terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A revolução monetária de Eric Cantona:: Luiz Gonzaga Belluzzo

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Enquanto se agrava a saúde financeira dos periféricos da Eurolândia, grassa o dissenso entre as autoridades do Velho Continente. Diante de tal confusão e da arrogância dos mercados que, diga-se, foram salvos da derrocada pela ação generosa dos bancos centrais e dos Tesouros, o francês Eric Cantona, ex-atacante do Manchester United, recomendou aos concidadãos que saquem o dinheiro de suas contas e levem a grana para casa. Marcou a data: 7 de dezembro de 2010.

Li em um site de notícias que Cantona divulgou um vídeo para apoiar a campanha da associação de ajuda social francesa Abbé Pierre, uma das mais conhecidas do mundo na defesa dos pobres e das pessoas sem domicílio fixo. "Se 20 milhões de pessoas forem ao banco levantar o dinheiro, o sistema afunda-se e a revolução faz-se sem armas nem sangue, é tudo muito simples", acrescentou o agora ator. "Depois as pessoas vão nos ouvir, podem crer", concluiu. Até a semana passada mais de 12 mil internautas haviam aderido à "revolução monetária e financeira" proposta pelo ex-jogador.

O economista francês Frederic Lordon reconhece que a convocação de Cantona exprime a cólera popular, mas está apoiada em um silogismo perigoso. A premissa maior da revolta é "os bancos e os banqueiros são a causa de nossos males (esquemático mas verdadeiro, diz Lordon) ; premissa menor, "ora, os bancos vivem de nossos depósitos" - (parcialmente verdadeiro); consequência, "logo para abater os bancos e se livrar dos incômodos, basta sacar os depósitos" - tecnicamente verdadeiro mas, in fine catastroficamente falso, conclui o economista. Lordon recomenda que Cantona se apresente imediatamente diante do caixa de seu banco, sob pena de ficar sem nenhum: os bancos e suas reservas fracionárias são incapazes de atender à demanda generalizada e abrupta de conversão dos depósitos a vista em espécie.

O economista francês está menos preocupado com o resultado das peripécias de Cantona do que com "a perda das referências cognitivas coletivas que em tempos normais orientam o comportamento dos possuidores de riqueza... A perda de toda a referência interpretativa torna problemáticas as políticas econômicas, permanentemente ameaçadas de produzir resultados contrários aos almejados."

A marca registrada da finança contemporânea é a gestão público/privada da moeda e do crédito. Já escrevi em outra ocasião que a crise financeira global desvendou o caráter político-jurídico da moeda e a natureza "coletivista" e hierárquica do sistema de crédito, cuja função inescapavelmente pública é, em tempos "normais", delegada à administração das instituições privadas. As massas de capital líquido das empresas e a poupança das famílias estão cada vez mais concentradas sob o comando de grandes investidores institucionais. São fundos de pensão, fundos mútuos e fundos de hedge que - operando em vários praças financeiras - usam intensamente a técnica de "alavancar" posições em ativos. Simultaneamente, a desregulamentação financeira rompeu os diques impostos - depois da crise dos anos 30 - à ação dos bancos comerciais que voltaram a operar como supermercados financeiros e passaram a se valer da "securitização" de créditos, o que facilitou o seu envolvimento com o financiamento de posições nos mercados de capitais e em operações "fora do balanço" com derivativos.

Essa nova configuração institucional acirrou a concorrência entre as instituições financeiras na atração da clientela e na aceleração das inovações financeiras. Os gestores de portfólios - bancos, fundos mútuos e de pensão - no afã de carrear mais recursos sob o seu controle e na ânsia de bater os concorrentes, procuram exibir as melhores performances. Os administradores mais ousados abrem espaço para produtos e ativos de maior risco, em suas carteiras alavancadas.

A estabilidade da economia monetária depende, portanto, das complexas relações entre os fundos coletivos administrados pelos comitês privados de avaliação do crédito e a capacidade do Estado de orientar o comportamento e as expectativas dos agentes privados empenhados na liça da acumulação de riqueza monetária. Esses trabalhos do Estado são executados pela política monetária do Banco Central em conjunto com a gestão da dívida pública pelo Tesouro.

Quando mencionam as instituições "grandes demais para falir", os especialistas e quejandos deixam escapar do inconsciente a verdadeira natureza do complexo financeiro-monetário. Na forma em que está constituído nas economias capitalistas contemporâneas o complexo financeiro-monetário - além de desempenhar as funções de administrador do sistema de pagamentos e provedor de liquidez, ou seja, de cuidar da "infraestrutura do mercado - transfigurou-se no que Minsky chamou "money manager capitalism".

Essa é a etapa mais avançada do capitalismo porque nela a capacidade de mobilização dos capitais se transforma, na esfera produtiva, em uma força de supressão das barreiras tecnológicas e de mercado - em particular daquelas que decorrem do aumento das escalas de produção, com imobilização crescente de grandes massas de capital fixo. As instituições financeiras que participam da constituição e gestão das grandes empresas produtivas promovem a supressão da concorrência mas, ao fazer isso, estimulam a conquista de novos mercados, provocando o acirramento da concorrência entre blocos de capital e impulsionando a internacionalização crescente da concorrência. Vide a relação China-Estados Unidos.

O ciclo de expansão recente e sua crise demonstraram, no entanto, que a acumulação de riqueza monetária pode se desvencilhar dos incômodos da produção material. Essa proeza não é sintoma de deformação, mas de aperfeiçoamento da "natureza" do "money manager capitalism". Ele se distingue pelo caráter universal e permanente dos processos especulativos e da inovação criativa, capazes de suplantar as façanhas mais espetaculares do que aquelas imaginadas por Karl Marx ao desenvolver o conceito de "capital fictício".

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

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