sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Hora de pensar o futuro

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Por Edson Pinto de Almeida, para o Valor, de São Paulo

A forma como o Brasil superou a crise financeira, emergindo em grande estilo e por isso ganhando reconhecimento internacional, deixou no ar uma certeza e algumas perguntas. A certeza é de que o país está mais forte do que muitos imaginavam, até, quem sabe, para resistir a uma eventual recidiva da crise internacional no curto prazo. Mas o que dizer do futuro, aquele que, bem ou mal, vai sendo construído, em linha com as oscilações econômicas de curto prazo - aí incluidas as crises, que roubam eventuais conquistas de crescimento - e com maior ou menor intencionalidade de governos e sociedade? O Brasil já pode falar num futuro que lhe pertence, por vontade e formulação próprias, suposição que parece fluir de interpretações mais entusiasmadas dos resultados de políticas aplicadas até agora? Ou o país do longo prazo, aquele que talvez possa ser o do desenvolvimento estabelecido, muito mais que crescimento, ainda é uma folha de papel em branco, à espera de ideias e autores? Faz falta um projeto nacional, um "plano", ou bastará o exercício da democracia, por suas vertentes econômicas, políticas e sociais, para possibilitar consensos e conferir previsibilidade aos destinos do país?

As respostas, seja entre empresários, seja nos meios acadêmicos, misturam perspectivas diversas, mas sempre acompanhadas da constatação de que o fundamental está feito: a estabilização econômica e a opção pela democracia são hoje conquistas fortificadas, e representam avanços importantes na sinalização de possíveis caminhos para o futuro.

"O grande desafio está em pensar uma nova estratégia de desenvolvimento", afirma Cláudio Salvadori Dedecca, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Os mais de 20 anos de estagnação corroeram nossa capacidade de pensar o futuro, construiu-se uma reflexão constrangida pelos problemas da crise prolongada. É necessário reorientar o campo de preocupações e os termos do debate econômico e social, reposicionar as preocupações para a construção de uma estratégia de desenvolvimento que potencialize as vantagens atuais e identifique claramente seus obstáculos. Dois deles são evidentes e siameses, as reformas tributária e política."

Como diz Roberto Teixeira da Costa, consultor e membro do conselho de administração da SulAmerica Seguros, "o futuro chegou e precisamos saber o que fazer com ele". Em sua opinião, porém, o grau de percepção no setor empresarial dessa necessária agenda de mudanças é baixo, uma vez que o debate é muito setorizado e ainda predomina uma visão paroquial em relação à necessidade de inserção global do país. "As entidades empresariais não se falam, pregam apenas para os convertidos e todos só querem o poder. Falta provocar o debate com a sociedade e os partidos políticos."

A ideia de que se possa planejar algo no longo prazo tem a ver com a consolidação do regime democrático, a partir da Constituição de 1988, e com a estabilidade macroeconômica que teve início no Plano Real, em 1994. "No passado, o Brasil tinha desafios tão grandes, problemas tão profundos e as soluções propostas eram tão divergentes que criavam uma expectativa e insegurança maiores", diz Roberto Setúbal, presidente do Itaú Unibanco. Para ele, o Brasil pode cumprir todas as melhores projeções de crescimento se mantiver a política econômica equilibrada, contrastando, assim, com outras economias, como França, Itália e Inglaterra, que terão momentos de baixo crescimento nos próximos anos.

Louis Bazire, presidente da operação brasileira do BNP Paribas, também se coloca entre os otimistas e acredita que a dinâmica de longo prazo alcançada pelo Brasil já pode ser comparada à dos países mais maduros. Estudo da área técnica do banco mostra que o Brasil tem a melhor relação de potencial de crescimento e riscos de desestabilização, se comparado a China, Rússia e Índia. As condições sustentáveis de crescimento no médio prazo com baixo risco de desestabilização da economia estariam no patamar de 4% a 5% ao ano. A partir daí, e aumentados os investimentos, especialmente em infraestrutura, o crescimento poderia passar a 7%, até 8% ao ano.

O professor Francisco Carlos Teixeira, titular de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que o Brasil reúne condições para ser a quinta economia do mundo, graças ao grande potencial industrial, agrícola e de jazidas minerais. "O país vai conseguir fazer a passagem de sustentabilidade com energias limpas, mas não vai alcançar, até 2025, uma condição de bem-estar mais justo. Existirão bolsões de diferenças e desigualdades, mas não de miséria."

O Brasil precisa, porém, dar um salto de qualidade na educação. "Estaremos no Segundo Mundo próspero", imagina Teixeira, "mas não no Primeiro de ponta, por falta de tecnologia, inovação e qualidade de gerência, todos elementos que têm a ver com educação." Teixeira reproduz conclusões de estudo que coordenou, realizado pela Fundação Dom Cabral com base em análise feita por dirigentes de nove empresas (Siemens, Telefonica, Algar, TAM, Natura, Brascan, IBM, International Paper, Umicore).

O estudo aponta Estados Unidos, União Europeia e China como centros criadores de redes globais e vias preferenciais dos fluxos de riqueza no mundo, sustentados largamente nas tecnologias digitais. A China deverá atuar como modelo alternativo à Europa, aos Estados Unidos e aos países em rápido crescimento. A concorrência chinesa deve afetar diretamente a presença do Brasil nos mercados mundiais. Por isso, o país deveria aprofundar os acordos bilaterais e, ao mesmo tempo, incentivar a ampliação do Mercosul e o uso da Tarifa Externa Comum (TEC) como um escudo anti-China. Com a pressão protecionista viria "um período de oportunidades para aprofundar mecanismos institucionais no interior do bloco, incluindo um sistema monetário próprio".

"Falta um projeto para o país, no sentido mais amplo", diz Laércio Cosentino, presidente da Totvs, uma das maiores empresas da área de sistemas de gestão. Em sua opinião, "não é com eleições a cada quatro anos que vamos mudar o país". Um exemplo de projeto nacional, a seu ver, é o da China, que exige a a participação de 51% de capital local nas empresas abertas por lá. "Precisamos fortalecer o nosso mercado e o setor de tecnologia, para gerar empregos de alto valor agregado e oferecer, assim, melhor remuneração ao trabalho." A estabilidade de que o país precisa para crescer de modo sustentado também poderia ser assegurada pela confluência desses fatores.

Cosentino defende a ampliação da participação no debate sobre o futuro do país. Um fato que chamou sua atenção ocorreu durante palestra para jovens empreendedores, em Minas Gerais. Cosentino perguntou aos 900 presentes se havia alguém se preparando para atuar na política. Apenas um levantou a mão.

Esse alheamento, a seu ver, deve-se ao fato de que a iniciativa privada se descolou da área pública. "Criamos um descompasso entre o Brasil empreendedor e o setor governamental." Cosentino entende que, depois da abertura de mercado e da consolidação da democracia, "a sociedade deixou a gestão pública para trás".

"O Brasil é mais dinâmico que seus governantes", diz Glauco Arbix, professor da USP, onde coordena o Observatório de Inovação do Instituto de Estudos Avançados. Para ele, a classe política vive no tempo dos coronéis, da corrupção, e não está preparada para responder aos desafios que o país deve enfrentar.

A consolidação da democracia é sempre apontada como um dos principais fatores que levaram o Brasil a uma condição de previsibilidade, fundamental para se estabelecerem objetivos de longo prazo. Contudo, o processo, que começou com a promulgação da Constituição de 1988, ainda está incompleto e pode afetar o ritmo do crescimento e atrasar as mudanças necessárias para modernizar o país, avalia Oscar Vilhena Vieira, professor de direito constitucional da escola de direito de Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. "Temos um sistema democrático estável, comparável ao de países desenvolvidos, como Estados Unidos e Alemanha, mas o estado de direito não evoluiu na mesma velocidade", afirma. A consequência mais danosa é que a sociedade não toma a lei como razão de conduta. "O Estado não aplica a lei com a devida imparcialidade e eficiência. Isso gera desconfiança, insegurança jurídica e erosão social."

Os intermináveis debates sobre a reforma do regime tributário têm jogado para o futuro a resolução de questões que, mantidas intocadas, agravam as desigualdades. O pobre paga mais do que o rico por causa da tributação indireta. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os 10% de menor renda da população brasileira destinam 32,8% de seus ganhos para o pagamento de impostos, enquanto os 10% da faixa superior desembolsam 22,7%. "O Estado tributa mal. Tira de quem tem menos e não devolve na mesma medida. Nossa Constituição é bipolar, pois é ao mesmo tempo distributivista e regressiva. Aparentemente, é generosa e distribui, mas na prática não é", afirma Vilhena. São questões, as tributárias, que precisam ser reequacionadas no mesmo passo em que se deveria cuidar da reforma política.

O professor da FGV entende que o arranjo federativo brasileiro produz um impacto negativo sobre a governança mais eficiente. A composição do Senado é um exemplo. Cada Estado tem três senadores, independentemente do número de habitantes. "Com isso, os estados menores predominam e reforçam o poder das elites, que cobram caro para não bloquear o governo. Essa situação pode levar ao descontrole fiscal", afirma. O desenho constitucional, a seu ver, supervaloriza os pequenos estados, pois não faz justiça ao critério populacional.

Apesar dos avanços, a Constituição de 1988 reforçou, segundo Vilhena, a relação clientelista com o Poder Executivo. A capacidade arrecadatória dos estados e municípios não é compatível com as atribuições estabelecidas pela Constituição. Há uma dependência dos repasses do governo federal nas áreas de saúde, educação e segurança pública. "Os estados têm poder político no Senado, mas são pobres, não têm capacidade financeira e vão pedir ao Executivo. O poder de voto no Senado é usado como barganha para negociar", diz.

São sinais de atraso político, que se refletem sobre a qualidade do debate a respeito do futuro do país e inibem a formulação de políticas públicas renovadoras das possibilidades de desenvolvimento em sentido amplo.

De todo modo, além da consistência dos fundamentos macroeconômicos e da preservação do valor da moeda, houve, sobretudo nos últimos seis anos, expressiva melhora na distribuição de renda, como apontam vários indicadores. Em 15 anos, o trabalho infantil no país caiu 50%, a classe média saltou de um terço para 50% do total da renda brasileira e 32 milhões de pessoas ascenderam socialmente. São números que, um dia, não passavam de projeções espelhadas num horizonte distante, o longo prazo da época.

Olhando agora para a frente, Louis Bazire, do BNP Paribas, acredita que o Brasil leva vantagem em vários aspectos sobre outros emergentes. "Enquanto a China possui 20% da população mundial e 6% da terra agricultável, no Brasil as proporções se invertem, praticamente com os mesmos números."

A produção de alimentos não é a única vocação que Bazire enxerga para o Brasil. Ele acredita que, pela força e dinamismo da economia, o Brasil deve se firmar como centro financeiro da América do Sul, atraindo empresas de outros países da região para engrossarem o mercado de capitais capitaneado pela Bolsa de São Paulo.

Na visão de Oriovisto Guimarães, presidente do grupo Positivo, um dos maiores fabricantes de computadores do país, com interesses também na área educacional, o curto período de estabilidade vivido pelo país ainda não é suficiente para garantir crescimento sustentado no futuro. Para que o Brasil atinja a condição de potência econômica nos próximos 20 anos, ele defende a execução de um programa de governo, sobre o qual parece haver consenso entre seus pares, centrado na modernização do marco regulatório da infraestrutura - em especial, energia, portos, aeroportos e transportes - para atrair capitais privados, a recuperação da capacidade de investimento do governo e mais recursos para educação e tecnologia.

Glauco Arbix, ex-presidente do Ipea, lembra que é fundamental remover o obstáculo da desigualdade social. "Com a industrialização acelerada, que elevou o Brasil da condição de cafezal dos anos 1930 para oitava economia do mundo nos anos 1980, nos tornamos um dos países mais injustos e desiguais." O processo de inclusão, a seu ver, deve ser sustentado por mecanismos de inovação que abram espaço para o empreendedorismo. "Não adianta trazer para o mercado milhões de pessoas se não conseguirmos aproveitar a capacidade delas de trabalhar ou abrir seu próprio negócio. Se não completarmos esse ciclo, seremos responsáveis por um dos maiores desperdícios da história, pois corremos o risco de fazer a inclusão e depois excluir essas pessoas depois de dois ou três anos."

Para o economista Marcelo Neri, e chefe do Centro de Pesquisas Sociais da FGV-RJ, o Brasil trouxe os pobres ao mercado, nesses últimos anos, o que ajudou as empresas a saírem da crise. "Agora precisamos dar o mercado aos pobres, oferecendo educação de qualidade e outros mecanismos, como microcrédito e microsseguro."

Isoladamente, é provável que a ausência de uma educação primária pública de massa e de alta qualidade seja a principal restrição que o Brasil enfrenta hoje para sair da condição de "emergente" e ocupar lugares de relevância conclusiva entre as maiores economias, observa Renato Perim Colistete, professor da FEA/USP. "Não que tal restrição impeça o crescimento econômico, pois o Brasil se constitui num exemplo clássico de que crescimento econômico acelerado convive, e bem, com alta desigualdade. Mas para falar em crescimento sustentado, com melhor distribuição de renda e socialmente mais justo, a educação primária teria de ser elevada à condição de prioridade nacional nas próximas décadas."

"As políticas públicas voltadas à educação básica", lembra Colistete, "sempre foram extremamente limitadas, atingindo uma parcela marginal da população, apesar da consciência que se tinha, desde o século XIX, que isso representava um dos principais fatores de atraso do Brasil em relação aos Estados Unidos e Europa. Com o poder político concentrado nas mãos de poucos, a demanda por educação básica de massa nunca passou de uma bandeira de idealistas, se muito."

Hoje, segundo Colistete, a educação primária pública atinge formalmente a maioria das crianças, "mas continua tão segregadora como antes, dada a baixíssima qualidade do ensino oferecido nas escolas, resultado da baixa prioridade e do pouco caso com que continuam sendo tratados os alunos, os professores e a escola pública primária em geral".

Com a colaboração de Cyro Andrade

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