segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O lulismo sem Lula:: Luiz Werneck Vianna

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Esta coluna, pelos idos de agosto, já em meio à sucessão presidencial, deixou-se tentar por uma metáfora meteorológica, anunciando que ao longe soprava um vento sudoeste, sinal certo de chuva grossa. Bem, as chuvas chegaram, como se pode constatar das palavras, em um registro quase filosófico, como que apenas observando a mudança climática, com que o ex-ministro José Dirceu dirigiu-se em palestra a sindicalistas. Não será Lula quem sucederá a Lula, mas Dilma, e nem mesmo os marinheiros de primeira viagem, que são tantos, podem ficar indiferentes a mudanças de tal envergadura no regime dos ventos.

Fora da tripulação, o grande timoneiro desses últimos oito anos deverá, é claro, manter sua influência sobre a sua sucessora, embora, na prática, mesmo isso não seja uma operação fácil, sempre sob o risco de fragilizá-la na chefia do Estado e dos negócios da administração pública.

Ainda mais que, a se confiar nos relatos sobre sua biografia, ela aparenta ser suscetível a arranhões em sua autoridade. Sem Lula, é trivial, o lulismo sai do governo, e o que fica nele é o PT e sua imensa base aliada, à testa o PMDB, com um dos seus principais condestáveis, Michel Temer, no posto estratégico da Vice-Presidência da República.

O tempo é novo e próprio à navegação

O programa do novo governo, dito à saciedade na campanha eleitoral que ainda transcorre, não é o de fundar principado novo, e sim o de imprimir continuidade às linhas mestras do que sucede, e personagens como Antonio Palocci, Henrique Meirelles e Nelson Jobim, salvo incidentes extraordinários, devem ocupar postos-chave. Da base aliada, reanimados por prováveis vitórias eleitorais, deverão permanecer no proscênio políticos de genuína cepa conservadora, como José Sarney, Renan Calheiros, entre tantos outros de perfil semelhante, todos comprometidos, no essencial, com a continuidade dos princípios e práticas do governo Lula, principalmente com a sua expressão pluriclassista, em um arco que vai do agronegócio, passando pelo grande empresariado e pelo sindicalismo, ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

Tais princípios e práticas não estão enunciados em um programa, consistindo, na verdade, em uma política a que se chegou erraticamente, reagindo-se às contingências das conjunturas interna e externa, particularmente em dois momentos cruciais: a crise, em 2005, do chamado "mensalão", que demonstrou ao governo a necessidade de ampliar a sua base de sustentação congressual, levando o governo à incorporação do PMDB; e a crise, em fins de 2008, do sistema financeiro mundial.

As respostas aos duros desafios que se apresentaram nessas oportunidades, a primeira delas admitindo a possibilidade de um impeachment, a segunda, pondo em risco a economia do país, acabaram por se traduzirem em um sistema de orientação política não escrito, implicando em uma reinterpretação, em chave positiva, da história brasileira, em especial com a valorização do papel do seu Estado.

O cerne desse sistema de orientação está no seu caráter pluriclassista e pluripartidário, reafirmado sem equívocos na campanha da candidata situacionista, em seu objetivo de consolidar e aprofundar a experiência do capitalismo brasileiro, tendo em vista inclusive a ultrapassagem dos seus limites nacionais, para o que conta com o Estado e suas agências produtivas e financeiras como instrumentos estratégicos. Dele igualmente fazem parte políticas destinadas à inclusão social de setores marginalizados, na forma dos programas de assistência social em curso.

O lulismo é isso e mais as habilidades de comunicação do seu inventor, especialmente na sua relação compadecida com as massas mais pobres da população. Reinterpreta, pois, a história do país, ao se por em linha de continuidade com ciclos afirmativos da modernização brasileira, como os de Vargas, o do JK e o do regime militar, contrapondo-se à versão do PT, que, desde as suas mais remotas origens, foi refratária a políticas centradas na questão nacional e em estratégias de modernização "pelo alto".

Não há motivo para espanto com o diagnóstico de que, em um eventual governo Dilma, se assim o quiserem as urnas, poderão ocorrer fortes tensões entre o lulismo e o PT - certamente com sua nova representação congressual bem mais encorpada -, que não conhecerão mais a arbitragem de Lula detendo os poderes de chefe de Estado. No caso, é de se esperar que as intervenções escoradas no carisma cedam lugar à política, inclusive porque Dilma, intocada por esse sortilégio, deverá governar com a aliança que suporta sua candidatura - é falso dizer, não se perde por esperar, que seus aliados não tenham ideias, apenas interesses -, e o PMDB, como já se sabe, se não compuser a maior bancada nas duas casas congressuais, ficará bem perto disso.

Por onde se devassa o horizonte, os sinais são os da volta da política. Os caminhos de hoje, filhos da contingência, saberão encontrar justificação no terreno aberto da batalha das ideias? Haverá intelectuais entre nós capazes de defender persuasivamente, para além dos sussurros de hoje, uma via de "nacionalismo revolucionário" em aliança com a burguesia, y compris o agronegócio? A esquerda está pronta a se reencontrar com os caminhos da democracia como valor universal, que já encontrou abrigo até em setores do próprio PT? De qualquer forma, o tempo é novo e próprio à navegação, mesmo que se saiba, de ciência certa, que a rota que tiver curso vai se defrontar com o carisma de Lula rondando por aí.


Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras

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