domingo, 2 de maio de 2010

No país dos placares :: Alberto Dines

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Tudo errado: a começar pelo juridiquês, idioma foneticamente semelhante ao nosso mas tão diferente na semântica. E como a imprensa não se animou a fazer a necessária tradução para a linguagem corrente, não houve debate. Sequer uma reflexão sobre os significados do confronto. No País dos placares, mais um: 7 a 2 contra a revisão da Lei de Anistia. Ao contrário da Espanha que 71 anos depois do fim da Guerra Civil (1936-1939) não se resigna às leis de esquecimento e contrariando a hipocrisia da concertação vai em frente disposta a rever o sangrento ensaio da Segunda Guerra Mundial travado em suas entranhas.

São poucos os sobreviventes da Guerra Civil, o bravo juiz Balthazar Garzón que comanda a cruzada pela revisão dos crimes na Espanha (e por isso corre o risco de perder a toga), não corre atrás de culpados pelos massacres e torturas. Quando começou queria apenas localizar os restos mortais do poeta, dramaturgo e encenador Federico Garcia Lorca fuzilado em seguida ao levante fascista do general Francisco Franco.

A Espanha que saiu às ruas na semana passada não quer punir, quer saber: o prematuro ponto final neste capítulo da sua história é um escárnio à memória dos seus 500 mil mortos, milhares de desaparecidos, torturados e estropiados.

A OAB merece nosso respeito e nossa gratidão, mas data vênia, contentou-se em questionar a Lei da Anistia (que ajudou a aprovar em 1979), esquecida de que há outras e prementes questões legais a serem esclarecidas: quem foi morto, onde estão os seus restos, quem matou, torturou, estuprou e roubou? Como? Por queê Se os facínoras já não estão no inferno, logo lá estarão, mas suas façanhas precisam ser conhecidas, esmiuçadas e inscritas em nossa memória.

É um enorme equívoco imaginar que fazer justiça resume-se a castigar. Tão importante quanto enforcar o gerente do Holocausto, Adolf Eichman, foi conhecer a indústria que montou quase sem resistência e tanta eficácia.

Relator do processo de revisão da Anistia, o ministro Eros Grau, perseguido pelo regime militar, votou pela sua manutenção. Foi elogiado pelos colegas. Poeta, construiu um belo jogo de palavras ao afirmar que "a anistia deve ser concedida a pessoas indeterminadas e não a determinadas pessoas". Evitou generalizações, abriu as portas para revisões específicas, pontuais. Teria sido mais coerente e, sobretudo, mais didático se relatasse a natureza das perseguições que sofreu.

O placar no STF é inquestionável, mas não é desfecho. Soa como desafio para continuações.

Treinada na intermitência das telenovelas a sociedade brasileira precisa encontrar-se com grandes narrativas – contínuas, amplas, fluviais. O desvario que se designa como Anos de chumbo começou antes e vai além do período 1964-1985. Esta história de sangue e poder não ficará engavetada como quer o Judiciário, o Executivo, o Legislativo e os devotados cultores dos pontos finais.

Algo se movimenta: a Lei de Acesso às Informações teve tramitação recorde na Câmara e agora vai ao Senado. Seu anúncio solene há um ano contou com a presença de dois candidatos à sucessão do presidente Lula, o governador José Serra e a ministra Dilma Rousseff - o novo estatuto não confronta a Lei de Anistia mas quando materializado certamente comprovará a sua obsolescência.

Anistia é remédio, tem prazo de validade. Placares também.

» Alberto Dines é jornalista

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