terça-feira, 4 de maio de 2010

Mais prática do que discurso:: José Serra e José Roberto Afonso

DEU NO VALOR ECONÔMICO

"Prática ao invés de promessa" foi o título do artigo que assinamos no dia em que foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o único na mídia nacional e publicado na terceira edição do Valor. Tempos do grande jornalista econômico Celso Pinto, que deu forma ao jornal. Poucos acreditavam que, dez anos depois, estaríamos comemorando o sucesso da LRF como um divisor de águas nas finanças públicas brasileiras e internacionalmente reconhecida por sua abrangência e resultados.

Hoje aproveitamos a oportunidade do décimo aniversário da lei para falar do seu passado e opinar sobre o futuro da responsabilidade fiscal em nosso país. Sobre o presente, não faltarão avaliações positivas diante dos fatos e números incontestáveis, reconhecidos até pelos que votaram contra a lei e depois tentaram derrubá-la na Justiça.

A ideia da LRF surgiu durante a Assembleia Constituinte (1987/1988). Os autores deste artigo atuaram, respectivamente, como relator e assessor técnico da comissão que tratou de orçamento, tributação e finanças. Uma das inovações propostas pelo relator foi prever na Constituição um código de finanças públicas para reunir as normas gerais sobre receitas, gastos, dívida e patrimônio, a fim de lhes dar um fio condutor e garantir sua aplicação aos três níveis de governo. Não fosse o mandamento constitucional, a LRF, numa federação como a nossa, não se aplicaria a Estados e municípios. Este é um grande diferencial da LRF brasileira; em outros países, ela geralmente se restringe ao governo central.

O propósito de induzir um maior e mais sustentado equilíbrio nas contas públicas foi retomado dez anos depois, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso enviou ao Congresso um projeto de lei complementar coordenado pelo Ministério do Planejamento e Orçamento, sob comando de Martus Tavares. O projeto abria caminho para uma mudança estrutural destinada a substituir os ajustes fiscais até então baseados em sucessivos "pacotes" tributários de fim de ano e cortes indiscriminados do Orçamento, além das heranças fiscais malditas não raramente deixadas por um governo ao seu sucessor.

Muitos se surpreenderam com a boa acolhida à iniciativa. Afinal, ela ia na contramão da cultura política dominante até então, segundo a qual déficit era problema exclusivo do Executivo e austeridade fiscal, um assunto da "direita" - como se no Brasil o populismo fiscal não fosse patrimônio comum de todo o espectro político, incluído seus extremos. Bons tempos em matéria de seriedade fiscal...

Dentre outras alterações, os parlamentares definiram que a responsabilidade começa na arrecadação de tributos, tratando a renúncia de receita como um gasto, e se preocuparam com os vínculos entre a política fiscal e a monetária e cambial, exigindo prestações de contas periódicas e inovando ao proibir o Banco Central de emitir títulos por conta própria e fora do Orçamento. A propósito, a LRF detalhou o dispositivo constitucional, oriundo do nosso relatório na Constituinte, que proíbe o Banco Central de financiar o Tesouro, já sacramentando em lei (e complementar) o preceito que assegura à autoridade monetária condições de atuar sem pressões diretas do governo.

O enfoque adotado pela LRF em relação ao federalismo também merece destaque pois permitiu que, após mais de um século de República, a federação brasileira atingisse finalmente sua maioridade fiscal. Os três níveis de governo, do federal à menor prefeitura do país, são iguais perante a lei, sujeitos às mesmas normas, limites e condições. A União não pôde mais assumir dívida que foi contraída por um Estado ou um município - agora cada um tem que cuidar muito bem de suas contas, porque somente seus moradores são premiados ou punidos pelos acertos ou erros de seus administradores e legisladores. Lembramos que a LRF foi editada tão logo completada mais uma rodada de renegociação de dívidas de Estados e municípios e assim fez um corte radical na antiga prática que transferia para os moradores do resto do país o ônus da má gestão de um ente federado.

Poucos sabem que o Brasil foi a primeira economia emergente a adotar uma lei desse tipo e, mesmo em relação aos países ricos, é a mais abrangente. Ela define princípios (à moda anglo-saxônica) e fixa limites e regras (à moda dos norte-americanos e latinos). As metas fiscais são móveis, com cláusulas de escape precisas e detalha mecanismos de correção de rota em caso de eventual ultrapassagem dos seus limites. Mesmo privilegiando a prudência, são previstas sanções amplas e duras, tanto institucionais quanto pessoais. Em termos de transparência, não há outro país que divulgue a evolução das contas públicas tão rápida e detalhadamente, ainda mais se tratando de uma federação com milhares de unidades de governo.

Mas é possível avançar ainda mais. Dez anos depois, é natural que a LRF enfrente novos desafios. É urgente completar sua regulamentação. Também cabe aperfeiçoar e ampliar seu alcance.

O governo anterior enviou propostas ao Congresso poucos meses depois de editada a lei e que, até hoje não foram votadas. Falta instalar o conselho de gestão fiscal, concebido como uma instância representativa (com integrantes das diferentes esferas de governo e também poderes) que pode contribuir para padronizar relatórios e interpretações. Ainda perdura a ausência de limites para a dívida federal, consolidada e mobiliária, cuja fixação cabe à resolução do Senado e à lei ordinária, respectivamente, por mandamento constitucional. Só foram estabelecidos limites, e bem rígidos, para Estados e municípios.


A responsabilidade federativa precisa ser plena. O governo federal permaneceu em certa medida à margem da LRF, num falso paraíso, à custa de saltos da carga tributária, enquanto os governos estaduais e municipais apresentaram um desempenho espetacular: elevaram o superávit primário, reduziram a dívida e ainda empreenderam um maior esforço relativo de investimento.
Nada justifica que governadores e prefeitos fiquem expostos aos rigores da lei, caso se endividem em excesso, e o presidente da República passe imune. Também não há por que fugir de divulgar claramente e discutir quanto custam para os cofres públicos as ações na área de crédito e de câmbio. Curiosamente, esses alertas, cada vez mais frequentes, ainda não produziram nenhum efeito prático. Como sempre nesta matéria impera a máxima: austeridade é uma coisa boa... para os outros praticarem.

A responsabilidade orçamentária continua sendo uma frente de batalha aberta. É preciso reformar a lei geral dos orçamentos, que data de 1964. A lei de diretrizes (LDO) e a do plano plurianual (PPA), outras inovações da nossa comissão na Constituinte, nunca foram regulamentadas nacionalmente. A definição da receita nos orçamentos precisa ser mais transparente para evitar a criação de espuma em vez de arrecadação efetiva. A grande maioria das emendas parlamentares traduz pleitos pertinentes de diferentes Estados e municípios, mas precisam ser formuladas com mais rigor técnico e econômico e liberadas sem discricionariedade política. Para garantir a credibilidade da contabilidade pública, é preciso antes de tudo acabar com truques como o cancelamento de empenhos de despesas essenciais no fim do mandato, o que impõe ao governo sucessor um orçamento desequilibrado.


A responsabilidade na gestão pública exige uma nova postura em relação aos gastos, pois o novo cenário macroeconômico não permitirá seguir aumentando indefinidamente a carga tributária.
Os governos, como as famílias, também precisam se guiar pelo princípio de fazer mais com os mesmos recursos. Isto implica fomento aos investimentos em modernização da gestão. Muito que já se avançou no lado da arrecadação (hoje quase todas as declarações de imposto de renda são entregues por meio digital), precisa ser estendido para o lado do gasto.

Os investimentos do setor público devem ser aumentados e remodelados para eliminar os gargalos da infraestrutura que florescem pelo Brasil afora. Caímos num desconfortável paradoxo: comparado a outros países, o Brasil é líder em carga tributária dentre os emergentes, campeão mundial de taxa de juros reais, e penúltimo colocado em matéria de taxa de investimentos governamentais.

Apesar das brechas e arranhões aqui e ali, do que falta completar e dos avanços possíveis, a responsabilidade fiscal virou mais do que uma lei em nosso país. Plantou a semente de uma nova cultura na administração pública. Não por acaso, a LRF made in Brazil é um sucesso admirado e estudado em outros países.

Tão relevante quanto a lei em si foi a mudança de mentalidade que a viabilizou. A LRF continua sendo aprovada pela opinião pública e mídia, e as tentativas de driblá-la têm recebido reprovação nacional. Apesar do vai e vem (agora estamos na fase do "vem"), se firmou no país a consciência da necessidade do equilíbrio macroeconômico. Isso aconteceu em grande parte graças à Lei da Responsabilidade Fiscal. Um pique-pique para ela.

José Serra e José Roberto Afonso são economistas, respectivamente, professor e doutorando da Unicamp

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