domingo, 21 de fevereiro de 2010

As igrejas e o espelho de Alice:: José de Souza Martins

DEU EM O ESTDO DE S. PAULO / Aliás

Parece ingênuo a Campanha da Fraternidade ir contra o dinheiro, mas a ingenuidade derrubou a Bastilha

Não resisto à tentação de invocar duas interpretações opostas do dinheiro, mas complementares, para, à luz delas, desenvolver minha compreensão do documento e do tema da Campanha da Fraternidade de 2010, "Economia e Vida". A primeira interpretação é a que ouvi de um caboclo simples, no sertão do Mato Grosso, nos anos 70. Na nossa conversa, disse-me que "o dinheiro é a Besta-Fera", numa alusão à célebre entidade do Livro do Apocalipse e à narrativa do fim dos tempos. No seu fundamentalismo simples, explicou-me que bastava somar o valor das notas do nosso papel-dinheiro em circulação na época, o cruzeiro: 500, 100, 50, 10, 5 e 1. O resultado era 666, o número da Besta. O poder da Besta, dizia ele, é o poder de fazer o contrário do que Deus faz. A Besta é o antagônico, o avesso. Essa é uma ideia difundida na nossa cultura popular e preâmbulo seguro para a recepção da mensagem da Campanha da Fraternidade.

Do outro lado do mundo, nos anos 20, sir Dennis Robertson, professor de economia na Universidade Cambridge, publicava um precioso livro sobre o dinheiro, traduzido para o português com o título de A Moeda. Robertson era especialista em escrever com clareza sobre assuntos complicados como esse. No livro, adotou o critério didático de abrir cada capítulo com uma epígrafe tirada de um dos dois livros de Lewis Carroll - Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho. São obras-primas da literatura do absurdo, densas e complexas. Ao atravessar o espelho, Alice se vê aprisionada no mundo dos avessos, que as epígrafes de Robertson sugerem ser o mundo regido pela mesma lógica que rege o mundo do dinheiro. Quanto mais Alice caminha, mais longe fica de aonde quer chegar. Isso já nos diz tudo.

A Campanha da Fraternidade deste ano tem como mote "Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro" (Mateus, 6:24). Infelizmente, um dos disseminados efeitos da lógica dos avessos é justamente o da realidade de se poder servir a Deus e ao dinheiro, pois é ela a realidade dos duplos, da unidade dos contrários, que é o motor do mundo contemporâneo. Na falta de alternativa, alguns o fazem sem temor nem tremor. Nesse sentido, a proposição das cinco igrejas que se reúnem no Conic - Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, responsável pelo documento ecumênico que será analisado e estudado em 50 mil comunidades, é uma proposição de certo modo aquém da encíclica de Bento XVI, Caritas in Veritate.

Na encíclica, o papa vai diretamente ao ponto, que é o da alienação do homem moderno, que pensa ser uma coisa sendo outra, agindo, portanto, como duplo, sem saber que duplo é. O papa cita o famoso ensaio de Karl Marx sobre a alienação, dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, alienação que constitui o traço fundamental e irremediável da modernidade.

Nessa invocação, ele evita o economicismo e o materialismo das esquerdas religiosas que sucumbiram às simplificações do que Georg Lukács definia como marxismo vulgar. Na perspectiva da catolicidade das igrejas, incluídas as ortodoxas e protestantes, que, nesse sentido, também são católicas, isto é, universais, as vítimas da degradação materialista da economia não são apenas os pobres, mas são todos. Por aí, compreendo a pobreza, portanto, não apenas nem simplesmente como pobreza econômica, de não ter o que comer e os meios para produzir o que comer, mas fundamentalmente como pobreza de esperança, o que para muitos inclui a pobreza de fé.

Nesse sentido, o documento do Conic pode parecer, à primeira vista, e assim já vem sendo tratado pelos críticos, um documento ingênuo. Aquelas ideias não têm a menor condição de se efetivarem em face do poder de alienação da economia moderna e, mais do que o poder, o fascínio que a própria alienação representa. Nisso está o que o caboclo do Mato Grosso vê como diabólico e o erudito Dennis Robertson vê como absurdo. De fato, o documento da Campanha da Fraternidade deste ano é um documento ingênuo por representar uma insurgência contra um poder aparentemente invencível. Mas com tanta gente falando gratuita e ingenuamente bem desse poder, no mundo inteiro, todos os dias do ano, não é demais que haja quem, como o Conic e nele a CNBB, no minúsculo fragmento de uma quaresma, dele fale devida e legitimamente mal.

Essa ingenuidade é um dos poderosos ingredientes do mundo dos avessos. Ela constitui um daqueles resíduos do poder de que nos fala Henri Lefebvre, expressão das contradições da ordem dominada pelo afã do lucro e pela coisificação do homem pela trama das relações econômicas que faz, como diz Marx, com que a coisa pareça gente e atue como gente e o homem pareça coisa e como coisa tenha que viver o drama de sua coisificação. Essa ingenuidade vem explodindo em todos os cantos desde a Revolução Industrial e ganhou força política, no século 18, no que o historiador inglês Edward Thompson, em famoso estudo, chamou de economia moral da multidão. Aludia ele à reação irracional, porque contra a lógica dos preços, dos moradores do bairro de Santo Antônio, em Paris, contra o preço do pão. Sua reação se alastrou, a Bastilha foi derrubada. Foram eles que, com sua ingênua concepção de economia, abriram as portas para as novas ideias políticas que se consumaram na Revolução Francesa.

Os estudos sobre economia moral disseminaram-se para compreender as irracionalidades políticas na Ásia pobre e convulsionada das últimas décadas. Vai ficando claro que a economia moral é, na verdade, o miolo de um movimento social que chegou à América Latina nos anos 80, sobretudo por via religiosa. O documento do Conic é uma das expressões desse movimento a seu modo inovador. Não por acaso há nele ecos do ideário do Fórum Social Mundial, do MST, das pastorais sociais da Igreja Católica e, portanto, de setores que se tornaram decisivos na ascensão política do PT e de Lula. Não obstante, bem lido, o documento é uma crítica ao PT e ao governo Lula, que, como Alice, atravessou o espelho e se perdeu no caminho de ida.

*Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Entre outros livros, autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

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