domingo, 26 de dezembro de 2010

Além das guerras de cultura :: Luiz Sérgio Henriques

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Sociedades modernas, por mais laicas e secularizadas que sejam, costumam ser periodicamente sacudidas por guerras culturais mais ou menos virulentas, que desafiam o princípio de tolerância e a neutralidade do Estado democrático diante da pluralidade de crenças e religiões ou mesmo da parcela dos cidadãos que, de diferentes modos, são agnósticos ou não religiosos.

As recentes eleições americanas e brasileiras, que transcorreram segundo dinâmicas políticas e econômicas muito diferentes e dificilmente podem ser comparadas, tiveram em comum, no entanto, surtos ou manifestações típicas daquele tipo de guerra, em que se confrontam valores absolutos e inconciliáveis. O repertório de temas, como é evidente, pode variar em cada contexto, mas inevitavelmente abrange questões como o aborto, o divórcio, a pesquisa com células-tronco, a união entre pessoas do mesmo sexo, bem como, mais amplamente, o lugar das religiões na comunidade política.

Observadores qualificados sustentam que, tanto no caso americano quanto no nosso próprio caso, esses temas tiveram, tudo somado, um papel subalterno e não definiram resultados num sentido ou no outro.

A fragorosa derrota dos democratas nas eleições americanas teve, por certo, o componente extremado da tradicional Christian right e do movimento Tea Party, com sua difusa capilaridade, seu ativismo e suas conexões com uma certa interpretação providencial da experiência histórica dos Estados Unidos. E, pelo que se conhece das suas expressões políticas e intelectuais mais em evidência, a esse ativismo do Tea Party não é estranha uma instrumentalização muitas vezes grosseira do arsenal da guerra entre culturas, como quando atribui ao presidente Barack Obama uma filiação religiosa alheia aos valores tradicionais ou uma orientação coletivista contrária ao individualismo americano. Em princípio, Obama poderia até ser muçulmano - mas de fato não o é, assim como também não é, inserido que está na respeitada tradição "liberal" rooseveltiana, nem socialista nem comunista.

A derrota do Partido Democrata, segundo a maioria dos analistas, teve mais que ver com o relativo fracasso da estratégia econômica de Obama nestes tempos de Grande Recessão. Se confiarmos na janela aberta sobre os Estados Unidos pelos artigos de Paul Krugman, a qualidade e o alcance da intervenção pública em apoio à demanda declinante deixam muito a desejar. Suficientes para impedir a quebra de grandes bancos e outras empresas, evitaram o pior, mas sem dar ao americano comum alguma confiança em relação ao emprego e ao resgate da hipoteca da casa própria.

O voto americano foi, portanto, majoritariamente pragmático e movido por motivações econômicas. Por certo, nele também influíram os valores tradicionais da direita e da extrema-direita, mas não por si sós. A grande agressividade desses setores contra Obama terá sido um elemento dissuasor contra medidas "rooseveltianas" no terreno da economia por parte da presidência, mas seu dano maior, se levarmos em conta o que diz Krugman, é o papel desempenhado no declínio da cena pública americana, como motor mais aguerrido de uma oposição republicana que beira a irracionalidade.

A situação brasileira, na passagem do primeiro turno para o segundo turno, também viu a movimentação de temas e atores religiosos, muito particularmente na questão do aborto. E, a exemplo do caso americano, essa movimentação não parece ter sido em momento algum decisiva eleitoralmente, muito embora os então principais candidatos, em maior ou menor grau, tenham ambos se comportado de modo subalterno diante do argumento religioso tradicional, que, de resto, se distancia das soluções encontradas para a questão dos direitos reprodutivos na esmagadora maioria das democracias avançadas.

Aqui tem pouco interesse a discussão em si do aborto. No entanto, como a ninguém é dado ignorar, esse é um drama vivido solitariamente pelas mulheres, especialmente as pobres, com imensas repercussões no terreno da saúde pública, embora, pela situação de clandestinidade, não se consiga quantificá-lo nem muito menos, a partir daí, lutar tenazmente para diminuir sua incidência como desesperado recurso contraceptivo. Também não está em questão a legitimidade da expressão dos pontos de vista religiosos tradicionais, em ocasiões eleitorais ou de qualquer outro tipo. O Estado constitucional, por definição, é o espaço para a negociação possível de perspectivas conflitantes, ainda quando estas se apresentem como portadoras de exigências inegociáveis e os acordos só possam ser precários e experimentais.

O que tem maior interesse é contribuir para apetrechar as forças políticas e culturais que se voltam para a modernização dos costumes e da vida civil, tornando-as mais capazes de escapar das armadilhas da guerra entre culturas, esta mesma que acaba de se insinuar na cena brasileira e por certo reaparecerá mais adiante. Paradoxalmente, o caminho mais promissor parece consistir em revalorizar o papel das próprias religiões e os elementos insubstituíveis que trazem para a convivência de todos, ao escutarem de modo muito particular os humilhados e ofendidos, os que foram postos à margem das promessas do moderno.

Sem que ninguém abra mão das próprias convicções, como nos propõe o último Habermas, cidadãos religiosos e não religiosos podem majoritariamente adotar uma estratégia autorreflexiva que ilumine especialmente os limites das respectivas tradições. E, sem deixar de ser laico e secularizado - um traço que cabe a todos preservar -, o Estado constitucional pode ser, entre nós, a moldura de um multifacetado debate público que nos poupe dos argumentos muitas vezes pouco razoáveis que têm paralisado e dividido outras sociedades em campos irredutíveis.

Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci em português site:www.gramsci.org

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