quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A "oração pra Xangô" desata o nó da saúde :: Elio Gaspari

DEU EM O GLOBO

Lula defende um novo tipo de imposto, punindo a patuleia por aquilo que o governo cobrou e não entregou

Numa defesa marota da ressurreição da CPMF, Nosso Guia disse o seguinte: "Independentemente de quem venha a ser ministro da Saúde, ele sabe que tem uma tarefa imensa de organizar os deputados e senadores para que a gente possa, sei lá de que forma, arrumar recursos para cuidar da saúde."

Lula governou o Brasil durante oito anos. Entre 2003 e 2008, quando o Senado extinguiu a CPMF, ela rendeu R$186,4 bilhões. Desse ervanário, cerca de R$75 bilhões foram para a saúde.


De cada dez reais tomados para a melhoria do atendimento em hospitais e serviços médicos seis foram gastos pelo governo de Lula para pagar outras contas. Ele sustenta que, com o fim do tributo, "perdemos mais de R$150 bilhões". Essa cifra é produto do delírio estatístico de Nosso Guia. Um ano depois da extinção do imposto, a carga tributária dos brasileiros em relação ao PIB estava 0,7% acima do patamar de 2007. A CPMF foi embora, mas a tunga aumentou.

Daqui a duas semanas Lula termina seu governo carregando dois fracassos de gestão na área da saúde. Um é a herança tucana do Cartão SUS. Segundo a propaganda que prosseguiu na gestão petista, cada brasileiro receberia um plástico que permitiria o gerenciamento de sua saúde na rede pública. Em tese, a providência racionalizaria os atendimentos e evitaria fraudes. Na prática, virou mais uma fraude. Gastaram-se R$400 milhões, compraram-se equipamentos obsoletos, realizaram-se licitações suspeitas e o Cartão SUS não existe. Até hoje não se ouviu do governo um só diagnóstico do fracasso.

Pelo contrário, a cada dois anos a marquetagem anuncia o renascimento da promessa. Em 2008, o ministro José Gomes Temporão determinou a "reformulação" do projeto. Cartão, que é bom, nada.

O segundo fracasso de gestão do governo de Nosso Guia relaciona-se com o ressarcimento ao SUS, pelos planos de saúde privados, dos atendimentos de seus segurados na rede pública.


Novamente, essa é uma questão que se arrasta com a herança tucana. Se a Agência Nacional de Saúde arrecadasse o que a lei permite, a Viúva coletaria R$5 bilhões anuais. Em 2008, a ANS arrecadou R$2,6 milhões. Pode-se estimar que ela consome R$10 milhões anuais para cobrar o que não recebe. Isso, desprezando-se o que o Ministério gasta em propaganda. Em janeiro, o ministro Temporão lançou o "Sistema Eletrônico de Ressarcimento ao SUS". Bobo foi quem acreditou, pois a rede que cuidava disso estava fora do ar desde 2006.

Nos dois casos, não é preciso recriar imposto algum, até porque, recriando-o, pouca coisa mudará. É preferível seguir oração "pra Xangô", de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes: "Pôr prá trabalhar, gente que nunca trabalhou."

O governo pode explicar por que o Cartão SUS e o ressarcimento atolaram e abrir a sério a discussão do financiamento da saúde. O sistema misto existente no Brasil associa uma cobertura universal a um sistema de seguros privados. Nele há três pontas: uma, pública, arrecada; outra, particular, cobra; na terceira fica a choldra, pagando e sofrendo. A maioria parlamentar do governo deveria ser usada para reformar um sistema sequestrado por interesses burocráticos e empresariais. Nos Estados Unidos, o companheiro Obama desatou nos um nó muito mais complexo.

Elio Gaspari é jornalista.

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