terça-feira, 14 de setembro de 2010

Cantinflas não é Tiririca :: Marco Antonio Villa

DEU EM O GLOBO

Vez ou outra volta à tona o tema “mexicanização” do Brasil.

Agora vinculado a um provável domínio do Partido dos Trabalhadores da cena política como resultado das eleições de outubro.

O PT seria a versão nacional do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Nada mais falso. O longo período de domínio do PRI esteve vinculado à revolução de 1910, à Constituição de 1917 e seus direitos sociais, à reforma agrária (só a presidência Cárdenas distribuiu 18 milhões de hectares) e às figuras que marcaram o processo revolucionário, especialmente os líderes camponeses Emiliano Zapata e Pancho Villa.

Depois da grande turbulência de 1910-1920 — e das dezenas de milhares de mortos — teve início a primeira tentativa de estabilização com a eleição de Álvaro Obregón para a presidência e, quatro anos depois, de Plutarco Elias Calles. Contudo, as divergências políticas continuaram a ser resolvidas no terreno militar. Basta recordar a guerra dos cristeros, quando houve o confronto aberto entre Estado e a Igreja católica em uma guerra civil com 80 mil mortos. Em 1928, Obregón foi novamente eleito presidente, mas acabou morrendo, vítima de um atentado (na década anterior dois presidentes já tinham sido assassinados: Francisco Madero e Venustiano Carranza).

A fundação do Partido Nacional Revolucionário (PNR), em 1929, teve como mentor o ex-presidente Calles. O objetivo era dificultar a intervenção dos generais nas deliberações governamentais, transferindo as decisões e as divergências do campo militar para o interior do partido. Formado por chefes militares e civis da revolução, o PNR foi um instrumento do Estado para impor a sua vontade: fora dele nenhuma liderança política, por mais expressiva que fosse, poderia sobreviver.

Em 1938, o PNR transformou-se em Partido da Revolução Mexicana, e oito anos depois em Partido Revolucionário Institucional. O PRI funcionou como um verdadeiro partido de Estado, lançando seus tentáculos sobre a sociedade civil, asfixiando a vida política e transformando as eleições em mero ritual confirmatório da imposição partidária.

O caso brasileiro é muito distinto.

Apesar dos pesares, temos uma democracia em funcionamento. Aqui, a sustentação política do governo tem uma base plural. Se os “movimentos sociais” estão sob a tutela do PT, o movimento sindical, assim como os governos estaduais, estão partilhados entre vários partidos. A máquina do Estado, incluindo as empresas estatais, não é monopolizada pelos petistas, mesmo que estes controlem as áreas mais importantes, onde estão alocados os maiores recursos orçamentários, origem de negócios nada republicanos.

Também, diferentemente do México, a mística que vai ser preservada não é a da revolução, mas de Lula. O culto pessoal chegou a um ponto nunca visto no Brasil. E veremos muito mais entre a eleição de outubro e a saída formal de Lula da presidência, a 1 de janeiro de 2011. O queremismo de 1945 vai parecer brincadeira infantil frente ao espetáculo de verdadeira comoção pública.

Lula vai percorrer o país como um verdadeiro Dom Sebastião. Só que, diferentemente do rei português, vai anunciar o seu “desaparecimento” e deixar no ar o “retorno”.

Tudo no melhor estilo Lula: vai encerrar o governo de onde nunca saiu em oito anos — o palanque.

O PT não é o PRI. Não tem como instrumentalizar uma legenda revolucionária.

Não teve líderes históricos, uma história épica, tal qual a Revolução de 1910. Enquanto no México o PRI insistia em dizer que continuava a luta de Emiliano Zapata, para o PT restou ter como referência José Dirceu.

A função do PT é conceder alguma coerência ideológica à ampla base do governo. Produz o discurso que vai ser repetido pelos outros partidos, indo do PP até o MST. O PT solda a ampla aliança governamental, dando organicidade ao saque do Estado.

Ou, na linguagem de Michel Temer, à partilha do pão.

Numa mesa onde aparentemente cabem todos, o governo foi estabelecendo laços de dependência entre figuras tão díspares como Jader Barbalho e José Rainha. Todos tributários do Estado e da boa vontade do presidente para seus múltiplos negócios, desde um ranário milionário até um assentamento improdutivo.

Na eleição de 2000, o esgotamento do modelo econômico e as pressões da sociedade civil mexicana acabaram levando o domínio do PRI à derrocada.

No Brasil o domínio lulista (mais que petista) pretende permanecer longo tempo no poder. Mas, como se alicerça numa base política frágil, tende a ter vida curta.

Marco Antonio Villa é historiador.

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