segunda-feira, 12 de julho de 2010

A regulação vai ao campo :: José Graziano da Silva

DEU NO VALOR ECONÔMICO

As aquisições definitivas de enormes glebas, como tem ocorrido na África, são discutíveis se não vierem associadas a projetos para o desenvolvimento local

A crise de 2008 acionou um freio de arrumação no escopo institucional do desenvolvimento. Na esfera agrícola, a reafirmação das políticas nacionais de segurança alimentar - uma prioridade destacada pela Conferência da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), de novembro de 2009, em Roma, deslocou a ênfase anterior que transferia a responsabilidade pública do abastecimento a uma suposta coalizão de preços baixos e oferta "just-in-time" assegurada pelos mercados globais.

Estoques reguladores; políticas de abastecimento e o próprio desenvolvimento da agricultura familiar haviam sido rebaixados diante das promessas da presença de um mercado provedor sempre abastecido com preços suficientemente baixos - porque subsidiados - para desincentivar a produção local. O colapso econômico, sobretudo seu estágio preliminar de entropia especulativa e agigantamento da fome mundial desautorizou a crença numa correlação de interesses entre segurança alimentar e desregulação econômica.

Economias pujantes, mas não autossuficientes em alimentos, caso da China, por exemplo; ou aquelas desprovidas de água, sol e solo suficientes para engatar sua matriz energética à era dos bicombustíveis, como as europeias, decodificaram o recado da crise: a segurança alimentar - e, no futuro, segurança bioenergética - dependerá cada vez mais de um certo grau de controle sobre os meios de produção.

Esse aprendizado tem mão dupla. Um desdobramento da sua reciprocidade são as manifestações sobre a necessidade de se regular o comércio internacional de terras, particularmente a venda de enormes glebas a capitais estrangeiros destinadas a reserva de valor ou à exportação de alimentos.

Estima-se que milhões de hectares tenham passado ao controle estrangeiro a partir da crise de 2008, num movimento fortemente concentrado na África que reuniria 80% da "terra disponível" mirada pelos investidores, atuantes também na Ásia e, em menor proporção, na América Latina.

Só no Brasil, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o saldo da propriedade estrangeira reúne 4,3 milhões de hectares. E isso porque considera empresa nacional qualquer registro de pessoa física estrangeira que tenha domicílio no país.

Considerando que a agricultura ocupa cerca de 1,5 bilhão de hectares no planeta e ainda existiria uma fronteira disponível equivalente a 50% disso, a escala das transações recentes, em tese, não justificaria receios diversos. O que de fato parece pesar nos temores de governos e especialistas é uma inédita convergência de impulsos apontando para um mesmo horizonte ampliado de pressão fundiária nos próximos anos.

As fragilidades do abastecimento expostas pela crise foram apenas a ponta do iceberg. O fato é que os aumentos drásticos nos preços das commodities entre 2007 e 2008 abalaram uma arraigada confiança na tendência secularmente baixista nos preços de produtos primários. Na linha do tempo das cotações, desde a II Guerra, houve apenas um precedente que desmentiu essa percepção: durante a crise do petróleo, em meados da década de 70. O que se deu em 2007 e 2008 poderia ser apenas mais um ponto fora da curva, mas não é isso que se desenha, pelo menos por enquanto: segundo recentes projeções da FAO em conjunto com a OCDE, os preços das commodities agrícolas permanecerão elevados na década dificultando assim o acesso de bilhões de pessoas pobres em todos os cantos do mundo.

Essa fornalha carregada de vapor altista não passa desapercebida no radar de fundos e megainvestidores. Insatisfeitos com o baixo retorno das aplicações convencionais na longa convalescença pós-crise, o dinheiro ambulante garimpa oportunidades de rendimento superior ao da papelaria financeira. A aquisição de terras férteis, mesmo sem a intenção imediata de produzir, pode ser uma delas, aquinhoada por uma singularidade adicional: ao contrário das inovações financeiras, terra é um recurso finito que a economia e a engenharia dos mercados não consegue replicar. Mas é por isso também que aquisições definitivas de enormes glebas, ou o seu arrendamento por prazos longos de 50 até 99 anos, como tem ocorrido na África, são discutíveis se não vierem associadas a projetos que ofereçam contrapartidas de desenvolvimento local. A justificativa corrente de que é melhor o grande capital estrangeiro que agrega tecnologia e eficiência à reprodução vegetativa da pequena agricultura contém uma perigosa meia verdade. O truque consiste em utilizar o confronto de escalas como biombo para omitir o debate que verdadeiramente importa: desenvolvimento para quem? Desenvolvimento para quê?

Uma das questões evidenciadas na crise, enfatizada pela FAO, foi a vulnerabilidade de muitas economias que renunciaram ao desenvolvimento agrícola próprio, fragilizando assim a produção familiar em troca de maior dependência externa, com aumento da pobreza no campo e nas cidades. A reversão desse processo demanda decisão política dos governos locais para recolocar a segurança alimentar na agenda das políticas públicas. Os países ricos ajudariam se mudassem a qualidade da ajuda internacional, destinando fundos ao desenvolvimento agrícola, em vez de vincular recursos a doação em especial e importações subsidiadas de alimentos que asfixiam o produtor local.

Carência financeira e defasagem tecnológica constituem fatos inquestionáveis na vida dos agricultores das nações mais pobres. A agonia ou a ressurreição de sua agricultura, porém, dependerá muito mais da forma como esses recursos serão internalizados do que do seu aporte.


A discussão de normas regulatórias para o comércio internacional de terras tem aí um ponto de partida interessante. Cuidados como a transparência nas negociações; respeito pelos direitos existentes; partilha de benefícios com comunidades locais; proteção ambiental e adesão a políticas nacionais de comércio e segurança alimentar, são alguns critérios cogitados preliminarmente, aos quais acrescentaríamos ainda: transferência de tecnologia agrícola; destinação de uma parte da produção ao abastecimento nacional e o desenvolvimento de infraestrutura local que possibilite a irradiação do desenvolvimento. Mais que um veto ao investimento estrangeiro, medidas como essas esboçam um pertinente código de conduta para regular o grande investimento agrícola no mundo pós-crise, seja ele de que bandeira for.


José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.

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