domingo, 3 de janeiro de 2010

Goethe e a chama viva da verdade

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Composto por dois textos, Ensaios Reunidos, de Walter Benjamin, é estudo aprofundado sobre o legado do autor alemão

Marcelo Backes, Especial para O Estado

Walter Benjamin é um pensador que sabe avaliar o fio e o peso de seu instrumento crítico. Os dois textos de Ensaios Reunidos - Escritos Sobre Goethe (tradução de Sidney Camargo, Irene Aron e Monica K. Bornebusch) são bem diferentes um do outro e a sugestão é, desde já, começar pelo segundo. Intitulado Goethe, ele abre o panorama e faz um esboço geral em que o primeiro fecha o foco e disseca o particular. Goethe foi concebido entre 1926 e 1928 como texto para a Grande Enciclopédia Soviética, As Afinidades Eletivas de Goethe foi publicado em duas partes em 1924 e 1925 na revista Neue Deutsche Beiträge.

Goethe começa pela aversão de Goethe à metrópole e logo mostra ser um artigo de enciclopédia, mas com caldo. A trajetória do autor é comparada com a de outros autores fundamentais. As mudanças sociais, a perspectiva histórica e as contingências biográficas - as mulheres que marcaram sua vida, a presença de sua atividade palaciana na segunda parte do Fausto - não ficam de lado. Há constatações perspicazes como a de que a poesia alemã só se libertou da esfera da descrição, do didatismo e da narração a partir dos poemas de Goethe.

Benjamin chega a discutir as obras "científicas" do maior dos clássicos alemães, sobretudo na medida em que esclarecem pontos importantes de suas obras ficcionais e dramáticas. Goethe é comparado com Voltaire e sua relação com Schiller é dissecada, assim como seus grandes erros de apreciação - ele foi incapaz de avaliar a importância de Jean Paul, Kleist e Hölderlin. Num belo momento, Benjamin fala do ceticismo do autor diante da sede de rapidez e de riqueza do mundo moderno - a contemporaneidade autofágica teria muito a aprender - e do paralelo que este vê entre sofisticação e mediocridade.

Sobretudo no ensaio As Afinidades Eletivas de Goethe, Benjamin mostra momentos de profundidade ímpar: "O ser humano não escapa ao infortúnio que a culpa chama sobre ele." O ensaio já começa com a diferenciação teórica entre comentário (que busca o teor factual) e crítica (que busca o teor de verdade de uma obra). A verdade logo é caracterizada como "a chama viva" que "continua a arder sobre as pesadas achas do que foi e sobre a leve cinza do vivenciado".

Este primeiro ensaio pressupõe a leitura do romance e não apresenta uma descrição antecipada do enredo, mergulhando fundo no caráter simbólico e no fundamento mítico da obra. A biografia recebe a devida importância mais uma vez e As Afinidades Eletivas revelam o produto vigoroso de um indivíduo e de uma época peculiares. O crítico sabe dar valor a seu objeto, recuperando um diálogo em que Goethe respondeu a uma mulher que alegou não suportar a imoralidade do romance: "Sinto muito, é na verdade o meu melhor livro." Benjamin também percorre o caminho da crítica anterior a ele. O tom chega a ser sarcástico quando diz que o Goethe de Friedrich Gundolf é o tosco pedestal da estatueta do próprio crítico. A percepção aguçada do detalhe faz Benjamin parar no fato de provavelmente não haver, em qualquer literatura, uma narrativa da mesma extensão em que apareçam tão poucos nomes. Especulativo aqui e ali, ele chega a dizer de Goethe: "O medo é a raiz das omissões em sua vida erótica."

Benjamin discute o significado do casamento indo além das Afinidades Eletivas, cercando o assunto com a teoria de vários filósofos, a começar por Kant, para daí chegar à abordagem de Goethe. Usa também outras obras, anotações, cartas e comentários do autor, registrados por Eckermann e companhia. Traça, ainda, uma linha que leva a outras obras de Goethe e relaciona a Ottilie das Afinidades à Mignon do Wilhelm Meister e à Helena do Fausto. Ao final, resta a grande pergunta. Onde reside, na vida dos cônjuges, o passo em falso? "Na indecisão de outrora ou na infidelidade do presente?" E em que medida o empreendimento não era equivocado desde o princípio? Já passa da hora de falar um pouco do enredo, para dar fundamento ao meu e ao discurso de Benjamin.

O romance As Afinidades Eletivas é de 1809 e seria um mero interlúdio novelesco de Os Anos de Peregrinação de Wilhelm Meister, mas acabou crescendo a ponto de ganhar autonomia. Eduard e Charlotte se unem para viver livres e felizes num recanto distante depois de terem tido, ambos, casamentos convencionais. A promessa duvidosa de paz se quebra quando Eduard quer chamar até eles um velho amigo em necessidade, o capitão Otto. Charlotte se recusa a aceitar a ideia, mas depois concorda e traz sua sobrinha Ottilie para ajudar nos trabalhos de casa. Eduard se sente cada vez mais atraído por Ottilie, enquanto Otto e Charlotte se mostram decididos a não cair em tentação. A criança que nasce depois de uma noite de amor e "traição espiritual" entre os cônjuges é muito parecida com Otto e Ottilie (eis, aliás, uma chave interpretativa para um dos maiores romances brasileiros, publicado quase um século mais tarde: Dom Casmurro, de Machado de Assis). Depois disso, seguem-se uma série de catástrofes, que abandono ao prazer do leitor.

Goethe faz um estudo aprofundado do embate entre o mundo institucional do casamento e o mundo livre das paixões, entre as normas civilizatórias e a barbárie dos instintos, terminando por concluir que os esforços da razão sempre titubeiam diante da força destruidora das pulsões. Fazendo propostas ensaísticas que lembram o Freud de O Mal-Estar na Civilização, Benjamin disseca o romance e mostra mais uma vez que é um crítico com os pés no chão, mas que sabe alçar o voo ousado que leva da arte à vida.

Marcelo Backes é escritor, tradutor e ensaísta, doutor em germanística e romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha, é autor de Estilhaços e maisquememória, entre outros

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