domingo, 29 de agosto de 2010

Um espectro anacrônico:: Luiz Sérgio Henriques

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Um espectro do passado ainda parece rondar o pensamento da esquerda, influenciando não só posições pessoais de intelectuais e políticos, mas até mesmo a orientação diplomática oficial de vários países, especialmente na América Latina. Um fantasma persistente e, como todo ser da sua natureza, não destituído de velhas e boas razões históricas: trata-se do antiamericanismo sistemático, considerado como princípio e recurso mobilizador de massas, muitas vezes em torno de soluções caudilhescas e autoritárias, contra a realidade impalpável do "império".

Dispensamo-nos assim de uma visão articulada da realidade americana, dos seus enormes desafios e contradições, dela só conservando a dimensão intervencionista decorrente do sabido papel hegemônico dos Estados Unidos no sistema internacional: o papel de "potência indispensável", que muitas vezes, na percepção autoirônica certa feita publicada na Foreign Affairs, torna aquele país o mais perigoso do mundo, mais do que qualquer membro de qualquer "eixo do mal" que se imagine...

Atua também na permanência do fantasma antiamericano um legado do século 20. Um século que foi também o do comunismo histórico, formado em torno da antiga União Soviética, e que nos acostumou a ver o mundo dividido em campos contrapostos: por um lado, exatamente, o império e sua rede de lacaios e prepostos; por outro, as forças do progresso, cujo centro era a URSS e o socialismo real, mas que abrangia outros sujeitos, como os partidos comunistas no Ocidente e os movimentos de libertação nacional, motores de uma "via não capitalista de desenvolvimento".

Essa contraposição de campos não existe mais, mas o mesmo não se pode dizer das categorias que gerou. Situação paradoxal, que, por isso mesmo, nos intima ao estudo minucioso da realidade norte-americana: uma democracia cruzada por tensões como qualquer outra, talvez vivendo um momento de declínio histórico e de crescentes desigualdades - e, apesar de tudo, a mais antiga democracia política em vigor, com valores que merecem atenção e mesmo resgate.

De fato, da cultura americana provêm impulsos potencialmente catastróficos, como os que teorizaram esta infinita e insolúvel "guerra contra o terror", expressão prática do "choque de civilizações" e da recusa unilateral em identificar e explorar produtivamente valores comuns entre as democracias ocidentais e o Islã. Também provêm, na mesma direção, expedientes patentemente falsos, como os que levaram a presidência bushiana a invadir o Iraque sob o pretexto da existência de "armas de destruição em massa". Para não falar do pesadelo em que se transforma a cada dia o Afeganistão, que comprova os limites da "linguagem" dos mísseis e da guerra, mesmo quando o inimigo são fanáticos taleban ou, pior ainda, terroristas da Al-Qaeda.

Mas os Estados Unidos não são apenas isso. A presidência Obama, mesmo em meio à hostilidade implacável de uma direita republicana que combate todas e cada uma das suas iniciativas, e também em meio às suas próprias incertezas, expressa, às vezes com força, "uma outra América". Apela aos pais fundadores da velha República, à letra e ao espírito dos seus textos, revigorando-os da forma possível e mostrando à esquerda (de todos os matizes) que o liberalismo clássico não é um legado "burguês" imprestável ou uma forma de vida e de pensamento cuja contestação autoriza a aliança com tiranias teocráticas e outros fundamentalismos.

Em recente ocasião, comemorando em plena sede do governo uma cerimônia muçulmana - o fim do jejum do Ramadã -, o presidente Barack Obama reanimou o espírito dos fundadores ao exaltar não apenas a tolerância, mas o respeito à liberdade religiosa como elemento constitutivo do país. Concordando, em conjuntura pré-eleitoral muito difícil, com a construção de uma mesquita nas proximidades do Marco Zero, que assinala em Nova York o local do brutal atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, Obama realça uma América que nasceu em oposição às guerras religiosas europeias e, portanto, tem também, entranhada em si, ao lado da belicosidade imperial em que tantas vezes viria a incorrer, uma corrente profunda de pacifismo - de resto, presente em todas as democracias, por mais imperfeitas ou defeituosas que sejam.

Obama, neste pronunciamento, tem clareza sobre o fato de que, se a religião floresceu na América do Norte, é porque os cidadãos tiveram o direito de escolher em que ou em quem acreditar, ou mesmo o direito de não acreditar em religião alguma. E, coerentemente, diferencia o Islã da Al-Qaeda, reconhecendo que o terror fundamentalista assassinou mais muçulmanos do que membros de qualquer outra religião, referindo-se até mesmo àqueles muçulmanos que morreram no 11 de Setembro.

Seria deliberada ingenuidade ignorar a incoerência da inútil e por demais prolongada guerra americana no Afeganistão em relação a esse conjunto de valores de tolerância e respeito. A ameaça do terror e das variadas formas de fundamentalismo, inclusive quando assume o poder de Estado, como no Irã teocrático da lapidação de mulheres e do sistemático enforcamento de opositores, é real e merece, da parte dos democratas de todo o mundo, respostas só muito subordinadamente baseadas na força. O essencial sempre é construir formas de intercâmbio e tradução recíproca entre culturas, estimulando a emergência dos elementos de convivência e universalismo presentes em cada uma das "civilizações" humanas supostamente em choque.

Sobretudo, no plano prático, as incongruências do Estado americano, no Iraque, no Afeganistão ou em qualquer outro ponto, devem ser contrabalançadas e corrigidas por vigorosos movimentos da sociedade civil, como os que, há uma geração ou pouco mais, contribuíram para liquidar a aventura imperial no Vietnã.


Ensaísta, é tradutor e um dos organizadores das obras de Antonio Gramsci em português
(www.gramsci.org)

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