos políticos, que devia ser resolvido pelos mecanismos do sistema representativo, sob a pressão da opinião pública. A sociologia desvendava um país marcado pela instituição escravista na economia, na política, na sociedade, nos valores. A escravidão, segundo Nabuco, perpassava a vida do país, invadia todas as atividades, todas as classes, todas as mentes.
Suas consequências, afirmava, estariam conosco por mais de um século, uma das previsões de longo prazo mais corretas já feitas entre nós.

"Um Estadista do Império" teve como subtítulo "Nabuco de Araújo, Sua Vida, Suas Opiniões, Sua Época". Tratava-se, sem dúvida, de homenagem filial e, como tal, o papel do senador é ressaltado. Mas foi muito mais do que isso. A última palavra do subtítulo, sua época, é o ponto alto do livro. O senador foi um homem público em tempo integral, mesmo quando tinha que advogar para complementar o orçamento.

O filho via tudo sob o prisma do nacional e do universal. "Um Estadista" é até hoje uma leitura indispensável para entender o funcionamento do sistema político do Segundo Reinado.

O autor consegue um equilíbrio raro entre a análise dos atores, de que desenhava magníficos perfis, e o movimento amplo da política, com ênfase no avanço das ideias liberais. Nesse exercício, não foi até hoje superado.

"Minha Formação" é um retrato precioso da formação intelectual dos filhos da elite política do Segundo Reinado, antes da avalanche dos filosofismos das últimas décadas do século, uma elite encharcada de leituras de literatos franceses e tratadistas ingleses.

Livrou-o da pura afetação a aproximação que fez entre o engenho de Massangana e a rua Grosvenor Gardens de Londres, graças à qual definiu a incompatibilidade entre a escravidão brasileira e os valores da civilização ocidental.

Nabuco utilizou plenamente em benefício do país os dons e privilégios que recebeu da natureza e da sociedade.

José Murilo de Carvalho é historiador, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras.

José de Souza Martins :: A missionária da mão na massa

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS

Sempre em campo e com medidas caseiras e eficazes, Zilda Arns cumpriu sua missão de salvar a vida de crianças pobres

A notícia de que a dra. Zilda Arns Neumann, de 75 anos, estava entre as vítimas fatais do terremoto de terça-feira, no Haiti, repercutiu imediatamente como a grande perda que efetivamente é para o País. Ela ocorre num momento em que o Brasil dá sinais amplos de conformismo, abatido pelo nihilismo de que tudo que havia para ser feito, e nunca dantes fora feito, finalmente já o foi. Supostamente, nada mais nos desafia, nada mais resta que reclame a insurgência do espírito e nossa indignação moral e política.

Sua biografia pública é exemplar, justamente, porque de certo modo começa quando a imensa maioria das pessoas já está se preparando para desistir, conformada com a proximidade da velhice. A dra. Zilda Arns formou-se médica e tornou-se pediatra e sanitarista, profissionalmente devotada à medicina pública. Enviuvara havia cinco anos quando recebeu do irmão, d. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, o convite do Unicef para organizar o envolvimento da Igreja, no Brasil, no combate à mortalidade infantil. Costumava dizer que não havia por que complicar coisas que podem ser simples. Foi nesse espírito que acabou criando e presidindo a Pastoral da Criança, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Desenvolveu um método simples de disseminação de medidas de medicina preventiva, com base no recrutamento de voluntários e na ação comunitária. Todos se lembrarão da campanha do soro caseiro no tratamento da diarreia e da desidratação, que foi a referência de um conjunto de inovações no combate à mortalidade infantil. Seu grande segredo foi o de inocular na cultura popular da solidariedade vicinal e comunitária inovações médicas preventivas, naturais e simples, eficazes.

Em 1985, o índice da mortalidade infantil havia caído para cerca de metade do que fora em 1965, de 116 para 62,9 por mil. Portanto, quando a dra. Zilda Arns assumiu a Pastoral da Criança, em 1983, a mortalidade infantil, ainda que alta, estava em franco declínio, consequência de décadas de silencioso empenho de médicos, sanitaristas e educadores sanitários. Mas se no Sul do Brasil a mortalidade infantil havia caído de 84 por mil, em 1965, para 39,5 por mil, em 1985, no Nordeste caíra, no mesmo período, de 153,5 para 93,6 por mil, índice altíssimo, indicação clara de um abismo cultural imenso entre as possibilidades oferecidas pela medicina e pela ciência e o que delas chegava às regiões mais pobres do País. Não era apenas uma questão de pobreza, de falta de meios, mas uma questão de bloqueios culturais conhecidos. É o caso da valorização conformista, sobretudo nas zonas rurais nordestinas, do anjinho como patrimônio religioso da família, o inocente que morre ainda no início da vida. Nenhuma indignação contra o que para muitos era a manifestação da vontade de Deus. Mas havia outros bloqueios, como o da alimentação teimosamente errada das crianças pequenas, como nos anos 60, quando as mães ainda teimavam no mingau de macaxeira, nutricionalmente pobre, contra o leite recebido gratuitamente.

Faltava, portanto, não só o acesso aos recursos pediátricos apropriados, cuja disponibilidade se expandia, mas também a pedagogia que enfrentasse a ignorância, a tradição alimentar ultrapassada e até nociva à saúde e todos os bloqueios a uma prática de saúde pública que, de modo simples, salvasse vidas. O professor Walter Leser, que foi secretário de Saúde do Estado de São Paulo, em duas ocasiões, a partir de 1967, especialista em medicina preventiva, publicou naquela época um estudo com extenso rol de doenças de que ainda se morria em São Paulo para as quais, no entanto, a medicina já encontrara cura. Zilda Arns, que fez curso na mesma Faculdade de Saúde Pública da USP em que Leser foi professor, foi das pioneiras na opção pela medicina preventiva de massa com base num método artesanal.

A Pastoral da Criança deu-lhe a oportunidade de pôr em prática sua criativa sensibilidade para explorar em favor da vida dos que iam nascer e dos recém-nascidos as possibilidades da sociabilidade comunitária e vicinal e da cultura popular. Adotou como ideologia profissional a ideologia do médico de aldeia. Rompeu, corajosamente, com a cultura dominante e elitista de recusa da cultura popular no todo, classificada erroneamente por muitos, em todas as áreas, como saber de gentes incultas e ignorantes, quando há nela valores socialmente positivos para a transição cultural baseada na ciência. Zilda Arns fez essa opção naturalmente, socializada que fora numa família rural extensa, muito católica, de cujos valores foi sempre virtuosa mantenedora. Nessa cultura simples e familista estavam as referências criativas para a ação da mulher que um dia decidira ser médica para ser missionária. Sua concepção de missão se fez na linha da fé encarnada, exercitada na prática viva da ideia de missão. No período de sua ação à frente da Pastoral da Criança, que basicamente se iniciou pouco antes do fim do regime militar, a mortalidade infantil no Brasil caiu de 62,9 para 23,6 por mil, redução altamente significativa. Isso foi conseguido com a revalorização do aleitamento materno, o uso do soro caseiro nos casos de diarreia, a utilização da multimistura na alimentação infantil, uma farinha feita com desperdícios, como pó de casca de ovo, semente de melão e folhas popularmente definidas como mato, como a do assa-peixe, rica em ferro. Tudo muito simples, como ela dizia.

Com seu carisma, Zilda Arns mobilizou mais de 260 mil voluntários, acompanhando mais de 1,9 milhão de gestantes e menores de 6 anos de idade em todas as dioceses do Brasil, mais de 4 mil municípios e 40 mil comunidades, trabalho que se estendeu à África e a outros países da América Latina. Ecumênica, nunca restringiu o recrutamento e a missão aos católicos. Ecumênica, também, porque nunca partidarizou sua missão, o que fez da Pastoral da Criança uma pastoral singular, imune ao aparelhismo político que empobreceu significativamente as outras pastorais sociais.

Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Entre outros livros, autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

Alberto Dines ::Onde fica o Haiti

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O Haiti não é aqui nem acolá, está em todo lugar. Incorporou-se à humanidade, converteu-se em dever moral. Era um caos até esta terça-feira à noite, o terremoto fez dele um inferno. Agora pode converter-se em traço de união. Raul Castro e Barack Obama deram o primeiro passo: Cuba autorizou voos americanos no seu espaço aéreo em missões de evacuação e socorro às vítimas da catástrofe.

O percurso Miami-Porto Príncipe ficou 90 minutos mais curto, o mundo ficou mais próximo. Menos arisco: sensível. Dois dias antes, Zilda Arns ofereceu a sua vida para resgatar a palavra solidariedade e recolocá-la nos glossários e agendas internacionais, junto com os 17 soldados e oficiais do Exército brasileiro da missão da ONU.

Na década de 80 do século passado, a ideia de solidariedade converteu-se em instrumento político para derrubar o regime comunista na Polônia, agora pode cimentar um grande pacto humanitário e, através dele, recolocar com dignidade o Haiti no mapa-múndi. Seu lema nacional, por coincidência, é L"Union fait la force.

O verbete solidariedade não consta da primeira edição do dicionarista brasileiro Moraes Silva (1789), embora esteja registrado o verbo solidar, tornar sólido, fundar, corroborar. Mais recentemente o verbo evoluiu, desdobrou-se em consolidar, ação coletiva para fortalecer. Nos escombros da capital haitiana, nas valas comuns onde estão sendo enterradas milhares de vítimas, neste planeta fragmentado e acabrunhado por confrontos intermináveis ressurge um indício de aproximação.

Aproximação sem pré-condições, sem negociações, sem política e artimanhas ideológicas, impulso para juntar-se e ajudar. Nas semanas anteriores ao cataclismo o Brasil aparecia dividido e enfurecido com o 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos. Militares recusavam-se a sentar no banco dos réus enquanto as vítimas, parentes e entidades exigiam a verdade sobre o passado recente. De repente, no Haiti, descobrimos heróis nas fileiras dos "vilões". A busca da verdade não significa obrigatoriamente o estabelecimento de divisões.

Solidariedade é um antídoto para a dissensão, ressentimentos, sentimento mais efetivo, eficaz e, sobretudo, mais justo do que caridade e compaixão. Solidariedade não hierarquiza, iguala, faz da doação um processo mútuo. Autoestima multiplicada. Serve às religiões, aos crentes e descrentes, devotos e céticos. Atenção: os fanáticos a abominam. A eles não interessa qualquer reciprocidade.

O Haiti merece uma pausa em nossa atribulada desatenção. A oportunidade perdida em Copenhague, dezembro de 2009, pode ser revertida a partir de 12 de janeiro de 2010. As 30-50-100 mil vítimas do furor emitido pelas entranhas da terra podem servir de alerta para aqueles que menosprezam o que acontece acima da sua crosta. A solidariedade com a natureza é crucial: ela está atenta, aparentemente não comanda os choques das placas tectônicas, mas não perdoa aqueles que a desrespeitam.

O Haiti já foi metáfora e mote. Nos idos de 1968, a dupla de cantores-compositores, Caetano Veloso e Gilberto Gil, usou o Haiti como protesto e provocação, libelo contra a tirania e intolerância. O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui, com este jogo geográfico driblavam os censores naquela época uniformizados, ainda não togados.

"Pense no Haiti, reze pelo Haiti" diziam então os dois trovadores. Hoje, poderiam acrescentar: "Ai de ti, se esqueces o Haiti."

» Alberto Dines é jornalista

Chile vota sob a sombra do desgaste da Concertação

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Coalizão que governa país há 20 anos se arrisca a assistir à ascensão da nova direita

O esquerdista Eduardo Frei chega ao dia do pleito 1,8 ponto atrás do empresário Sebastián Piñera; desejo de renovação marca campanha

Thiago Guimarães
Enviado Especial a Santiago

Estádio Nacional do Chile, 16 de dezembro de 2009. O ex-presidente Eduardo Frei (1994-1999) lança sua campanha ao segundo turno diante de 5.000 militantes, funcionários públicos e dirigentes sociais. "Quero saudar os presidentes de partidos", diz, e o público responde com uma vaia que se tornou o fato político da noite.

A cena resume a sucessão presidencial que os chilenos definem hoje. Independentemente do resultado, que promete ser o mais renhido dos últimos anos, a eleição foi marcada pela crise da Concertação, a aliança de centro-esquerda que comanda o Chile desde o fim da ditadura (1973-1990) e guiou o país por 20 anos de logros econômicos e sociais.

Após somar apenas 29% dos votos no primeiro turno -o pior resultado presidencial da Concertação-, Frei acirrou a disputa no segundo turno, mas ainda vê a direita chegar como favorita pelas mãos do moderado Sebastián Piñera, bilionário que perdeu o pleito de 2005 para Michelle Bachelet.

Enquanto a direita se uniu em torno de Piñera, vencedor do primeiro turno com 44%, a centro-esquerda pela primeira vez foi dividida em três nomes no primeiro turno. Entre eles Marco Enríquez-Ominami, 36, deputado dissidente da Concertação que, sem partido, teve 20% dos votos (1,3 milhão).

"Subestimamos o potencial de Ominami e um descontentamento de base que havia", disse à Folha o deputado eleito Pepe Auth, que na última semana de dezembro renunciou à presidência do PPD -uma das quatro siglas da Concertação.

"Se os caciques da Concertação renunciarem, há possibilidade de acordo [com Frei]", disse Ominami à Folha após o primeiro turno. Do alto de sua votação, cobrava a renúncia dos quatro presidentes que o haviam impedido de participar das primárias da coalizão para escolha do candidato -estopim de sua saída da aliança.

Como a renúncia coletiva não veio -os líderes dos dois maiores partidos da coalizão, o Socialista, de Bachelet, e a Democracia Cristã, de Frei, se recusaram a sair-, o apoio a Frei chegou morno, a quatro dias do pleito. "Os finalistas são parte do passado", disse Ominami."O conceito de renovação foi o mais forte desta eleição", afirma o analista político Cristóbal Bellolio. Foi justamente a falta de renovação de seus quadros, expressa na candidatura de um ex-presidente, que agravou o desgaste natural da coalizão após 20 anos no poder.

No segundo turno, a tônica da campanha foi a busca pelos votos de Ominami. Frei e Piñera assumiram propostas e cooptaram membros da campanha do deputado.

Diante da ameaça de derrota da Concertação, o governo Bachelet, que ostenta a maior aprovação da história recente do país (cerca de 80%), deflagrou uma ofensiva no segundo turno. Cedeu ministros à campanha de Frei e reforçou o discurso em temas como direitos humanos para tentar reagrupar a esquerda.

A estratégia mostrou resultado: pela última pesquisa Mori, apenas 1,8 ponto separavam Piñera e Frei -empate técnico.

Embora seja a eleição mais importante nos últimos anos, por apostar o futuro da coalizão política mais exitosa do país, a campanha não animou os chilenos. Reflexo de um certo consenso sobre os rumos do país -Frei e Piñera não defendem mudanças radicais-, mas também de desencanto com a política. Exemplo: como o registro eleitoral não é obrigatório (só precisa votar quem está inscrito), no primeiro turno os votos válidos representaram apenas 56% da população.

Sobre reflexos da eleição no Brasil, diplomatas e empresários brasileiros no Chile coincidem em que não haverá grandes mudanças.

Entrevista: "Tentamos mostrar Frei como estadista"

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O jornalista Juan Carvajal, 57, deixou o governo Michelle Bachelet um dia após o primeiro turno da eleição presidencial, em dezembro. Como parte do esforço governista pela candidatura de Eduardo Frei, trocou a Secretaria de Comunicações do governo pela chefia da mesma área na campanha.

À Folha Carvajal reconheceu que a propaganda do primeiro turno escondeu o candidato e disse que a campanha cresceu ao incorporar propostas de setores dissidentes da esquerda.

FOLHA - Quais foram os eixos da campanha de Frei?

JUAN CARVAJAL - O segundo turno é um processo curto, um mês. Nosso objetivo foi mostrar o candidato. Apresentá-lo em sua dimensão de estadista e gerar a ideia de que não dá no mesmo quem governe.

FOLHA - Então não mostraram o candidato o suficiente?

CARVAJAL - Faltou mais exibição, e isso não tem a ver com Frei, mas com o desenrolar da campanha.

FOLHA - Quais foram os momentos-chave da campanha?

CARVAJAL - No segundo turno, em propostas, o anúncio da reforma tributária e do reconhecimento do papel do Estado em direitos básicos. Em política, Frei anunciando que vai montar governo com autonomia ante os partidos. O debate, que o mostrou como um grande líder, e o programa de TV que ajudou a levar otimismo e energia aos partidários da Concertação.

FOLHA - Como buscaram os votos de Ominami?

CARVAJAL - O programa de hoje de Frei tem muitas das propostas de Ominami, e isso resultou em que ele e seu pai, o senador Carlos Ominami, terminaram o apoiando.

FOLHA - Quais são as debilidades de Piñera?

CARVAJAL - Sua falta de clareza até hoje sobre o tema de política e negócios. Ou se dedica aos serviços públicos ou aos negócios.

FOLHA - Por que Frei não venceu o primeiro turno?

CARVAJAL - A principal razão é que houve outras candidaturas que representavam a sensibilidade que historicamente expressou a Concertação.

Eleições 2010 – Rio de Janeiro

DEU EM O DIA/ Informe do dia

Coligação 1


· Problemas à vista entre os partidos que apoiarão a provável candidatura de Gabeira ao governo. O DEM de César Maia quer se unir ao PV,PPS,e PSDB para a disputa de vagas de deputados federal e estadual. Na prática, é como se todos formassem um só partido.


Coligação 2

· Só que o PV quer ir para briga sozinho, acha que será o maior beneficiado pela candidatura Gabeira PSDB e PPS até conversam sobre coligação, mas preferem um casamento se o DEM.

BOM DIA! Carnaval Rio de Janeiro 2010 - G.R.E.S. Vila isabel - Samba-enredo