segunda-feira, 28 de junho de 2010

A viagem de volta da América à Ibéria:: Luiz Werneck Vianna

DEU NO VALOR ECONÔMICO

O Brasil faz parte da Ibero-América, e rios de tinta têm sido gastos para procurar desvendar o papel dessa contingência de origem na formação da sua sociedade, animando uma controvérsia sempre renovada ao longo do tempo. Essa origem seria uma herança desafortunada com a qual teríamos que romper a fim de começar uma nova história mais justa e igualitária, segundo alguns, ou, contrariamente, um legado valioso a partir do qual teríamos assentado os fundamentos cruciais para o empreendimento de uma bem-sucedida construção do nosso Estado-nação. Entre esses fundamentos o que nos garantiu a unidade territorial, evitando-se a balcanização do país, e uma certa configuração da dimensão do público capaz de impor limites aos potentados locais, daí resultando a instituição de um sistema de ordem racional-legal de pressupostos liberais.

Desde o Império, a recusa a essa herança e a sua identificação como raiz dos nossos males, como na crítica do publicista Tavares Bastos, encontrou sua inspiração no que seria o feliz exemplo americano. A centralização de estilo asiático, herdada da metrópole, sufocaria as energias vivas do país, que estaria dominado por uma burocracia parasitária, que impediria seus cidadãos de conhecerem as práticas das liberdades públicas, única escola que poderia educá-los para o civismo. Esse diagnóstico, animado pelos ideais do self-government americano, esteve na base da reivindicação pela Federação, inspiração forte das elites estaduais, principalmente as de São Paulo, que logo se uniram contra o Império no movimento republicano.

Se o Império seria a Ibéria e suas tradições cediças, a República nascente se voltaria para o modelo americano, como na sua carta de identidade apresentada em sua Constituição de 1891, na institucionalização da Federação e na valorização da cultura material e culto do desenvolvimento das forças produtivas, exemplar no fervor com que Rui Barbosa, então ministro da Fazenda do Governo Provisório, se atirou na campanha pela expansão da malha da rede ferroviária. Mas, logo a 1ª República perverteu, com a chamada política dos governadores, os ideais federativos, traduzindo o seu Estado os interesses particularistas dos estados hegemônicos - São Paulo e Minas Gerais - e vinculando o poder local ao Poder Central por meio do sistema do coronelismo. Restaurou-se, assim, a centralização que antes fora denunciada como herança de uma Ibéria patrimonialista.

A americanização que não nos veio com as instituições políticas da Carta liberal de 1891, virá "por cima" com a Revolução de 1930 e a partir de uma fórmula corporativa autoritária. A indústria e a imposição do ethos do industrialismo passam a ser os fins a serem perseguidos pela política do Estado, em uma ação reformadora de largo alcance: cria-se o Dasp no objetivo de favorecer o mérito no acesso ao serviço público, e sobretudo uma legislação trabalhista que, além de regular o mercado de trabalho dos assalariados urbanos em âmbito nacional, deveria se instituir como meio de valorização da ética no trabalho e escola de civismo para os trabalhadores nos sindicatos tutelados pelo Estado.

Dessa forma, inaugurava-se um arranjo paradoxal, que persistirá pelas longas décadas do processo de modernização autoritária do país, em que seria a nossa tradição ibérica, com sua precedência da esfera pública sobre a esfera privada, a responsável pela realização das aspirações americanas em favor de uma cultura material robusta e de uma moderna sociedade de massas. Resultado bem distante dos anelos americanistas dos nossos liberais que preconizavam a conquista do moderno por uma via "natural", de baixo para cima, na expectativa de que a crescente diversificação da estrutura econômica, e a complexificação social a ela associada, viessem a gerar uma moderna sociedade de classes.

O regime militar esgotou as possibilidades desse arranjo, inclusive em razão dos seus próprios êxitos na modernização econômica e social do país. Mudara a demografia, a população passara a ser majoritariamente urbana, transformara-se a composição da estrutura de classes, inclusive a classe operária dos centros industriais mais modernos, e, por toda parte, uma nova sociedade emergente reclamava liberdades civis e públicas e autonomia para suas associações. O PT nasce nesse novo contexto, expressando a necessidade de um novo sindicalismo em ruptura com as antigas estruturas corporativas que o vinculavam ao Estado e a seus fins. Marca de origem a defesa do princípio da supremacia das bases da vida associativa sobre seus vértices, a autonomia da sociedade civil diante do Estado e a valorização da auto-organização do social. Assim, desde a crítica dos publicistas liberais à malfadada herança ibérica, pela primeira vez surgia entre nós um partido onde ecoavam os antigos ideais dos nossos americanistas, e com a qualificação fundamental da sua origem se radicar nos setores subalternos, em particular no sindicalismo operário.

Decifrar a natureza presente desse partido e sua meteórica ascensão na política brasileira, compreender como lhe foi possível transitar sem traumas da posição de um partido de sociedade civil para a da situação atual de um partido de Estado, vai persistir como um enigma obscuro enquanto a análise se contentar com categorias de raiz irracional, como o carisma. Uma pista talvez mais sugestiva possa ser encontrada no fato de que nele e no seu governo convergiram, por ensaio e erro, as duas matrizes da nossa formação: a ibérica e a americana, a primeira, tida como exausta quando o PT inicia sua trajetória, ressurreta, agora, por sua intervenção; a segunda, nele presente, instalada no seu código genético desde os tempos do sindicalismo do ABC. Sob essa configuração, que a todos parecia improvável, o PT não se apresenta como um partido, mas como síntese das oposições que viram a sociedade nascer, e como um final feliz para a história do Brasil, em que não há mais espaço legítimo para outros partidos.


Luiz Werneck Vianna é doutor em Ciências Sociais e ex-presidente da Anpocs. Escreve às segundas-feiras

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