sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A força do carisma

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Getúlio Vargas e Ademir Menezes, da seleção de futebol, seguram a taça ganha pelos brasileiros no campeonato sul-americano, em 1952

Por Carla Rodrigues, para o Valor, do Rio

A história brasileira é pontilhada por lideranças consideradas carismáticas, que vão de d. Pedro II a Jânio Quadros, passando por Getúlio Vargas e desaguando em Luiz Inácio Lula da Silva. Embora faça parte dessa grande família de políticos, "nunca na história deste país" houve um presidente como Lula. "Ele é um fenômeno único. Não se encontra na política brasileira outro líder que tenha condensado tanta popularidade em tão pouco tempo", afirma o cientista político Renato Lessa, do Iuperj, para quem a popularidade de Lula não pode ser comparada nem com a do momento áureo de Getúlio. "Lula é popular num ambiente democrático, em que todo mundo pode dizer o que quer".

Com um departamento de imprensa e propaganda, o famigerado DIP, braço da censura acoplada ao incensamento de sua figura onipresente, Vargas detinha o monopólio da comunicação com as massas. Dessa forma, dava-se no ditador a confluência do carisma e do populismo, que tão frequentemente se alimentam um ao outro - embora não necessariamente em ditaduras.

Para o sociólogo alemão Max Weber, o carisma é a qualidade pela qual alguém é colocado à parte das pessoas comuns e é tratado como se dotado de poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanas, ou, pelo menos, excepcionais. Não são traços encontrados entre pessoas quaisquer. São considerados de origem divina, ou qualificados, mais terrenamente, como exemplares. Os ungidos são tratados como líderes, completa Weber.

Esses privilegiados podem, como pôde Getúlio, exercitar seu carisma em práticas de populismo, que se define pela relação direta do líder com as massas. Há variações, mundo afora, de resultados que brotam dessa comunicação sem passagens intermediárias típicas de democracias representativas. Esse populismo mais de uma vez constituiu, como parece ter acontecido na época de Vargas ditador, uma espécie de primeiro momento de expressão política, ou propiciador dele, para os pobres de um país.

Para o cientista político Francisco Weffort, um dos fundadores do PT e ex-ministro da Cultura no governo Fernando Henrique Cardoso, carisma e liderança populista não se equivalem, nem devem ser tratados como sinônimos. "Carisma é um conceito da história religiosa, são os católicos que obedecem a quem tem carisma, como se essa pessoa representasse a palavra de Deus. Carisma não tem nada a ver com política."

Weffort acredita que não é possível comparar Lula a Getúlio, nem classificá-lo como populista. "O Lula não é um populista. E, se for, não é um populista clássico", avalia, reconhecendo no governo, porém, um traço que poderia ser considerado populista: o que ele chama de distributivismo social. Mesmo identificando essa semelhança, Weffort rejeita a classificação de populista para Lula com o argumento de que as políticas sociais que beneficiam a massa são uma característica dos sistemas democráticos. "Todos os políticos precisam dar atenção ao fato de que é a massa quem decide. E, na democracia, o político precisa encontrar um jeito de agradar à massa."

Os eleitores "deste país" (expressões do falar de carismáticos costumam popularizar-se) darão resposta, este ano, à intenção de Lula de transferir sua popularidade e fazer seu sucessor, vitória até hoje só obtida por Getúlio em 1945, quando elegeu o presidente Eurico Dutra, um não carismático absoluto.

"Transferência de voto não é uma coisa tão simples, mas pode ser que tudo que aprendemos sobre isso não funcione nesse caso porque é o Lula", avalia a diretora executiva do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari. Ela explica que, por tudo que se conhece, nas pesquisas de opinião, sobre transferência de votos, Lula não alcançaria a mesma façanha de Getúlio em 1945. Mas, pelas peculiaridades do presidente, essa é uma hipótese a ser considerada. Márcia só está certa de que a transferência não é automática e costuma acontecer somente com uma parte dos votos que supostamente iriam para o candidato original.

Lessa também acredita na possibilidade de Lula transformar um tanto de seu prestígio em votos para Dilma Rousseff. "Ele pode transferir uma parte dessa popularidade e levá-la para o segundo turno." Para Lessa, no entanto, é muito difícil pensar em continuidade política quando se troca o governante. "As escolhas são muito ligadas às pessoas."

Márcia observa que, em muitos lugares e épocas, "a criatura rompeu com o criador" - ou seja, depois de eleito, o político que deveria representar continuidade desligou-se de seu mentor e ignorou os compromissos assumidos na campanha. "O eleitor aprende com isso."

Uma das principais razões para que seja difícil imaginar o comportamento do eleitor está no fato de que, desde a primeira eleição redemocratizada, em 1989, Lula sempre foi candidato. Para o cientista político Jairo Nicolau, colega de Lessa no Iuperj, a singularidade da não participação de Lula numa eleição ainda não pode ser dimensionada. "Dilma nunca passou por uma eleição, não se pode prever o que vai acontecer com essa proposta de continuidade sem o político que a representa. Como tudo na política brasileira é muito em torno da pessoa, o eleitor não acredita em continuidade sem o político."

Além do mais, nem Dilma Rousseff, nem José Serra, os dois principais nomes para a sucessão de Lula, se encaixam no perfil de liderança carismática capaz de emocionar o eleitorado. Lessa acha ótimo. "São alternativas mais técnicas, que vão substituir o voto do coração. Ai do país que precisa de grandes líderes para ser governado."

Mas há também quem acredite que a candidatura de Marina Silva pode decolar justamente nas asas da preferência do eleitorado por políticos que aliem suas plataformas políticas a uma trajetória pessoal singular. Márcia lembra que Marina tem uma história de vida muito parecida com a de Lula, mas afirma que, além do carisma, é preciso ter condições concretas de disputar, como tempo de TV, estrutura partidária e de campanha. "Ela pode ser o Lula daqui a três eleições."

Para a historiadora Ângela Castro Gomes, da FGV, que reconhece em Marina uma liderança carismática, "engana-se quem pensa que o carisma vem apenas da grande capacidade de oratória. Carisma tem a ver com a trajetória de vida do político e com a forma como essa trajetória é apresentada. É uma colagem entre quem é o candidato com o seu programa de governo".

Ser carismático não é condição para se ter sucesso na política. Está aí o exemplo da eleição do prefeito Gilberto Kassab, em São Paulo, que era vice de Serra quando o atual governador deixou a prefeitura para candidatar-se ao Palácio dos Bandeirantes. "É um diferencial, uma característica a mais, um atributo natural que já foi considerado muito importante, mas é só mais um. Um político que não seja carismático não está condenado ao fracasso", avalia Nicolau.

O historiador Carlos Guilherme Mota associa liderança política carismática a atraso. "Líderes messiânicos e personalidades fascistas ou totalitárias começam com o uso de carisma, e logo depois encantam-se consigo mesmas e passam ao abuso de seus poderes, mas sempre pressupondo a ignorância dos outros. No Brasil, temos uma hemorragia de lideranças carismáticas no momento. Sinal de pobreza, não só econômico-financeira, mas mental e cultural."

Mota não está simplesmente engrossando o coro dos descontentes com a política brasileira. Ele acredita que há uma nação nova surgindo em salas de aula, em laboratórios, em congressos de profissionais e até mesmo entre o empresariado. "O Brasil, seus partidos, sua cultura política ficaram velhos e ninguém aguenta mais essa República corrupta, rançosa, datada. Por isso, vem despontando uma nova sociedade civil, que não engole tudo o que está aí. E os jovens estão buscando novas utopias, pois o populismo liquidou com as antigas utopias."

O populismo a que Mota se refere não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Na América Latina, o populismo se caracteriza, segundo Francisco Weffort - autor do clássico "O Populismo na Política Brasileira" - , como um fenômeno que começa nos anos 1930, com a urbanização, e se aprofunda nos anos 1940/1950, com a transição entre uma sociedade rural e patriarcal para uma sociedade urbana e de massas. Também define o populismo um tipo de política praticada por líderes que são dissidência do sistema tradicional. Para Weffort, o presidente Getúlio Vargas encarna o símbolo máximo de político populista na história brasileira justamente por ter governado no período marcado por aquela transição e por ter se tornado um líder de massas tendo como origem a velha oligarquia rural do Rio Grande do Sul.

O tipo de líder do qual Getúlio é o principal exemplo se apresenta como benfeitor desse eleitorado pobre emergente que está sendo incorporado como massa nas grandes cidades (não por outra razão ele era chamado de "pai dos pobres") e tem grande capacidade de intervir na economia. Weffort lembra que Getúlio criou a Petrobras, a Vale do Rio Doce e toda a siderurgia nacional no rastro da crise do Estado liberal, instituindo o modelo de um Estado intervencionista.

Na sequência e seguindo a mesma linha, Juscelino Kubitschek criou a indústria automobilística.
Hoje, com a economia concentrada no setor financeiro, um presidente não tem a mesma capacidade de intervenção. "O máximo que o Lula conseguiu fazer para intervir na indústria foi reduzir o IPI", entende Weffort.

Cada um a seu modo, Renato Lessa, Jairo Nicolau e Ângela de Castro Gomes são críticos do uso do termo populismo para pensar ou explicar o que acontece na política brasileira. Lessa lembra que, como tudo que inspira presença das massas populares, a palavra populista é uma designação acusatória. "É uma ideia imprecisa, que aponta para patologias políticas."

Embora o termo faça parte do vocabulário político de uso comum, Ângela questiona sua validade.
"A palavra ganhou um sentido negativo e acusatório, e sempre é usada com a intenção de dar a entender que o político está fazendo falsas promessas ou tentando enganar o eleitor" - supostamente incapaz, por sua vez, de distinguir o bom do mau político.

Jairo Nicolau segue a mesma linha de Ângela e lembra que, no senso comum, a palavra populismo é quase uma peça de acusação. "O termo está contaminado, não ajuda muito a pensar sobre a política brasileira."

Carlos Guilherme Mota identifica em Pedro II o primeiro líder carismático, e também o nome inaugural de uma linhagem de populistas que passaria por Luiz Carlos Prestes, teria seu auge em Getúlio - "um Maquiavel de bombachas que driblou direitas e esquerdas" -, incluiria Leonel Brizola e desaguaria em Lula. "Ao contrário de Brizola, Lula conseguiu mobilizar o proletariado mais moderno do ABC, mas se perdeu na conciliação com as elites mais retrógradas."

No Brasil dos últimos 16 anos, a receita para agradar à massa tem sido mais ou menos a mesma, afirma Lessa, apontando para as semelhanças entre o governo de Fernando Henrique Cardoso e o de Lula, ambos apoiados em políticas sociais, economia de mercado, crescimento econômico e fortalecimento democrático. "Há uma convergência para o centro." Para Lessa, uma das diferenças estaria no fato de que, embora FHC não seja totalmente desprovido de carisma, Lula opera no vazio institucional de um parlamento desgastado e num vácuo de poder que é preenchido pelo presidente.

"No Brasil, quando a economia vai bem, o líder vai bem. O presidente tem poderes imperiais porque o governo federal é a maior reserva de recursos públicos do país", calcula Weffort. A concentração de recursos que dependem da caneta do presidente da República e a convergência para o centro explicariam, por exemplo, a importância do PMDB na sucessão presidencial.

Os pesquisadores Cesar Romero, Dora Rodrigues Hees, Violette Brustlein e Philippe Waniez trabalham com a análise histórica e geográfica dos dados eleitorais para mostrar que, desde a vitória de Fernando Collor, em 1989, vence a eleição presidencial o candidato que consegue reunir três requisitos: fechar alianças partidárias nos grotões, municípios de até 100 mil habitantes nos quais estão concentrados 40% do eleitorado; conquistar o voto dos eleitores evangélicos, majoritários nas periferias metropolitanas onde a Igreja Católica tem perdido fiéis desde a década de 1980; e atrair, por estratégias de marketing bem-sucedidas, os votos da classe média urbana, escolarizada, residente nos grandes centros, onde a tendência é a do voto de opinião. E se houver carisma, claro, provavelmente tudo ficará mais fácil.

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