sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O sistema proporcional no Brasil: Origens, características e efeitos

Noelle Del Giudice /Universidad Autónoma de Madrid

O sistema proporcional de lista aberta é adotado no Brasil desde as eleições de 1945. O país é um dos que adota essa modalidade de sistema proporcional por mais tempo, juntamente com a Finlândia. O sistema foi previsto pela primeira vez em 1935, e segue até hoje com poucas modificações. Este trabalho busca examinar e apresentar as origens, características e efeitos deste sistema tão peculiar.

Origens do sistema eleitoral

A representação proporcional surgiu pela primeira vez no Brasil em 1932, por ocasião da elaboração do primeiro Código Eleitoral Brasileiro. O sistema adotado não era exclusivamente proporcional, mas um de tipo misto paralelo. Nas eleições para a Câmara dos Deputados uma parte dos representantes era eleita por um sistema de maioria simples, e outra parte através de regras proporcionais.

De acordo com o sistema eleitoral adotado pelo Código de 1932, era possível votar em tantos nomes quantos fossem os assentos de cada distrito mais um, independente dos partidos, ou seja, era possível votar em candidatos pertencentes a partidos distintos. Também era possível a formação de coalizões entre os partidos.

O registro de candidatos sem partidos também era uma possibilidade prevista pelo Código. Os votos dados aos primeiros nomes de cada cédula eram somados para se obter a votação total de cada partido. Eram eleitos todos os candidatos que individualmente alcançavam o quociente eleitoral, estabelecido pela Quota Hare, além dos candidatos mais votados de cada legenda que tivessem alcançado esse quociente. (Nicolau, 1993:76). Os demais nomes que constavam na cédula, eram somados seus votos, independentemente de seus partidos, e os nomes mais votados ocupavam as cadeiras que não haviam sido distribuídas segundo o método anterior. (Nicolau 1993:76).

Tal sistema foi utilizado em somente duas eleições, a de 1933 (para a Assembléia Constituinte que elaborou a Constituição de 1934) e em 1934 (para escolher os representantes da Câmara dos Deputados). Em decorrência do grande número de candidatos e da complexidade do processo de apuração dos votos, os resultados das eleições demoravam meses para serem publicados.

Em 1935, a lei eleitoral foi reformada e passou a adotar um sistema eleitoral estritamente proporcional para deputados federais, estaduais e vereadores. Em 1937, o então Presidente da República, Getúlio Vargas levou a cabo um golpe de estado. Os partidos foram proibidos de funcionar, todas as eleições foram suspendidas e foi fechado o Congresso Nacional (Nicolau, 2002 b:43). Dessa forma, o novo sistema eleitoral só começou a funcionar nas eleições de 1945 para a Assembléia Constituinte.

O sistema eleitoral adotado em 35 funcionava da seguinte forma: os distritos eleitorais coincidiam com a delimitação territorial de cada uma das Unidades Federativas (Estados). Os partidos políticos podiam competir sozinhos ou em coalizões. Não era permitida a competição de candidatos sem partido e um mesmo candidato podia competir em diversos distritos e para diferentes cargos (Nicolau 2002 b:45). Os partidos ou coalizões apresentavam uma lista de candidatos sem definir a ordem de preferência (lista aberta). Cada eleitor tinha direito a um voto em qualquer um dos candidatos apresentados.

Após a eleição, calculava-se o quociente eleitoral segundo a Quota Hare, ou seja, pela divisão do número de todos os votos, inclusive os em branco, pelo número de cadeiras que deveriam se ocupadas no distrito. Em seguida, todos os votos dos candidatos de um mesmo partido ou coalizão eram somados para determinar quantas cadeiras seriam conferidas a cada um deles.

Depois, eram contados os votos individuais de cada candidato de um mesmo partido ou coalizão. Os assentos obtidos eram então ocupados pelos candidatos mais votados de cada partido/coalizão. Os assentos restantes eram concedidos ao partido mais votado em cada distrito.

Em 1950 foi aprovado um novo código eleitoral. O novo conjunto de leis introduziu uma reforma importante no sistema eleitoral: a alteração da fórmula utilizada para a distribuição de assentos entre partidos. De acordo com a regra anterior, os assentos distribuídos através do cálculo do quociente eleitoral eram ocupados pelo partido mais votado em cada distrito. A partir de 1950 as cadeiras não ocupadas seriam distribuídas de acordo com a fórmula D'Hondt, de maiores médias. Segundo esta fórmula, o número total de votos de cada partido/coalizão era divido pelo número total de assentos já obtidos por cada um deles, mais um. O partido/coalizão que alcançasse a maior média ocuparia um assento (Nicolau, 1993:116).

Além desta modificação, o código eleitoral proibia que um mesmo candidato participasse da competição em vários distritos e para mais de um cargo. Desde a adoção do Código Eleitoral de 1950, o sistema eleitoral utilizado no Brasil permaneceu praticamente inalterado, e foi utilizado em 15 eleições para a Câmara dos Deputados. A única alteração sofrida ocorreu em 1998, quando os votos brancos deixaram de ser contabilizados para o cálculo do quociente eleitoral (Nicolau, 2002 b:48).

Funcionamento do atual sistema

Em 1985, o país iniciou seu retorno à democracia, o qual culminou com a aprovação de uma nova constituição em outubro de 1988. O texto de 88 naõ alterou as normas para o registro e acesso dos partidos ao parlamento e seguiu adotando o mesmo sistema eleitoral (Nicolau, 1996:13).

De acordo com as regras atuais, os partidos políticos podem competir sozinhos ou formar coalizões. Eles apresentam uma lista aberta de candidatos, ou seja, um elenco de candidatos sem definir uma ordem de preferência. Cada eleitor tem a opção de dar seu voto a um candidato ou a um partido.

Após a eleição, o Tribunal Superior Eleitoral calcula o coeficiente eleitoral por Quota Hare, excluindo da contagem os votos em branco. Após o cálculo, todos dos candidatos de um mesmo partido/coalizão são somados para determinar o número de assentos a que eles têm direito. A cada vez que o partido/coalizão alcança o coeficiente necessário, ele obtém uma cadeira.

Em um segundo momento, é feita a contagem dos votos individuais de cada candidato. Os assentos obtidos pelos seus respectivos partidos/coalizões são distribuídos àqueles com maior votação individual. Na verdade, os votos destinados a cada partido/coalizão servem apenas para distribuir as cadeiras, não afetam a identificação dos candidatos que ocuparão tais cadeiras (Nicolau, 2006:223, Del Giúdice, 2007:4). Os assentos ocupados através deste processo são distribuídos segundo a fórmula D'Hondt (Nicolau, 2004:124).

Elementos do Sistema Eleitoral

Magnitude do distrito: No Brasil, de acordo com a Constituição da República, o menor distrito tem 8 membros, e o maior tem 70. Juntamente com a Itália e a Áustria, o Brasil é um país que apresenta uma das magnitudes mais altas em um distrito, tendo um valor médio de 19 membros (Nicolau, 1996:54).

Barreira Eleitoral: A barreira eleitoral no Brasil foi adotada somente durante o regime militar e era utilizada como uma forma de dificultar a formação e representação de novos partidos, visto que todos eles haviam sido extintos (Lima Junior, 1993:41).

Durante o governo militar, um partido deveria conseguir um mínimo de 5% dos votos nas eleições para a Câmara dos Deputados para obter existência legal. Em 1978 passou-se a exigir que a organização e funcionamento de um partido dependesse dop apoio de pelo menos 5% de eleitores que tivessem participado nas últimas eleições, distribuídos em, pelo menos 9 distritos, com um mínimo de 3% em cada um deles (Nicolau, 1993:42). A partir de 1985, o partido deveria alcançar 3% dos votos para a Câmara dos Deputados, distribuídos em, pelo menos 5 distritos, com um mínimo de 2% em cada um deles, para obter representação (Nicolau, 1993:42).

A exceção deste fato, nenhuma Constituição brasileira estabeleceu uma barreira mínima para a representação ou funcionamento dos partidos políticos. Dessa forma, no Brasil, é o quociente eleitoral, definido através da fórmula Hare, que funciona como barreira efetiva. Os partidos políticos que em cada eleição não haviam alcançado o quociente não teriam acesso a assentos que seriam distribuídos (Nicolau, 1993:43).

Fórmula Eleitoral: Desde 1932 a fórmula eleitoral utilizada é a mesma. Em primeiro lugar, é calculada a Quota Hare ou quociente eleitoral através da divisão do número de votos recebidos por cada partido pelo número de cadeiras que serão distribuídas. Em seguida, faz-se a distribuição dos restos. Até 1950, com a adoção do novo Código Eleitoral, os restos passaram a ser distribuídos através da fórmula D'Hondt (Nicolau, 2002 b:43, Porto, 2002:297). A partir de então, as fórmulas para distribuição de assentos permaneceram inalteradas.

Estrutura do Voto: Desde a adoção de um sistema exclusivamente proporcional para a eleição de representantes para Câmara dos Deputados, que ocorreu 1935, os eleitores só têm direito a um único voto, que pode ser dado a um candidato ou a um partido. Desde então, o sistema eleitoral proporcional brasileiro apresenta uma estrutura de voto de lista aberta, segundo a qual o partido apresenta uma lista de candidatos sem ordem predeterminada. O eleitor vota em um dos nomes da lista e os assentos são distribuídos aos candidatos com maior número de votos de cada partido.

Conseqüências políticas do sistema eleitoral

Impacto nos partidos e no sistema partidário

Desde que foi estabelecido pela primeira vez em 1935, o sistema eleitoral proporcional brasileiro tem sofrido críticas, sobretudo com relação à afirmação de que a lista aberta tende a estimular campanhas centradas em candidatos. Posto que os candidatos tenham que obter votos individuais, é comum que eles valorizem atributos pessoais para diferenciarem-se de seus colegas de partido. (Nicolau, 2006).

Algumas pesquisas realizadas sobre o sistema proporcional no Brasil (Carvalho, 2000; Nicolau, 2006) reforçam a idéia de que de fato existem as campanhas centradas em candidatos. Em uma pesquisa realizada com deputados federais, em 1999, a grande maioria negou que possuam uma grande autonomia em relação á realização de suas campanhas, e que a participação dos partidos nelas era bastante reduzida. Os deputados atribuíram um peso de 73% à atuação individual e 37% à atuação de seu partido. Aqueles pertencentes a partidos que têm mais peso nas campanhas eleitorais, de acordo com a pesquisa, são o PT e o PCdoB (Carvalho,
2000).

Além de incentivar a orientação do voto para os candidatos, o sistema de listas abertas incentiva a competição interna dos membros dos partidos (Nicolau, 2006). Como a definição da ordem da lista é estabelecida através do número de votos alcançado por cada candidato de forma individual, eles têm seus próprios correligionários como principal adversário.

Outra peculiaridade do sistema eleitoral que gera um efeito sobre o sistema partidário é a regra adotada para a distribuição dos assentos entre os partidos de uma mesma coalizão. Em países que as permitem, a distribuição de assentos dentro da coalizão ocorre de acordo com a participação de cada partido na votação total da coalizão. Uma legenda que obteve 10% de votos da coalizão tem direito a 10% dos assentos recebidos por ela.

No Brasil, as coalizões funcionam com se fossem um só partido. Os assentos são distribuídos de acordo com a votação nominal de cada candidato, independente do desempenho de seu partido.

Um dos efeitos da utilização de coalizões sobre o sistema partidário está no fato de que sua utilização permite que pequenos partidos que não alcançaram o quociente eleitoral, e, portanto, não teriam acesso ao parlamento, conseguem obter cadeiras na Câmara. Isso ocorre porque um partido pequeno, com possibilidades remotas de, somente conseguir um lugar no parlamento, faz coalizões com partidos de médio e grande porte, estes sim, capazes de garantir seu espaço na Câmara dos Deputados.

Em suas pesquisas a respeito dos partidos e do sistema partidário brasileiros, Mainwaring (1999) conclui, com base em dados empíricos, que os partidos apresentam uma estrutura muito fraca. Estudando o desempenho dos partidos políticos em várias eleições e em distintos períodos de tempo, Mainwaring (1999> 173) afirma que os mesmos são pouco disciplinados e exercem um papel secundário na maioria das campanhas políticas. Ademais, são muito pouco coesos e apresentam baixa institucionalização.

Ainda assim, o autor sugere algumas conseqüências geradas pela debilidade dos partidos brasileiros. A primeira delas é sua debilidade como atores do sistema político. Partidos que apresentam recursos, uma baixa disciplina e fraca lealdade têm pouca probabilidade de obter apoio da sociedade. Outra conseqüência se refere ao pouco controle que os partidos exercem sobre as elites políticas. Por tal motivo, estas elites são os principais agentes de representação, muito mais que os próprios partidos políticos (Mainwaring, 1999:74).

Impacto sobre os eleitores

Pesquisas empíricas (Nicolau, 2002 a) mostram que o sistema eleitoral de lista aberta utilizado no Brasil gera, para os eleitores, a idéia de uma disputa personalizada entre cada um dos candidatos, e a idéia que estes são eleitos com um sistema majoritário, onde ganham os candidatos que obtiveram mais votos. ao digitar o número do candidato na urna eletrônica, surge na tela uma foto do mesmo. Ademais, para ajudar os eleitores, as sessões eleitorais possuem folhas onde estão escritos os nomes de todos os candidatos com seus respectivos números.

Notavelmente, não há qualquer tipo de informação sobre os partidos de cada um deles, sobre quais foram as coalizões estabelecidas ou como se faz a distribuição de assentos.

Desta forma, os eleitores têm a percepção de que os candidatos que obtém mais votos são eleitos, com um sistema majoritário que define mais de um representante por distrito (M>1) (Nicolau, 2002 a). Muito poucos são os eleitores que têm informação sobre a complexidade do sistema eleitoral e a distribuição de cadeiras.

Além deste efeito, o sistema eleitoral brasileiro também parece debilitar a identificação dos eleitores com um determinado partido, pelo fato de reforçar as campanhas centradas em candidatos sem vínculos com seus partidos. Uma pesquisa realizada pelo IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) perguntou aos eleitores no pleito de 2002 qual havia sido o fator mais importante no momento de escolher um candidato para deputado federal, se ele mesmo ou seu partido. Os resultados apontam que 92% dos eleitores consideraram mais importante o candidato independentemente de seu partido; 4% disseram que ambos foram importantes (Nicolau, 2006:17).

Conclusão

O sistema proporcional de listas abertas funciona no Brasil desde 1945, e permaneceu praticamente inalterado desde então. Muitas são as investigações que buscam determinar os defeitos deste sistema eleitoral e apontar elementos que merecem ser reformados.

Muitas propostas de reforma do sistema eleitoral já foram apresentadas desde sua adoção. As propostas buscam, sobretudo, reduzir o número de partidos, mudar as regras a respeito do funcionamento das coalizões, aumentar a identificação partidária do eleitor com os partidos e a correção das distorções da representação dos Estados, entre outros. Não obstante, nenhuma das propostas foi aceita.

Sem dúvidas, apesar do grande número de críticas, o sistema eleitoral brasileiro foi capaz de, em muitos anos de funcionamento, selecionar líderes políticos e fazer chegar ao parlamento as opiniões mais relevantes da sociedade brasileira.

BIBLIOGRAFIA

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Fonte: Em Debate: Opinião Pública e Conjuntura Política - UFMG, edição julho, 2010, págs. 21-28

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