sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Reflexão do dia – Antonio Gramsci

Grande política (alta política) - pequena política (política do dia-a-dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma política. Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política ( Giolitti, baixando o nível das lutas internas, fazia grande política; mas seu súcubos, objeto de grande política, faziam pequena política). Ao contrário, é coisa de diletantes pôr as questões de modo tal que cada elemento de pequena política deva necessariamente tornar-se questão de grande política, de reorganização radical do Estado. Os mesmos termos se apresentam na política internacional: 1) a grande política nas questões relacionadas com a estatura relativa de cada Estado nos confrontos recíprocos; 2) a pequena política nas questões diplomáticas que surgem no interior de um equilíbrio já constituído e que não tentam superar aquele equilíbrio para criar novas relações.

Maquiavel examina sobretudo as questões de grande política: criação de novos Estados, conservação e defesa de estruturas orgânicas em seu conjunto; questões de ditadura e de hegemonia em ampla escala, isto é, em toda a área estatal.Russo, nos Prolegomeni, faz do Príncipe o tratado da ditadura (momento da autoridade e do indivíduo) e, dos Discorsi, o tratado da hegemonia (momento do universal e da liberdade). A observação de Russo é exata, embora também no Príncipe não faltem referências ao momento da hegemonia ou do consenso, ao lado daquele da autoridade ou da força. Assim, é justa a observação de que não há oposição de princípio entre principado e república, mas se trata sobretudo da hipóstase dos dois momentos de autoridade e universalidade.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. vol. 3. p. 21-22.

Um ano intenso:: Míriam Leitão

DEU EM O GLOBO

O ano de 2010 teve mais crescimento, mais inflação, mais emprego, mais incerteza externa, mais alta nos preços de commodities do que se esperava. Foi um ano que surpreendeu pela intensidade, mas não pela direção dos eventos. Já se esperava uma alta do PIB, mas foi ainda maior. Sabia-se que os países emergentes puxariam o crescimento, mas não que dependeria só deles.

Foi um dos melhores anos da história recente da América Latina, e terminou com uma alta do PIB regional de 6%. Apesar de o Brasil ter crescido bem mais do que os 5,5% que o mercado previa, não foi o país que mais cresceu. Ficou atrás do Paraguai, Uruguai, Peru e Argentina. Mas na Argentina é bom lembrar que a qualidade do crescimento não é a mesma, porque o país está flertando com inimigos perigosos: a inflação em dois dígitos e a manipulação do índice de preços. Só o Haiti e a Venezuela tiveram desempenho negativo do PIB. O Haiti pelas tragédias que se seguiram ao terremoto; a Venezuela como resultado do desatino do seu governante.

A China crescendo ajudou a puxar o mundo e elevou os preços de produtos que o Brasil exporta, o que nos ajudou a terminar o ano com exportações recordes. Por outro lado, pôs mais um pouco de lenha na fogueira da inflação. O IPCA terminou o ano bem acima do centro da meta e os IGPs na perigosa marca dos 11%.

A Europa foi o grande centro de incerteza, mas não o único. O persistente baixo crescimento dos Estados Unidos levou a uma política de expansão fiscal e monetária que espalhou seus efeitos pelo mundo inteiro. Apesar de estarem se tornando relativamente menores, em relação ao PIB global, os Estados Unidos têm uma economia grande demais para ser "gostoso" vê-lo entrar em crise, como disse em mais uma declaração despropositada o incorrigível presidente Lula. A crise americana foi ruim para o mundo todo. Um dos seus efeitos foi a onda de queda da moeda americana em vários países, principalmente nos emergentes.

A política de controle do câmbio na China ficou ainda mais destoante. O debate concentrou as atenções nas reuniões das maiores economias do mundo e foi batizado pelo ministro Guido Mantega como guerra cambial. É assunto inconcluso e destinado a produzir efeitos em 2011 e além. O mundo das moedas tem ainda vários desequilíbrios. O yuan chinês não flutua como outras moedas, dando ao produto exportado pela China uma competitividade extra e desleal; o dólar, moeda de referência do comércio internacional, cai em relação à maioria das moedas; o euro tem dúvidas sobre seu próprio futuro.

Em outubro, a Fazenda dobrou o IOF sobre a entrada de capital para renda fixa para tentar conter a enxurrada de dólar procurando o ganho alto dos juros brasileiros. Naquela época, a moeda americana estava em R$1,69. No último dia útil do ano, fechou em R$1,66. Ficou tudo na mesma. O FMI não soube o que fazer, e o G-20 não foi além das palavras de uma declaração de intenções de que os países evitariam desvalorizações competitivas.

No Brasil, não foi apenas um ano de crescimento econômico, foi de intensa atividade de compra e venda de empresas. O varejo viveu o melhor ano da década, com crescimento forte de vendas ainda não completamente contabilizadas e, além disso, continuou a temporada de concentração do grande varejo iniciada em 2009 com a compra das Casas Bahia pelo Grupo Pão de Açúcar, que já havia comprado o Ponto Frio. Para citar apenas alguns dos negócios na temporada de fusões e aquisições: a Ricardo Eletro e a Insinuante se juntaram e a Magazine Luiza comprou a rede nordestina Maia.

O debate eleitoral foi tão exaustivo quanto inútil. Tanto oposição quanto governo concentraram-se em assuntos não relevantes, em falsos problemas, repetindo fórmulas supostamente inteligentes criadas pelos marqueteiros. Nesse aspecto, a única e breve novidade foi a candidatura de Marina Silva, que virou o estuário dos descontentes pela disputa ao mesmo tempo radicalizada e desprovida de significado. Já se sabia que o presidente Lula considerava ponto de honra eleger Dilma Rousseff, mas não que ele transformaria o governo num comitê eleitoral. A intensidade com que ele fez campanha é um risco para a qualidade da democracia brasileira.

Com o mesmo propósito eleitoral, o governo fez uma perigosa política fiscal pró-cíclica, aumentando os gastos em ano de crescimento. Também estava previsto uma política fiscal mais frouxa pelo ciclo eleitoral, mas não que o governo iria manipular a contabilidade pública para tentar atingir a meta fiscal num ano em que a arrecadação aumentou de forma expressiva.

Já se sabia que a oposição estava dividida, mas não que faria uma campanha tão sem rumo e tão sem propósito. O país tinha noção que a Justiça estava confusa sobre a validade da Lei do Ficha Limpa, mas não que ficaria tão desnorteada deixando passar o tempo e decidindo de forma tão contraditória.

No Rio, a esperança com as operações bem sucedidas das UPPs nasceu timidamente nas primeiras experiências realizadas em anos anteriores, mas ninguém esperava que o Complexo do Alemão fosse tomado tão cedo. O próprio governador Sérgio Cabral contou que a operação militar foi antecipada em um ano e meio pela série de atentados ocorridos na cidade do Rio. De novo, a marca do ano: a direção dos eventos era prevista, mas a intensidade foi inesperada.

Na maioria dos fatos foi assim, o ano confirmou o que se esperava dele, mas surpreendeu por ser intenso em todos os sentidos. Tenham todos uma boa passagem de ano, de alegria intensa.

Mais déjà-vu ou novas estratégias? :: Washington Novaes

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

E se chega ao fim do ano com a incômoda sensação - relendo o que o autor destas linhas escreveu neste espaço no primeiro dia de 2010 - de que o tempo não passou ou não foi aproveitado para enfrentar as graves questões ali enumeradas. De novo, várias capitais e outras cidades às voltas com inundações, evidenciando seu despreparo para se adaptarem às mudanças climáticas com programas de readequação das áreas urbanas aos eventos extremos, cada vez mais frequentes. O último balanço do ano acusa 250 mil mortos no mundo em consequência de "desastres naturais" (incluindo enchentes, terremotos, etc.), mais que os 115 mil que perderam a vida em atos terroristas ao longo de 40 anos (The Washington Post, 20/12). E US$ 222 bilhões de prejuízo.

Mas pouco ou quase nada conseguimos avançar, como demonstrou a reunião da Convenção do Clima em Cancún - com duas questões novas e graves: 1) A Bolívia recorrendo e cortes internacionais porque seu voto na reunião - que impedia o consenso indispensável para decisões - não foi levado em conta; 2) os países-ilhas, como o Arquipélago de Marshall, com 61 mil habitantes, perguntando quem assumirá a solução se ele desaparecer do mapa com a elevação do nível do mar (a seu pedido, a Universidade Columbia, nos EUA, discutirá a questão em abril). Enquanto isso, países "emergentes" e "em desenvolvimento acusam os industrializados e recusam-se a assumir compromissos de redução de emissões - deslembrando a proposta brasileira de 1997, em Kyoto, de que cada país deveria assumir cotas de redução proporcionais à sua contribuição para o acúmulo de gases na atmosfera desde a revolução industrial e às atuais emissões.

E assim seguimos impermeabilizando nossas cidades, entupindo-as com veículos (no mundo, são 170 mil veículos novos por dia), assoreando rios com deposição de esgotos, sem regras para a expansão urbana. Diz a Agência Nacional de Águas que em seis anos 1.896 de 2.965 municípios analisados atingirão o limite máximo de fornecimento de água. Mas as perdas de água nas redes urbanas continuam por volta de 40% (26% em São Paulo), sem que haja programas de financiamento para projetos de recuperação e manutenção das redes, muito mais baratos que construir mais barragens, adutoras e estações de tratamento. Quase metade dos brasileiros não conta com redes de coleta de esgotos em sua casa, pelo menos 20 milhões não recebem água tratada, menos de 30% dos esgotos coletados recebem algum tratamento. Mas não se cumprem sequer os objetivos previstos no PAC e a "universalização" do saneamento levará pelo menos 20 anos.

Agora temos uma Política Nacional de Resíduos Sólidos. Mas nos faltam instrumentos e recursos para dar destinação adequada a pelo menos 230 mil toneladas diárias de lixo domiciliar e comercial. Os municípios gastam hoje mais de R$ 15 milhões por dia na coleta, mas os aterros das grandes cidades estão quase todos esgotados e 70% dos municípios não dão destinação adequada aos resíduos. Com a colaboração do Senado - que suprimiu no projeto de lei nacional a indicação de que a incineração só seria permitida se inviáveis o reaproveitamento, reciclagem ou aterramento do lixo -, os caríssimos e inadequados projetos de incineração avançam a passos céleres em vários lugares. Nos últimos dias do ano, o decreto-lei presidencial que regulamentou a política de novo restabeleceu a prioridade para outras possibilidades.

A Convenção da Biodiversidade em Nagoya demonstrou a gravidade da situação no mundo, que consome 30% mais de recursos naturais do que o planeta pode repor. Mas se tenta por aqui mudar o Código Florestal para reduzir as exigências de conservação. Avança-se um pouco na Amazônia na questão do desmatamento, mas se vai em frente a todo vapor com os projetos de novas hidrelétricas, comentados aqui na semana passada. E o Cerrado, que este ano se transformou num imenso caldeirão, com número recorde de queimadas, continua a perder vegetação em 14 mil km2 anuais, segundo o governo, 22 mil segundo as ONGs. Até pelo avanço descontrolado do plantio de cana-de-açúcar. Certamente com consequências muito fortes, inclusive no acúmulo de água para as três bacias hidrográficas que abastece, e na agricultura, que já se ressente de perdas fortes. Mais que nunca, fica evidente a ausência da chamada "transversalidade" nas ações do governo federal - o ex-secretário-geral do Ministério do Meio Ambiente João Paulo Capobianco chegou a dizer que "o governo não tem política ambiental".

Quando se reveem temas sociais tratados ao longo do ano, fica evidente que o setor de saúde continua empacado, e agora com a alegação de que é preciso recriar a CPMF para financiá-lo, quando a administração federal continua a gastar mais de R$ 150 bilhões por ano em pagamento de juros bancários e a investidores em papéis financeiros (mais de 12 vezes o orçamento anual do Bolsa-Família). Mas não se empenha numa verdadeira reforma tributária, que cesse com os programas de incentivos fiscais concedidos pelos Estados e que somam centenas de bilhões de reais por ano - concentrando a renda e desviando recursos da saúde e da educação. Esta última, sem profundas modificações, não conseguirá avançar na qualificação de pessoas para o mercado e na abertura de saídas para jovens que abandonam a escola e aderem à marginalidade.

É evidente que o País avançou em muitas áreas sociais nos últimos anos, com a estabilização monetária, os vários programas sociais consolidados, o crédito consignado. Mas terá de conceber novas estratégias, se não quiser ser vítima da crise financeira mundial e das transformações internacionais na produção de bens que concorrem com os nossos.

Agora, é esperar se as novas administrações se conscientizarão das novas realidades ou seguirão no déjà-vu inquietante.

Jornalista

O homem e o mito:: Eliane Cantanhêde

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Lula cumpre hoje o último dia de seus oito anos como presidente do Brasil, um país "abençoado por Deus e bonito por natureza", com um crescente papel na construção de um mundo mais justo e mais pacífico.

Ao subir a rampa, em primeiro de janeiro de 2003, Lula carregou com ele uma história de vida incontrastável e uma nítida boa vontade de pobres, de ricos e da classe média que antes o rejeitava. Ao descer, em primeiro de janeiro de 2011, deixa um raro registro de sucesso para a história.

Ele pegou o bonde da estabilidade andando e tocou em frente, movido por um ambiente internacional francamente favorável e por sua estrela, inteligência, intuição, carisma e empatia com o seu povo.

Em seu governo, milhões de pessoas saíram da miséria, geraram-se empregos, ampliou-se o crédito, famílias pobres entraram no mercado consumidor. Ele ficou com o carimbo da justiça social num país sempre tão cruelmente desigual.

Mas Lula mostrou também um outro lado. Não enfrentou crises de frente, apropriou-se de méritos de adversários, jogou o mensalão no colo de Dirceu, Genoino e Delúbio, fingiu que o caos aéreo não era com ele, descartou as reformas política, trabalhista, tributária e previdenciária, permitiu (ou garantiu?) que seu filho se tornasse um "Ronaldinho" do dia para a noite.

É de Clóvis Rossi a melhor definição de Lula: ele é inimputável. Diz e faz o que quer, com quem quer, na hora que quer. A sua verdade passou a ser a verdade nacional. O Estado é ele! Quando a Petrobras trocou o nome de Tupi pelo de Lula, empresa e presidente estavam rindo da cara dos 44 milhões que não votaram em Dilma.

Lula desce a rampa idolatrado dentro e fora do país e inebriado por um balanço que lhe é inegavelmente favorável. Mas a vida continua, a história está sendo escrita. Fora do poder, o desafio do homem Lula será sustentar o mito Lula.

Balanço final::Editorial – O Estado de S. Paulo

A era Lula - que pode, ou não, ter chegado ao fim neste 31 de dezembro - foi um período único na história da República. À parte as razões mais óbvias disso, a começar da singular trajetória do presidente e de sua excepcional aptidão para se fazer idolatrado pela maioria dos brasileiros, o ciclo de oito anos que se encerra formalmente hoje se distingue por entrelaçar o melhor e o pior que um governante eleito pelo voto popular já proporcionou ao País.

Esse entrelaçamento é o que desaconselha julgar a presidência Lula de um modo esquemático. Dela já se disse, por exemplo, que o seu lado bom não é novo e o seu lado novo não é bom. O jogo de palavras antepõe duas coisas sabidas. De um lado, o que sem dúvida foi a decisão crucial do presidente de preservar, quando não aprofundar, as linhas mestras da política macroeconômica implantada pelo seu antecessor Fernando Henrique Cardoso. De outro, a política nefasta, em escala sem precedentes, de subordinar o Estado aos interesses da confraria partidária-sindical que se converteu, graças a sua eleição, na nova elite do poder no Brasil. Ao que se soma a degradação das relações entre o Executivo e o Legislativo e a exploração deslavada do carisma presidencial.

Na realidade, a primeira metade do argumento omite que Lula não apenas teve a lucidez de manter os princípios de gestão econômica que até hoje ele chama de "herança maldita" - provavelmente o que a sua retórica teve de mais mistificador -, como ainda chefiou um governo que demonstrou ter a competência necessária para fazê-lo. Ao mesmo tempo, ele fazia valer a sua liderança para enquadrar a companheirada insatisfeita com o pragmatismo responsável na condução da economia, sem o qual, repita-se pela enésima vez, o Brasil não teria tirado o proveito que tirou de um dos maiores ciclos de expansão dos negócios globais no pós-guerra. E sem o qual, no limite, não teria sido possível resgatar 28 milhões de pessoas da pobreza extrema e alçar outros 36 milhões à classe média.

Já a segunda metade do argumento omite que o mesmo Lula, que não há de ter estado alheio ao mensalão; que não teria por que se surpreender com o vexame dos "aloprados" na campanha eleitoral de 2006; que se entregou de corpo e alma aos expoentes do atraso, do patrimonialismo e da venalidade no sistema político nacional; e que, enfim, se colocou acima do próprio Estado do qual deveria ser o primeiro servidor, ao se declarar a "encarnação do povo", nunca se dispôs a alterar a Constituição para disputar um terceiro mandato consecutivo, ao contrário do que a oposição dava como certo.

É verdade que ele se serviu desbragadamente do governo para eleger a ministra Dilma Rousseff. Mas, na soma algébrica dos prós e dos contras, ele tem a seu crédito a estabilidade das regras democráticas no País.

Outro paralelo semelhante, desse ângulo, é o da atitude de Lula em relação à imprensa. Tomados pelo valor de face, os seus virulentos ataques aos meios de comunicação expressariam uma intenção liberticida. E, no entanto, no que dependeu dele, a imprensa brasileira é hoje tão livre como no dia 1.º de janeiro de 2003. O Lula falante, por sinal, é uma caricatura do Lula governante.

Se o seu governo tivesse que ser julgado pela catadupa de palavras impróprias - e não raro mentirosas - que ele proferiu, nada mitigaria a percepção de que o Brasil viveu um período de retrocesso e de achincalhe da instituição presidencial. O problema, de novo, é destrinchar as coisas.

Os abusos verbais de Lula, às vezes à beira do impublicável, remetem ao espetáculo da política personalista e ao lado rústico de um temperamento construído sob a servidão da vicissitude. Mas as suas políticas resultaram de outro traço de sua formação - o da opção preferencial pela conciliação de interesses, que o Lula líder sindical aprendeu na mesa de negociação com o patronato. Dos beneficiários do Bolsa-Família ao grande capital, todos tiveram o seu quinhão.

Na mesma conjuntura de bonança econômica, um outro presidente poderia não ter idêntica sensibilidade para os dividendos políticos da acomodação. A simbiose de ótimo e péssimo que marcou a era Lula teve nisso o seu ponto culminante.

Lula entre o mito e a realidade: Editorial – O Globo

Luiz Inácio Lula da Silva diria que completa hoje um ciclo "extraordinário" da História brasileira. É o segundo presidente a ficar oito anos consecutivos no poder, em plena democracia - feito idêntico ao de FH. Ainda passa a faixa a quem apoiou nas eleições, Dilma Rousseff, fato inédito na República na vigência do estado de direito democrático. E desce a rampa do Planalto nos píncaros da popularidade, com índice de aprovação acima dos 80%, pulverizando a regra segundo a qual o exercício longevo do poder desgasta. Costuma-se dizer que apenas o distanciamento histórico permite avaliações serenas, diluídas as paixões ideológicas e partidárias. Ainda mais quando se trata de um personagem que ultrapassou os limites entre a política e a mitologia, com pitadas de culto à personalidade - não desestimulado por ele. Sintomático que, no último pronunciamento em rede nacional, Lula tenha parafraseado a carta-testamento de Getúlio.

Mas não é preciso esperar o tempo passar. Há aspectos positivos indesmentíveis na Era Lula: a redução da miséria (20,5 milhões resgatados desta situação, segundo a FGV), com a ampliação de classes médias baixas; e também a defesa da estabilização da economia. Lula patrocinou a menor taxa de desemprego jamais calculada (5,7%) e deixa a economia num ano de crescimento de cerca de 7,5%, porém com a contrapartida da inflação em alta. No plano político, usou o bom senso aplicado na questão econômica no primeiro mandato para contornar o risco de grave crise institucional, ao rejeitar o projeto continuísta.

Mas é preciso mesmo esperar para se saber o que será determinante para a História: se os resultados positivos ou o lado negativo destes oito anos, combatido à base de maciça propaganda ufanista. Para quem apenas ouve o discurso dos poderosos de turno, o Brasil foi campeão no torneio de crescimento mundial. Longe disso. Há meses, o conhecido colunista econômico do "Financial Times" Martin Wolf registrou que, de 1995 a 2009, período de FH e Lula, a participação brasileira no PIB do planeta caiu de 3,1% para 2,9%. Estatísticas sobre o comércio internacional não são melhores: apesar do salto das exportações brasileiras, o peso do país nas trocas mundiais se encontra estacionado em pouco acima de 1%. Tampouco a política externa serviu ao propósito de abrir mercados. Inspirada num antiamericanismo juvenil, a diplomacia companheira caiu na ilusão terceiro-mundista do diálogo "Sul-Sul" num mundo cada vez mais multipolar. Um contrassenso. Se foi anêmico o crescimento durante a gestão FH ---- que enfrentou conjuntura mundial muito diferente da de que se beneficiou Lula -, nos últimos oito anos o país também continuou a patinar em termos de expansão comparativa do PIB. Mas o discurso oficial trata o fracasso como grande sucesso. Em qualquer comparação que se faça, a posição do país não corresponde ao ufanismo sem medidas: no período Lula, entre os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China), o país é que tem a menor média de expansão anual - 4% contra 4,8% dos russos, 8,2% da Índia e 10,9% dos chineses. Mesmo na América Latina, o Brasil fica abaixo da média do continente (4% contra 4,64%). Supera apenas o México (2,1%).

Problema nada desprezível são os juros elevados - os 10,75% mantêm o país no desabonador posto de líder mundial nos juros reais (deduzida a inflação). Algo como 5% anuais, quando a tônica tem sido em torno de 2%, mesmo entre os emergentes. Já foram muito mais elevados, é verdade. Como causa básica do problema estão gastos públicos crescentes, marca do governo Lula, principalmente no segundo mandato, característica enaltecida por parte do PT. E, sem conseguir reduzir os juros naturalmente, impossível elevar a taxa média de crescimento, e mantê-la por longo prazo, a fim de eliminar de vez a miséria. O gasto público sem controle conspira contra o combate à pobreza.

O Brasil cresceu porque foi puxado por um dos mais longos e consistentes ciclos de crescimento mundial sincronizado, com a China na função de locomotiva. O país surfou a onda, mas não conquistou novos espaços. Poderia ter conquistado, caso a política de estabilização executada por Lula no início do primeiro mandato, para conter os efeitos negativos decorrentes da compreensível reação dos mercados às perspectivas de um governo do PT, tivesse, como sequência, as reformas da Previdência, tributária, da esclerosada legislação trabalhista, entre outras. Mas o governo preferiu a capitalização político-eleitoral de curto prazo, e não a preparação do país para um longo ciclo de crescimento sustentado. Em vez de investimentos, nas dimensões necessárias, na melhoria da qualidade do ensino básico, privilegiaram-se gastos de custeio (salários de servidores e contratações); em vez de aperfeiçoamento e ampliação da infraestrutura, aumentos reais excessivos do salário mínimo, sem preocupação com o impacto na Previdência. E, quando surgiu o PAC, emergiu a incompetência gerencial de uma burocracia inchada de servidores e controlada por corporações sindicais aliadas.

Com a economia estabilizada, o crescimento em aceleração e o consequente aumento da arrecadação tributária, ficou mais visível o projeto lulopetista do "Estado forte": carga tributária elevada (36% do PIB) e a ingerência do poder público na "indução" ao desenvolvimento. Inevitável que junto a este modelo brotassem ranços políticos autoritários. Lula se despede com o mantra de que defende a liberdade de imprensa e expressão. Mas algumas iniciativas do governo foram em sentido oposto.

A crise mundial, deflagrada em fins de 2008, viria a conceder a Brasília a licença para gastar ainda mais em custeio ---- peça fundamental no projeto político-eleitoral de 2010 ----- e a usar instrumentos heterodoxos, arriscados, na capitalização de bancos estatais. O movimento mais notório foram os R$180 bilhões destinados ao BNDES por meio do endividamento público. A parte mais clara deste projeto estatista, uma reprodução do intervencionismo do governo militar de Ernesto Geisel, está na mudança do sistema de exploração do petróleo, para restabelecer parte do monopólio da Petrobras, torná-la operadora única nas áreas do pré-sal a serem licitadas, convertendo-a em instrumento de uma arriscada política de substituição de importações de equipamentos. A Viúva pagará a conta da aventura, como já aconteceu após Geisel.

Também é negativo o balanço na política no aspecto do seu garroteamento pelo estilo fisiológico de negociação de alianças imprimido pelo lulopetismo. No primeiro mandato, construiu-se o esquema do mensalão, para azeitar o apoio parlamentar ao governo. Vitorioso Lula em 2006, o lulopetismo foi mais objetivo na montagem da base do segundo mandato: negociou verbas e vagas no ministério com o PMDB e partidos menores, sem pudor - fórmula repetida na construção da equipe que assume com Dilma amanhã. A política com "p" maiúsculo terminou emasculada. Antigas aliadas ideológicas, corporações sindicais foram convidadas ao banquete de repartição do butim do imposto sindical, na contramão da proposta de um sindicalismo "não varguista", independente do Estado, feita por novos líderes metalúrgicos do ABC paulista no final da década de 70/início dos anos 80, Lula à frente deles. Até a outrora combativa UNE virou correia de transmissão do governo, cevada a doses generosas de dinheiro do Tesouro.

Não se desmerecem a inteligência e a competência políticas de Lula e do PT. Mas a realidade é a realidade, e há armadilhas engatilhadas no exercício do poder pelo lulopetismo que precisam ser desarmadas para o bem do governo Dilma e do país. Warren Buffett, bilionário americano, criou uma imagem célebre: "Somente quando a maré está baixa é que se pode ver quem está nadando nu." E a maré da bonança mundial está na vazante há algum tempo.

O que pensa a mídia

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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Sobre o caso Cesare Battisti:: Luiz Sérgio Henriques

DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

O contexto italiano dos anos 1970, no qual se desenrolaram os episódios que levaram à condenação de Cesare Battisti, tem sido descrito com uma certa superficialidade nesta nova e acirrada batalha entre defensores e críticos da recente medida do ministro Tarso Genro, que deu refúgio político àquele militante do PAC — os Proletari armati per il comunismo. Supõe-se muitas vezes que a Itália de então fosse uma ditadura e que se justificava, contra tal ditadura, a resistência armada, ou ainda que se viviam tempos revolucionários, a serem consumados com o recurso à “crítica das armas”, pretensa antessala do comunismo. Supõe-se ainda que, hoje, tal como dito pelo ministro Tarso Genro, a Itália viva algo semelhante a um estado de exceção, incapaz de zelar pela integridade física de um prisioneiro ou, então, disposto a fazer desencadear contra ele injustificável perseguição política.

São suposições que merecem, pelo menos, alguns reparos. A Itália dos anos 1970, mesmo tendo recorrido a leis de emergência na luta contra o terror (tanto o chamado “negro”, de direita ou extrema direita, quanto o chamado “vermelho”, de esquerda ou extrema esquerda), jamais cancelou a vigência da ordem democrática e constitucional. Na verdade, havia uma “democracia de partidos” em pleno funcionamento, e mais do que isso: os anos 70 do século passado representaram, por assim dizer, o auge e o rápido declínio da possibilidade de entrada no governo de um partido tão significativo quanto o antigo PCI. E isto por uma série complexa de motivos.

Por décadas, como se sabe, este partido desempenhou importante papel na reconstrução da Itália, depois do desastre do fascismo e da guerra: o PCI, mas também o PSI e o movimento sindical representaram forças poderosas no processo de modernização e democratização de um país devastado pelo fascismo e pela guerra: fizeram com que o Estado italiano começasse finalmente a superar taras históricas, incluindo as classes subalternas na sua estrutura, legitimando-as como atores de fato e de direito da cena política. E mesmo a Democracia Cristã, sob o impacto deste desafio, não se comportou como partido tradicional da direita, ao reunir massas católicas, conservadoras ou moderadas, e legitimar, também por este lado, o regime democrático e os conflitos a ele inerentes.

Os anos 1970, vistos como o auge deste audacioso movimento de democratização, transcorreram, na política, sob a expectativa do sorpasso (a ultrapassagem) dos democratas cristãos por parte dos comunistas, que pareciam prestes a se tornarem a principal força política e eleitoral. E, naturalmente, a presença dos comunistas, no centro de um novo bloco de forças, representaria o início da via italiana para o socialismo, teorizada pela velha direção togliattiana, ou ainda o ponto de partida para a introdução de “elementos do socialismo”, na visão de Enrico Berlinguer, um dos últimos grandes dirigentes do comunismo histórico.

Este, definitivamente, não é o quadro de um estado de exceção. Bem ao contrário, tratava-se de uma sociedade e de um Estado em ebulição, nos quais se testava a possibilidade de uma transição democrática para uma sociedade de tipo socialista, sob a égide da democracia política, das liberdades e do respeito às leis. Na frase de Berlinguer, uma frase que por si só é quase um programa político ainda hoje, a democracia devia ser “um valor universal”, não um expediente tático que se atira na lata do lixo uma vez obtido o poder. Um elemento fundamental, portanto, do próprio socialismo, que não devia ter as estruturas viciadas do partido único ou do partido-Estado.

Sabe-se hoje que aquela possibilidade de transição era frágil, e por um conjunto grande de razões. Primeiro e fundamentalmente, o povo italiano, chamado a se pronunciar regularmente em eleições livres, jamais permitiu aquele sorpasso. De modo consistente e ao longo dos anos, a formação de um bloco alternativo ao da Democracia Cristã nunca se mostrou viável — e só numa eleição para o Parlamento europeu, já nos anos 1980, é que o PCI teria mais votos do que a DC, mas isso, registre-se, sob o impacto da morte em campanha do próprio Berlinguer. Em segundo lugar, eram os anos em que se iniciou a grande reestruturação econômica e política do capitalismo, depois do impetuoso desenvolvimento do pós-guerra e do compromisso entre capitalismo e democracia a que dera lugar. Os “caminhos nacionais” se estreitavam e se tornavam impraticáveis na Europa, e o próprio “eurocomunismo” de Berlinguer, que de certa forma tinha consciência do fim destes caminhos nacionais, restou dramaticamente isolado: sem o apoio dos demais partidos comunistas tradicionais (e obviamente sem o apoio da URSS) e sem os meios para agir no ambiente sob domínio dos Estados Unidos e do Pacto Atlântico.

Um terceiro elemento se juntou a este conjunto de fatores, e com ele entramos plenamente no nosso tema. Setores subversivos da direita intensificaram sua velha “estratégia da tensão”, iniciada ainda nos anos 1960, partindo para uma sequência de atentados e carnificinas que não poupavam vítimas civis e até buscavam intensificar o número destas. Era a marca do “terrorismo negro”, a de matar indiscriminadamente, como quando, já no final de 1980, explodiu-se a estação ferroviária de Bolonha — uma infame “punição” contra uma cidade símbolo do PCI e então modelo de vida cívica e de economia plural e inovadora.

A estes setores somou-se, gravemente, uma miríade frequentemente confusa de organizações de extrema esquerda, das quais a mais conhecida são as Brigadas Vermelhas, responsáveis pelo ainda hoje obscuro e sob muitos aspectos inexplicado assassinato de Aldo Moro, o político democrata-cristão mais aberto a entendimentos com o PCI. A marca deste “terrorismo vermelho” era uma certa seletividade: assassinavam-se políticos e sindicalistas, inclusive do PCI, grandes dirigentes industriais e pequenos comerciantes. Às vezes, a seletividade tinha algum requinte sádico, como quando se adotou uma nova tática para a qual se criou o vocábulo “gambizzare”. Como se sabe, “gamba” é “perna”, em italiano. Alvejar joelhos e pernas dos adversários passou a ser algumas vezes a nova tática dos que cogitavam chegar ao socialismo ou ao comunismo pela luta armada. Considero isso particularmente cruel. Uma perversão da política. Coisa de criminosos comuns.

Não se trata de “criminalizar a oposição ou o dissenso”, como hoje tantas vezes se diz a propósito de tudo e de nada. Por tudo o que dissemos, pode-se muito bem constatar que, na tarefa comum de desestabilizar o Estado de Direito e fazer retroceder a luta política na Itália, retirando o protagonismo das massas e barrando o notável processo de socialização da política então em andamento, aliaram-se objetiva e subjetivamente o terrorismo vermelho e o negro. Uma aliança que muitas vezes foi tecida com instrumentos fornecidos por setores desviados do Estado — particularmente os serviços secretos —, por lojas maçônicas como a tristemente célebre P-2, por espiões e agentes de ambos os lados em conflito na Guerra Fria e, last but not least, pela criminalidade comum das variadas máfias e camorras. Não exagero nem julgo fatos específicos, mas Cesare Battisti é uma criatura deste momento e deste contexto. Nem mais nem menos. Gente como ele cometeu crimes iguais ou semelhantes aos que lhe são imputados. Crimes contra pessoas comuns e, simultaneamente, contra a democracia e contra o Estado de Direito.

A democracia italiana defendeu-se deste assalto violento sem se desviar do regime constitucional. A atitude do PCI, então hegemônico entre as forças de esquerda, foi decisiva para que se isolassem e derrotassem os setores subversivos: a atitude de uma força de esquerda madura e responsável, atenta à defesa do seu programa fundamental, que, na verdade, era a Constituição republicana feita sob a presidência de Umberto Terracini, um grande comunista amigo de Gramsci e que, por sinal, recebeu uma pena ligeiramente superior à deste último no processone fascista contra os dirigentes do PCI nos anos 1920. A involução autoritária, objetivo nem tão oculto dos terroristas de direita e de esquerda, foi impedida, e é em momentos desse tipo que se afirma, ou não, a capacidade de direção nacional de uma grande força política, mesmo eternamente condenada à oposição pelos constrangimentos da Guerra Fria.

Hoje o PCI não mais existe, mas é perfeitamente possível afirmar que as forças que majoritariamente o compunham se encontram, ao lado de católicos democráticos, no recentemente criado Partido Democrático, depois da experiência do Partido Democrático da Esquerda e dos Democráticos de Esquerda. A Itália tem um governo de centro-direita e à sua frente está uma figura particularmente polêmica, a de Silvio Berlusconi. A coalizão no poder inclui forças que expressam um persistente e não muito disfarçado mal-estar com a própria unidade nacional, como é o caso da Liga Norte. Expressa-se nesta Liga até mesmo um racismo intraétnico contra os italianos do Sul. A luta política, pois, é duríssima, as tensões sociais são inéditas, mas nada disso autoriza a caracterizar como fascista ou pró-fascista o Estado italiano. Na presidência deste Estado encontra-se um homem do porte de Giorgio Napolitano, egresso do PCI, assim como, nos anos 1970, à frente do Estado estava Sandro Pertini, um socialista histórico com passagem relevante numa luta armada de verdade, travada por motivos históricos irrefutáveis — a Resistência contra o fascismo e o nazismo.

Deduz-se facilmente que o atual governo de centro-direita, o terceiro dirigido por Berlusconi, está imerso em contradições graves, embora não tenha chegado ao poder através de golpe de Estado e o país continue sendo, como é acaciano observar, uma democracia, apesar de todas as suas imperfeições. Gostaria de chamar a atenção para uma dessas contradições do governo Berlusconi, um fato que talvez ainda não tenha sido devidamente comentado e divulgado no nosso país.

Tal contradição, que aqui nos interessa, encarna-se num personagem: tem nome e responde por atos tão graves quanto os imputados a Cesare Battisti. Jorge Troccoli — este o personagem — foi capitão dos Fuzileiros Navais do Uruguai e contribuiu para o desaparecimento de muitos oposicionistas da ditadura uruguaia, entre os quais seis cidadãos italianos. Troccoli foi um dos agentes da Operação Condor, uma “internacional” do terrorismo de Estado em ação nos países do Cone Sul dominados pelas ditaduras militares nos anos 1970 e 1980. O curioso é que o governo de Berlusconi negou a extradição de Troccoli para o Uruguai, alegando dupla cidadania. Fora este último aspecto, o caso Troccoli tem muitas semelhanças com o de Battisti. Não faltaram pressões diplomáticas do governo uruguaio, recursos às instâncias do Judiciário italiano, etc., mas o governo de Berlusconi parece irredutível na sua decisão sobre Troccoli, “o Battisti uruguaio”, no dizer do jornal L’Unità. E se trata de um episódio recente, cujas escaramuças diplomáticas e judiciárias mais dramáticas ocorreram em 2008.

No fundo, diante de situações como estas, volto a pensar num homem como Berlinguer. Um homem de partido, sem dúvida um comunista que aos olhos de hoje se diria tradicional, mas cuja formação moral, cuja reflexividade e até certa melancolia talvez o tenham poupado de ilusões mais graves quanto às virtudes supostamente imaculadas dos seus partidários e aos defeitos pretensamente insuperáveis dos seus adversários. Um líder cujo carisma talvez residisse no anticarisma, no apelo ao que havia de mais sensato, razoável e inteligente nos seus amigos, partidários e até mesmo nos que a ele e ao PCI legitimamente se opunham. Precisamos de homens e mulheres assim, que apelem, com grande autoridade moral e sem ambiguidade, ao caráter universal de alguns valores básicos. Sem isso, o que nos espera é a agitação estéril dos sectarismos. De direita ou de esquerda.

Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.

Itália já reage à não extradição de Battisti

DEU EM O GLOBO

Lula anunciará hoje que italiano ficará no Brasil; Supremo só decidirá sobre saída da cadeia em fevereiro

Carolina Brígido, Chico de Gois e Luiza Damé

BRASÍLIA. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou para divulgar hoje, último dia de seu governo, a decisão de manter o ex-ativista italiano Cesare Battisti no Brasil, mas ontem mesmo o governo italiano já reagiu duramente. Lula seguirá a recomendação da Advocacia Geral da União (AGU) de negar o pedido de extradição feito pela Itália. Ainda assim, Battisti não sairá da prisão até fevereiro, quando termina o recesso no Supremo Tribunal Federal (STF). Cabe ao tribunal analisar se o decreto de Lula se encaixa no tratado de extradição firmado entre os dois países. O presidente da Corte, Cezar Peluso, que está de plantão, preferiu deixar a decisão para o colegiado.

Se o pedido de extradição fosse concedido, Battisti teria de cumprir 30 anos de prisão em seu país, pela participação em quatro assassinatos na década de 1970. Ficará a cargo do Ministério da Justiça definir a condição atribuída ao italiano: refugiado, asilado ou, simplesmente, cidadão estrangeiro com visto de permanência.

A decisão de Lula deverá ser publicada no Diário Oficial da União de hoje. Em seguida, o Palácio do Planalto enviará o documento ao STF. Peluso informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que enviará o texto ao ministro Gilmar Mendes, relator do caso Battisti. Gilmar vai elaborar um voto sobre a validade ou não da decisão presidencial e submeterá sua opinião a votação em plenário.

O parecer da AGU recomenda a Lula que negue a extradição de Battisti. O documento diz que o italiano poderia ter sua segurança posta em risco, se fosse para à Itália. Segundo a AGU, o tratado de extradição firmado entre os dois países deixa brechas para que o presidente da República mantenha Battisti no Brasil - ainda que, por cinco votos a quatro, o STF tenha autorizado a extradição, em 2009.

Battisti está preso no Brasil desde 2007. Antes de enviar o parecer a Lula, a AGU submeteu o documento à Casa Civil, ao Ministério da Justiça e ao Itamaraty. O temor era melindrar a relação com a Itália. Por isso, a necessidade de um parecer jurídico para embasar a decisão do presidente.

Governo da Itália diz que decisão 'é inaceitável'

DEU EM O GLOBO

Autoridades italianas recorrerão ao STF, insistindo na extradição

BRASÍLIA. O governo da Itália afirmou ontem que considera "incompreensível e inaceitável" a decisão do governo brasileiro de não extraditar o ex-ativista de esquerda Cesare Battisti. A informação está em nota divulgada pelo governo de Silvio Berlusconi, ontem à noite. O governo italiano afirma que, nas últimas horas, insistiu no pedido de extradição e que, se o presidente Lula optar pela negativa, terá de explicar tal escolha "não apenas ao governo, mas a todos os italianos e, em particular, às famílias das vítimas".

A notícia de que Lula possivelmente optaria por conceder asilo a Battisti provocou críticas da imprensa e de políticos italianos. Os advogados que atuam no Brasil no interesse do governo italiano deverão recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob o argumento de que a decisão viola tratado bilateral. Mas, para o advogado Luís Roberto Barroso, que defende Battisti, a decisão de libertar seu cliente não depende do STF. Na opinião de Barroso, se o STF se pronunciar, será apenas um ato formal, reiterando a decisão do presidente Lula. A advogada Renata Saraiva, que também defende o italiano, afirmou que ele está cauteloso:

- Ele está ansioso, mas não quer dar declarações sobre o assunto. Prefere aguardar o presidente.

De manhã, quando repórteres perguntaram sobre Battisti, Lula respondeu bem-humorado:

- Qual o interesse de vocês nesse caso?. Eu tenho até as 23 horas, 59 minutos e 59 segundos de amanhã (dia 31) para decidir. Quando decidir, vocês serão informados.

PD italiano critica Lula

DEU EM LUNITÀ

Trechos da carta que Piero Fassino, Emmanuele Fiano e Andrea Orlando, presidentes, respectivamente, dos Fóruns de Relações Exteriores, Segurança e Justiça do Partido Democrático, enviaram na manhã do dia 29 de dezembro ao embaixador brasileiro em Roma, José Viegas Filho:

"Dirigimo-nos ao presidente do Brasil, Lula, que, como dirigentes do Partido Democrático e antigos militantes da frente progressista na Itália, sempre apreciamos e defendemos. Enquanto prossegue o ensurdecedor silêncio do nosso governo, dirigimo-nos a Lula, homem de esquerda, porque pensamos que nenhum princípio garantista e nenhuma salvaguarda dos direitos universais do homem podem justificar a eventual não concessão da extradição para o terrorista Cesare Battisti, condenado na Itália à prisão perpétua por quatro homicídios cometidos nos anos de chumbo.

[...] Na Itália, existe um ordenamento que prevê três níveis de justiça, que garante o direito à defesa, assegura o pleno respeito às garantias da pessoa, mesmo quando esta é julgada à revelia. O movimento terrorista, do qual Battisti fazia parte, semeou morte, dor e sofrimento, contribuindo para interromper um processo de crescimento civil e social, e teve como alvos principais as instituições, as forças democráticas, as organizações dos trabalhadores. Por isso, esperamos que o Brasil não assuma a decisão de não conceder a extradição de Battisti, escolha que colidiria com princípios fundamentais de direito e justiça.

Quem escolheu a violência e o homicídio como instrumento de luta contra as instituições democráticas e contra cidadãos indefesos deve pagar a própria dívida com a sociedade. Que as vítimas do terrorismo não sejam privadas do seu direito de ter justiça".

L'Unità, 29 dez. 2010.

Itália critica o Brasil pelo caso Battisti

ROMA (AFP) - Políticos e jornais italianos manifestaram indignação com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, antes mesmo do anúncio, nesta quinta-feira, se o país aceitará ou negará o pedido de extradição do ex-militante de extrema esquerda Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua por homicídio na Itália.

"Battisti fica livre para assassinar a justiça", afirma na primeira página o jornal conservador Il Giornale, que pertence à família do primeiro-ministro Silvio Berlusconi.

"A não extradição de Battisti é uma ofensa grave às instituições italianas", completa o jornal, que considera certo que Lula concederá refúgio político ao ex-ativista, acusado de quatro assassinatos e condenado à revelia na Itália à prisão perpétua, apesar de alegar inocência.

O caso Battisti, reclamado pela Itália por quatro assassinatos ocorridos no final dos anos 70 e que já esteve exilado no México e na França, ficou nas mãos de Lula, que deve anunciar a decisão nesta quinta-feira, penúltimo dia de seu mandato como presidente.

Uma decisão complexa, que criou um embate entre juristas e políticos, além de ter dividido Brasil e Itália.

"O não à extradição terá consequências. Estou disposto a apoiar boicotes", antecipou o ministro da Defesa italiano, Ignazio La Russa, em entrevista ao Corriere della Sera.

"O não de Lula representa uma ferida nas relações bilaterais", acrescentou o ministro, que acusou o presidente brasileiro de "falta de coragem" por tomar a decisão pouco antes de deixar o cargo.

O maior partido de esquerda da Itália, o Partido Democrático (PD), pediu em uma carta aberta a Lula, chamado de "homem de esquerda" no texto, que autorize a extradição de Battisti.

"Nenhum princípio que garanta e salvaguarde os direitos universais do homem justifica que se negue a extradição ao terrorista Cesare Battisti", afirma os dirigentes do partido na carta enviada ao embaixador do Brasil em Roma.

Para o jornal Il Messaggero "a piada do asilo político" a Battisti obriga a Itália a adotar medidas para apresentar recursos e continuar solicitando o retorno do ex-ativista, que é considerado um fugitivo há 30 anos.

"A decisão de Lula nem sequer goza de consenso em sua pátria", destaca o colunista Massimo Martinelli, que garante que o governo da Itália já tem preparados os recursos que apresentará no início de 2011.

O jornal de esquerda La Repubblica entrevistou os familiares das vítimas, que manifestaram a "amargura" com a situação e prentendem organizar um protesto.

"Teria sido suficiente pelo menos um sinal de arrependimento", comentou Adriano Sabbadin, filho de Lino, uma das quatro vítimas.

Battisti, ex-integrante do grupo radical italiano Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), foi detido no Rio de Janeiro em 2007.

Em 2009 o então ministro da Justiça Tarso Genro concedeu a condição de refugiado, mas o caso terminou no Supremo Tribunal Federal (STF) por uma apelação apresentada pelo governo italiano.

O STF deixou a decisão final para o presidente.

Em 1993, a justiça italiana julgou Battisti à revelia por quatro assassinatos atribuídos ao PAC e cometidos em 1978 e 1979, tendo como testemunha de acusação o líder deste grupo, que obteve uma redução de pena por colaborar com a justiça. Battisti, que se declara inocente, foi condenado a quatro prisões perpétuas, uma para cada homicídio.

Lula contraria centrais e fixa novo mínimo em R$ 540

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O salário mínimo de 2010 será de R$ 540, apesar da pressão das centrais sindicais por R$ 580. O presidente Lula já assinou medida provisória que entrará em vigor amanhã. Evitar que o valor seja elevado no Congresso será a primeira batalha da presidente eleita Dilma Rouseff no Legislativo. Embora os partidos da base governista tenham maioria, as discussões ocorrerão num clima de tensão pela disputa de espaço entre o PT e seu principal aliado, o PMDB. O presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, deputado eleito pelo PDT de São Paulo, já anunciou que fará uma emenda à MP, elevando o valor para R$ 580. “Lamento essa decisão do presidente Lula. Ele negociou durante todos os anos de seu governo, e, no último, esqueceu de negociar. Perdeu a sensibilidade.”

Lula fixa mínimo em R$ 540 e Dilma terá de arbitrar pressão no Congresso

Parlamentares sindicalistas, como o presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva (PDT), já anunciaram que farão pressão para elevar o valor a R$ 580; para o ministro da Fazenda, Guido Mantega, decisão é positiva sob o aspecto fiscal para 2011.

Eduardo Rodrigues, Fabio Graner, Lu Aiko Otta e Edna Simão

O salário mínimo de 2011 será de R$ 540, apesar da pressão das centrais sindicais por R$ 580. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já assinou uma Medida Provisória (MP) que entrará em vigor a partir de amanhã, segundo anunciou ontem o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Ela deve ser publicada hoje no Diário Oficial. Evitar que o valor seja elevado no Congresso Nacional será a primeira batalha da presidente eleita, Dilma Rousseff, no Legislativo.

Embora os partidos da base governista tenham maioria, as discussões ocorrerão num clima de tensão pela disputa de espaço entre o PT e seu principal aliado, o PMDB.

O presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, deputado eleito pelo PDT de São Paulo, já anunciou que fará uma emenda à MP, elevando o valor para R$ 580. Vai também propor o reajuste das aposentadorias acima do mínimo em 10%. "Lamento essa decisão do presidente Lula. Ele negociou durante todos os anos de seu governo e, no último, esqueceu de negociar. Perdeu a sensibilidade", comentou.

O presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT), Ricardo Patah, informou que as centrais têm três representantes no Congresso. Além de Paulinho, estarão lá o deputado Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, eleito pelo PT de São Paulo e ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Roberto Santiago (PV-SP), vice-presidente da UGT. "É um tripé que funciona sintonizado", disse Patah. "Eles são nossos instrumentos."

Partiu de Dilma a orientação para a equipe econômica não negociar nenhum valor acima dos R$ 540 propostos pelo governo, o que equivale a um reajuste de 5,88%. Ela quer priorizar investimentos, por isso não pode permitir o crescimento de outros grupos de despesa. A determinação em conter esse gasto é vista pelos analistas de mercado como um sinal que ela vai, de fato, ajustar as contas públicas.

"Com R$ 540 de salário mínimo nós não teremos uma pressão tão grande na Previdência. Então esse é um primeiro dado positivo fiscal para o ano de 2011", frisou Mantega.

Porém, o próprio Lula deixou a porta aberta para a sucessora conceder algum aumento extra ao piso salarial. Na segunda-feira, ele já havia adiantado que assinaria a MP fixando o valor em R$ 540. "Se houver alguma mudança, Dilma é que fará em janeiro", acrescentou.

A pressão no Congresso será forte. Os parlamentares já reservaram R$ 6 bilhões no Orçamento de 2011 para acomodar algum aumento extra para o salário mínimo, segundo observou Paulinho. "Vamos ter que brigar no Congresso e abrir uma nova negociação com o governo." Ricardo Patah observou que os parlamentares não terão como posicionar-se contra uma elevação do mínimo, se eles acabaram de reajustar os próprios vencimentos em 62%.

Mantega explicou que o mínimo de R$ 540 respeita a fórmula de reajuste utilizada nos últimos anos, negociada com as centrais, que leva em conta o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos antes, somado à inflação do ano anterior. Como a economia brasileira recuou 0,6% em 2009 por causa da crise, a recomposição do piso salarial em 2011 não dará um ganho real para os trabalhadores, apenas vai repor a inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). "É o menor aumento real em 15 anos, nem Fernando Henrique deu menos", criticou Paulinho.

O ministro argumentou que nos oito anos do governo Lula o mínimo cresceu mais do que em outros períodos da história. "Portanto, o presidente cumpre a promessa de valorizar o mínimo, estabelecendo uma nova política", disse. "Para o ano que vem (2011) será R$ 540, mas em compensação já sabemos que para o ano seguinte, em 2012, o salário mínimo se beneficiará desse aumento de mais de 7,5% do PIB este ano", afirmou o ministro.

Lulinha: aluguel de graça

DEU EM O GLOBO

Filho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o empresário Fábio Luiz, o Lulinha, vive sem pagar aluguel há três anos. Os custos do apartamento em que mora nos Jardins, em São Paulo, avaliado em R$ 1,8 milhão, são pagos pelo empresário Jonas Leite Suassuna, dono de editora que é sócia de Lulinha e tem negócios com o governo. O valor do aluguel é de R$ 12 mil mensais.

Filho de Lula tem aluguel pago por empresário

Suassuna, que tem negócios com o governo e é sócio de Lulinha, desembolsa R$12 mil mensais por apartamento

Tatiana Farah

SÃO PAULO. Embora tenha uma carreira meteórica como empresário, um dos filhos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Fábio Luís, o Lulinha, não tem colocado a mão no bolso para pagar o aluguel da própria residência nos últimos três anos. Ele vive em um luxuoso apartamento nos Jardins, avaliado em R$1,8 milhão; porém, o aluguel de R$12 mil mensais é pago pelo empresário carioca Jonas Leite Suassuna Filho, dono da Editora Gol, empresa que tem negócios com o governo e que é sócia de Lulinha.

A revelação, feita ontem pelo jornal "Folha de S. Paulo", foi considerada, "no mínimo, imoral" pela procuradora da República Janice Ascari, que lembrou que a relação do filho do presidente com a Oi já é investigada pelo Ministério Público Federal no Rio.

- Esse caso é, no mínimo, imoral. Mas acredito que possa caracterizar alguma ilegalidade. Não é normal uma pessoa ou empresa pagar R$12 mil de aluguel para outra. Assim como não é normal uma empresa do porte da Oi injetar um capital absurdo em uma empresa de fundo de quintal como a Gamecorp - afirmou a procuradora do MP ao GLOBO.

Telefônica controla 35% da empresa de Lulinha

A procuradora se referiu à investigação que tramita no Ministério Público Federal sobre uma das empresas de Fábio Luís com Kalil Bittar, filho de ex-prefeito de Campinas, o ex-petista Jacó Bittar, que tem como sócia a Oi. Com capital social registrado de R$5,21 milhões, a Gamecorp, empresa de jogos eletrônicos, recebe aportes da companhia telefônica, que agora controla 35% da Gamecorp.

- Não estou desfazendo de seus méritos pessoais, mas será que ele (Lulinha) teria tudo se não fosse o filho de Lula? Isso é, no mínimo, falta de ética. Não se pode aproveitar dos contatos dessa maneira - criticou Janice Ascari.

Líder da minoria na Câmara, o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR) criticou ontem o pagamento do aluguel de Lulinha pelo empresário Suassuna:

- É mais uma coincidência nessa relação de um sucesso empresarial com quem tem negócios com o governo. Isso fica no limite entre o interesse público e o privado.

O líder do governo na Câmara, deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), afirmou ontem que não tinha conhecimento do assunto e preferiu não fazer comentários. Segundo ele, o tema deveria ser tratado pelos nomes envolvidos.

Com o irmão Luís Cláudio, Fábio Luís tem seis empresas; duas delas foram abertas em agosto passado, como holdings de instituições não financeiras, segundo a Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) .

Seis companhias abertas com capital de R$1 mil cada

Todas essas companhias foram abertas com capital irrisório, de R$1 mil cada. Uma delas, a LLF, informa como sede o endereço de duas outras empresas dos dois irmãos: a Gamecorp e a BR4 Participações Ltda, essa com um capital de R$4,05 milhões. Na BR4, os irmãos Lula são sócios da Gol Mídia Participações Ltda, empresa de Suassuna. Na Gamecorp, há participação de integrantes da família de Suassuna.

Já a outra nova holding, a LLCS, fica em um prédio comercial da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, nos Jardins, região nobre da capital paulista. A sala é ocupada pela empresa Bilmaker 600, que, segundo a Jucesp, não tem a família Lula da Silva entre os sócios. No entanto, na portaria, a atendente afirmou ao GLOBO ontem que a empresa de Lulinha era a Bilmaker, mas que ele não estava, assim como os funcionários, que estavam em recesso por causa das festas de fim de ano. Ela nunca tinha ouvido falar em LLCS.

Fábio Luís Lula da Silva é dono também, com dois filhos de Jacó Bittar, Fernando e Kalil, da G4 Entretenimento e Tecnologia. Com capital social registrado na Jucesp de R$100 mil, a empresa tem autorização para desenvolver atividades de produção musical, recreação e lazer, publicidade e consultoria em tecnologia da informação. Fica em um prédio pomposo de escritórios também nos Jardins.

Lulinha se mudou para o apartamento em 2007

Em agosto deste ano, Luís Cláudio da Silva, sócio de Lulinha nas outras empresas e que é auxiliar técnico de futebol, montou uma empresa de marketing esportivo, a ZLT 500 Sports Gerenciamento e Marketing de Competições Esportivas, com capital de R$100 mil. O GLOBO procurou por ele em seu apartamento nos Jardins, mas ele estava viajando. Também procurou pelos irmãos Lula da Silva em todas as empresas, que estavam fechadas com o recesso de Ano Novo.

O dono do imóvel alugado para Suassuna, assim como o empresário, também não foram localizados para responder à reportagem. À "Folha", Lulinha confirmou que se mudou para o apartamento em 2007, quando se separou, e que morava com Suassuna, seu amigo. Lulinha pagaria as despesas e teria mobiliado o imóvel. Há poucos meses, nasceu seu filho. O filho do presidente afirmou que teria pedido a Suassuna para ficar sozinho no apartamento. O contrato, segundo ele, seria transferido para seu nome. Mas o dono do imóvel teria informado que não sabia da transação.

EUA dizem ter pressa por Dilma

DEU EM O GLOBO

Um dia depois de o presidente Lula dizer que acha “gostoso” terminar seu governo vendo os EUA em crise, a Casa Branca divulgou comunicado indicando que tem pressa para trabalhar com o governo Dilma. Na nota, que confirma a vinda da secretária Hillary Clinton para a posse de Dilma amanhã, Lula nem é citado.

Casa Branca tem pressa para trabalhar com Dilma

Após críticas de Lula, nota dos EUA sequer cita o presidente; vinda de Hillary Clinton para a posse é confirmada

Eliane Oliveira

BRASÍLIA. Um dia depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarar ser "gostoso" terminar o governo vendo Estados Unidos, Europa e Japão em crise, a Casa Branca divulgou ontem um comunicado indicando que os EUA têm pressa para trabalhar com a presidente eleita, Dilma Rousseff, e com seu governo. Na nota, vista como uma mensagem forte e carregada de simbolismo por altos integrantes da diplomacia brasileira, o porta-voz do Departamento de Estado, Philip Crowley, confirma a vinda da secretária Hillary Clinton para a posse de Dilma, amanhã, e chama o Brasil de "parceiro essencial" não apenas na região, mas em todo o mundo. O presidente Lula sequer é citado na nota.

"O Brasil é um parceiro essencial no continente e no mundo, e os Estados Unidos estão empenhados em aprofundar as nossas relações em uma ampla gama de assuntos bilaterais, regionais e globais com o governo e o povo do Brasil. Os Estados Unidos aguardam a oportunidade de trabalhar com a presidente eleita, Dilma Rousseff, e com seu governo para avançar esses assuntos e outras metas compartilhadas", diz o porta-voz na nota.

De acordo com uma avaliação reservada feita no Itamaraty, o gesto amistoso da Casa Branca pode quebrar o clima de constrangimento que paira entre os dois países desde a frustrada tentativa de acordo em relação à política nuclear iraniana e às recentes divulgações de telegramas confidenciais entre diplomatas (pelo Wikileaks). Uma fonte lembrou que Hillary interromperá suas férias, passando o réveillon com a família e embarcado em seguida para Brasília, onde representará o presidente Barack Obama na posse de Dilma. Ao lado de Hillary, estarão presentes desafetos dos EUA, entre eles o presidente venezuelano, Hugo Chávez.

- Nossa interpretação é de que os Estados Unidos querem uma aproximação - afirmou um graduado diplomata.

Esse diplomata, juntamente com outras fontes, avaliam que a nota dos EUA pode ter sido uma reação à série de declarações com críticas aos americanos feita pelo presidente Lula. Uma das críticas recorrentes de Lula é que os EUA não dão a importância devida à América Latina.

PMDB perde para o PT comando dos Correios

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Estatal sai das mãos de partidos aliados para ser entregue ao petista Wagner Pinheiro, citado em relatório da CPI dos Correios

João Domingos, Karla Mendes e Leandro Colon

O PT passou mais uma rasteira no PMDB na disputa pelos cargos das estatais. O sindicalista Wagner Pinheiro, filiado ao PT, será o novo presidente dos Correios. Ligado ao ex-ministro Luiz Gushiken, desde 2003 Pinheiro é presidente do Petros, o fundo de pensão da Petrobrás, e foi alvo de investigação da CPI dos Correios, em 2005.

Os Correios têm orçamento anual de cerca de R$ 12 bilhões, dos quais R$ 500 milhões para investimentos. Partidos aliados do governo, como o PMDB e o PTB, passaram a deter seu controle desde 2004. A partir daí, a estatal, uma instituição secular que gozava de grande credibilidade, acabou sendo envolvida numa série de escândalos.

Estes começaram com um vídeo em que o ex-funcionário Maurício Marinho recebia propinas, seguiram pelo escândalo do mensalão e pela CPI dos Correios, até a queda de Erenice Guerra do comando da Casa Civil. Seu filho Israel Guerra está sendo investigado pela Polícia Federal por lobby a favor de uma empresa que mantinha contrato com os Correios. Não bastasse isso, começou a haver falhas na entrega das correspondências e encomendas.

Por coincidência, o futuro presidente da estatal foi investigado pela CPI dos Correios, criada no Congresso em 2005 para apurar o esquema do mensalão no governo do PT. O relatório final da comissão, aprovado em 2006, mencionou Pinheiro e levantou suspeitas em transações financeiras do Petros, mas não pediu seu indiciamento.

De acordo com o relatório, havia indícios de irregularidades na contratação, pelo Petros, dos serviços da empresa Globalprev. O relatório da CPI questionou ainda a participação do Petros no aporte de R$ 5 milhões da Telemar na empresa Gamecorp, de Fábio Luís Lula da Silva, filho de Lula. O fundo de pensão era um dos acionistas da Telemar.

Pinheiro sempre negou qualquer falha na gestão. Afirmou que não teve nenhum envolvimento nas relações da Telemar com a Gamecorp. Para ele, o relatório da CPI foi falho.

O atual presidente dos Correios, David José de Matos, trabalhava para continuar no cargo, mas não conseguiu convencer ninguém de que deveria ser mantido. Matos é ligado ao PMDB de Brasília. Em sua gestão a estatal fez algumas maquiagens administrativas e contratou para a Diretoria de Operações o coronel Eduardo Arthur Rodrigues, que antes representava uma empresa aérea de carga - a MTA -, contratada pelos Correios.

Secretário executivo. O futuro ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, escolheu o assessor especial da Presidência Cezar Alvarez para o cargo de secretário executivo da pasta. Alvarez esteve à frente dos programas de tecnologia de comunicações do governo Lula.

Sua nomeação para o cargo de secretário executivo das Comunicações indica que, além de recuperar os Correios, Paulo Bernardo e sua equipe se empenharão no Plano Nacional de Banda Larga, que visa a levar a banda larga na internet às escolas e aos locais mais distantes do País, uma fixação de Dilma Rousseff.

PARA LEMBRAR

A CPI dos Correios foi criada em maio de 2005 para investigar denúncias de corrupção na estatal. O estopim da crise surgiu com a revelação de um vídeo, que mostrava o ex-funcionário dos Correios Maurício Marinho negociando propina com empresários interessados em participar de uma licitação. No vídeo, o funcionário dizia ter o respaldo do deputado federal Roberto Jefferson (PTB). A CPI foi o embrião do chamado mensalão, esquema de corrupção denunciado posteriormente pelo deputado. Após as denúncias, Jefferson revelou que parlamentares aliados de Lula recebiam mesada de R$ 30 mil do tesoureiro do PT, Delúbio Soares.

Governadores de oposição ausentes da posse de Dilma

DEU EM O GLOBO

Entre faltosos ilustres, Anastasia, Alckmin e Richa

Roberto Maltchik

BRASÍLIA. Enquanto governadores eleitos alinhados ao Planalto vão prestigiar a posse de Dilma Rousseff, os mais notáveis entre os opositores ao governo petista desdenharam os festejos de Brasília. Sete governadores eleitos já mandaram avisar que não participarão da festa, cinco deles oposicionistas. Até o final da tarde de ontem, 17 governadores eleitos confirmaram presença, entre eles o do Rio, Sérgio Cabral (PMDB). Apesar das ausências, todos os governos estaduais devem enviar representantes.

Em Belo Horizonte, o tucano Antonio Anastasia (MG) tomará posse à tarde, no mesmo horário previsto para as formalidades que darão início ao mandato da primeira mulher presidente do Brasil. Já na capital paulista, a posse no Palácio dos Bandeirantes começa às 10 horas, mas os cumprimentos a Geraldo Alckmin (PSDB) prosseguem até as 14 horas. Por essa razão, o tucano é uma entre as notáveis ausências.

Ainda na oposição, o paranaense Beto Richa (PSDB), o catarinense Raimundo Colombo (DEM) e a potiguar Rosalba Ciarlini (DEM) já informaram ao gabinete de transição do governo que não viajarão à capital federal. Diferentemente do tucano José de Anchieta Junior (RR), que vai rasgar o norte do país, numa viagem de quase 4.300 quilômetros, para acompanhar de perto a posse de Dilma Rousseff.

O mesmo esforço para tomar posse - e logo em seguida partir para Brasília - será feito por outros quatro governadores eleitos por partidos que estiveram na oposição ao governo Luiz Inácio Lula da Silva e apoiaram José Serra na campanha deste ano: Marcone Perillo (PSDB-GO), Simão Jatene (PSDB-PA) e Siqueira Campos (PSDB-TO), além do tucano Teotônio Villela, de Alagoas, que apesar de integrar a oposição manteve proximidade com Lula, especialmente no segundo mandato.

Os dois aliados que não incluíram Brasília em seus planos para o dia 1º de janeiro são do PSB. Wilson Martins (PI) e Ricardo Coutinho (PB) marcaram a posse para a tarde. Em compensação, Coutinho cuidou para não parecer deselegante com a nova presidente e esteve em Brasília na antevéspera da posse para dar a largada nas negociações por recursos para o estado.

Contrapondo-se à falta de Alckmin e Anastasia, petistas históricos e aliados fiéis do presidente Lula promoverão caravanas para prestigiar Dilma. Uma das mais notáveis será a "missão gaúcha" que invadirá o Palácio do Planalto no próximo sábado para celebrar a ascensão de sua quase conterrânea - Dilma é mineira, mas fez carreira política no Rio Grande do Sul.

Sob o comando do recém empossado Tarso Genro (PT), o governo do Rio Grande do Sul vai oferecer duas aeronaves - cada uma com seis lugares - para que as principais autoridades do estado saiam dos festejos em Porto Alegre e sigam imediatamente para o Centro-Oeste.

Paulinho da Viola - Meu tempo é hoje

Vou-me embora pra Pasárgada::Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

FELIZ 2011!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Reflexão do dia - Luiz Werneck Vianna

A tarefa é de perder o fôlego e exige o envolvimento de todos, da universidade, dos intelectuais, dos especialistas, dos partidos, sindicatos, associações empresariais, além das autoridades governamentais envolvidas, que, diante da gravidade da situação, não podem mais agir segundo sua própria discrição. Estão maduras as condições para a constituição de um fórum permanente da sociedade civil, agregando um conjunto de inúmeras atividades já existentes a fim de concertar iniciativas comuns.

A república nos veio de cima, sob forma oligárquica, e a conhecemos, pelas longas décadas do processo de modernização, como autocrática. A Carta de 1988 nos apresentou às instituições de uma república democrática, mas, como sabido, ela ainda não é uma ideia popular, pois, contraditório que seja, é essa a possibilidade que se abre com o complexo do Alemão, onde estão dadas as condições para que se rompa com o sertão sem lei rumo à cidade e para que se introduza animação republicana a partir de baixo

VIANNA, Luiz Werneck. O complexo do Alemão e a república. Valor Econômico, 27/12/2010.

A farra final:: Míriam Leitão

DEU EM O GLOBO

O ano fiscal foi um desastre. Quando há um forte crescimento, como em 2010, a receita aumenta e fica mais fácil atingir as metas de economia de recursos para continuar a trajetória de queda da dívida e do déficit. O governo fez manobras fiscais, investiu menos do que podia e, mesmo assim, não cumpriu a meta. Até 2009, a receita da União cresceu 132% no governo Lula.

É preciso até um certo esforço para, num ano em que as receitas aumentaram 28%, não cumprir a meta de superávit primário. Mas foi o que aconteceu em 2010, como mostrou a reportagem de Martha Beck em O GLOBO de ontem. O desastre das contas públicas no ano fica ainda mais claro com a notícia da jornalista Regina Alvarez, também na edição de ontem, de que o governo só executou 26% do total dos investimentos previstos. O orçamento permitia investir R$69,5 bilhões, mas apenas R$18,4 bilhões foram concluídos e pagos até o dia 25. O número sobe a R$40,7 bilhões com os pagamentos feitos em 2010 de despesas de anos anteriores, os restos a pagar.

Foi o ano em que o governo arrecadou demais, gastou demais, investiu menos do que podia, fez truques fiscais para inchar os cálculos de superávit primário, não chegou na meta e terminou 2010 com déficit nominal.

O desempenho fiscal do governo mostra que a conversa da equipe do Ministério da Fazenda de que em 2009 estava se fazendo "política contracíclica" era conversa fiada. Essa política consiste em aumentar os gastos em momentos de baixo crescimento para compensar a retração do consumo e dos investimentos privados, e fazer o oposto quando a situação se inverte: reduzir gastos quando o país cresce. Fizeram apenas a primeira parte da política.

É assim que se formam as bolhas. Isso o Brasil sempre soube fazer e, por isso, o país tem dois a três anos de alta do PIB seguidos de novas quedas. E é exatamente dessa síndrome que o país está precisando se livrar.

O Ministério da Fazenda deveria ser o órgão que avisa os outros ministérios a hora de conter os gastos. Pois foi ele mesmo que, com truques contábeis e declarações inábeis, convocou a turma da gastança para a farra de 2010. A Eletrobras foi retirada da conta do superávit primário e aí a meta caiu de 3,3% do PIB para 3,1%. A operação de capitalização da Petrobras transformou títulos de dívida em receita primária. E assim se fez um espetacular superávit primário em setembro. Apesar disso, o Ministério da Fazenda terá de descontar da conta o que foi investido no PAC para atingir o superávit primário. O resultado tem dependido cada vez mais de receitas extraordinárias, o que torna o desempenho mais frágil, já que é um dinheiro com o qual não se pode contar.

O ano de 2010 foi apenas o mais evidente de uma administração desastrosa das contas públicas no segundo mandato de Lula. Seja qual for a forma de se fazer a conta, o resultado é sempre o mesmo: o governo gasta muito, gasta mal e aumentou de forma espantosa as despesas correntes.
O economista Raul Velloso acha que se pode dividir o governo Lula, na área fiscal, em três fases. A primeira na "crise da transição", quando o governo, influenciado fortemente pelo então ministro da Fazenda Antonio Palocci, respondeu acima das expectativas. Naquela época, os juros eram altos e as previsões de crescimento, baixas. A tendência era de dívida/PIB subindo. O governo "dobrou a aposta", diz Raul, elevou o superávit primário e ainda enfrentou o desgaste da aprovação da reforma da Previdência.

A segunda fase, intermediária, vai até a crise de 2008, quando as bases dessa primeira fase são lentamente abandonadas. O governo foi beneficiado pelo crescimento mundial, pelo fluxo de capitais para o Brasil, pela reconquista da confiança na política econômica. Isso permitiu a redução forte dos juros, diminuindo as despesas financeiras. O PIB de anos anteriores foi recalculado e isso ajudou a reduzir a dívida/PIB. O PIB ficou maior, e a dívida, relativamente menor. A reforma da Previdência nunca foi regulamentada. Além disso, o governo enviou ao Congresso um projeto de lei que estabelecia um teto para o gasto de pessoal da União: ele só poderia crescer o equivalente ao IPCA mais 1,5%. Subiria acima da inflação, mas de forma contida. Segundo Raul, esse projeto continua vagando no Congresso, jamais aprovado, jamais respeitado.

A partir da crise de 2008, o governo entrou na terceira fase: a da "licença para gastar".

- Não só as administrações públicas, mas também o BNDES, passaram a gastar bem mais que antes. E pior, houve um forte crescimento do gasto corrente rígido que, uma vez posto, é difícil tirar de volta. Os superávits primários caíram e introduziu-se a contabilidade criativa, que retirou credibilidade dos indicadores fiscais - explicou Raul.

Dessa história, que começa virtuosa e termina errada, o pior momento aconteceu em 2010, quando tudo jogava a favor de um ajuste e houve o aumento ainda maior das despesas. De acordo com o economista, mesmo sem contar 2010, o gasto corrente aumentou 140,6% entre o fim de 2002 e o fim de 2009. Os gastos de pessoal cresceram 113,8%. A Receita não financeira líquida total da União cresceu 131,7% entre 2002 e 2009. Apesar disso, o governo teve déficit nominal todos os anos.

O projeto de Antonio Palocci era buscar o déficit zero num plano fiscal plurianual. A então ministra Dilma Rousseff considerou "rudimentar" essa que foi a melhor ideia que surgiu na área fiscal no governo Lula. Agora, só resta andar em busca do tempo perdido.

''Democratização'' ou mero desvio? :: Eugênio Bucci

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A manchete da Folha de S.Paulo de terça-feira passada jogou luz sobre uma das mais soturnas caixas-pretas da administração federal: o uso de verbas públicas em campanhas publicitárias. Planalto pulveriza sua propaganda em 8.094 veículos, informou a chamada no alto da primeira página. A reportagem, assinada por Fernando Rodrigues, conta que de 2003 até hoje houve um aumento de 1.522% no número de órgãos de imprensa que recebem recursos federais como receita publicitária. Eram 499 em 2003 e somam hoje 8.094. Mas - atenção - não houve um crescimento significativo do gasto total. Os dois governos Lula investiram, em média, R$ 2,3 bilhões por ano em publicidade (aí incluídos os custos de produção das campanhas, mais as verbas de patrocínios destinadas a projetos esportivos e culturais), valor que não se distancia substancialmente do que foi empregado na gestão de Fernando Henrique Cardoso. A diferença entre eles foi o que a reportagem da Folha chama de pulverização.

No linguajar de apoiadores do governo atual, a palavra mais adequada não seria pulverização, mas "democratização". Ontem, em discurso no complexo industrial e portuário de Suape, em Pernambuco, o próprio presidente Lula foi ainda mais retumbante. Vangloriou-se de ter resolvido "socializar" o dinheiro de publicidade. A tese do discurso do presidente e de seus apoiadores é primária: dar recursos públicos a muitos soa mais "democrático" do que dá-los a poucos. Verdade? Não necessariamente. Demagogia? Sem dúvida. Primeiro, porque o grosso do dinheiro foi para os veículos dominantes - como sempre, o principal foi para os de sempre. Depois, porque o atual governo usou alguns trocados não para tornar a sua comunicação mais eficiente, mas para fazer média com os jornais e as emissoras de menor porte.

Antes de entender - e desmontar - as justificativas do discurso oficial de "democratização", lembremos que, sobre esse assunto, os governos se sucedem sem detalhar valores. Publicidade oficial, como já foi dito, é caixa-preta. O contribuinte não sabe quanto cada veículo recebeu dos cofres públicos e sabe menos ainda sobre os resultados dessas campanhas, pulverizadas ou não Os bilhões de reais despejados em propaganda rendem popularidade para quem governa, mas até hoje não se tem uma única prova de que realizem algo de bom para o interesse público - que, por definição, deveria ser apartidário. Se esses dados fossem divulgados, ficaria explícito que a verba de publicidade oficial vem sendo administrada, no Brasil, mais para melhorar a imagem de políticos (e massagear o ego e o caixa dos empresários de comunicação) e menos, muito menos, para atender ao interesse público.

Nesse quadro, falar em "democratização" é quase um deboche. O gasto do Planalto em propaganda é uma enormidade: R$ 2,3 bilhões correspondem a quase um terço do que a Rede Globo faturou com publicidade ao longo de 2009. Na escala de grandeza do nosso mercado publicitário, é uma fortuna. O Estado brasileiro é um Estado anunciante: somadas, as campanhas dos governos federal, estaduais e municipais alcançam cifras escandalosas e vêm estatizando uma fatia expressiva do mercado.

Além de deboche, a palavra "democratização" é um biombo novo para encobrir um vício velho: o uso de dinheiro público para amaciar a imprensa privada. Essa prática já deveria ter sido varrida pela cultura democrática, mas está aí, intacta, e cresce a cada ano. Não deveria ser assim. Quando compra espaço publicitário, o agente público deveria orientar-se pelo dever de buscar o melhor serviço pelo menor preço. Deveria buscar o veículo que lhe dá acesso à audiência pretendida nas melhores condições. Ponto. Quanto a isso, a compra de espaço publicitário pelo Estado não é diferente da compra de aparelhos de ar-condicionado, de computadores ou de vacinas. Há agentes públicos que se vangloriam de distribuir a verba publicitária de acordo com a participação dos veículos no mercado, dando a esse critério um peso aparentemente absoluto. É claro que se devem levar em conta as audiências gerais de cada veículo quando se concebe uma campanha governamental, mas esse não é nem deve ser o fator decisivo. Se fosse, o Estado deveria comprar vacinas não pela qualidade, mas pela participação de cada laboratório no mercado. Compraria um pouquinho de cada laboratório. O mesmo deveria ser feito com a compra de aparelhos de ar-condicionado e de computadores. Enfim, se esse for o critério determinante, teremos de dizer adeus ao princípio - democrático - das licitações.

O argumento mais grave e mais falacioso, no entanto, é outro. Há burocratas que posam de justiceiros e garantem que "pulverizando" as verbas fortalecem os veículos "alternativos" contra a "mídia conservadora". Parece incrível, mas é o que dizem. Ora, se o governo quer estimular a diversidade da imprensa, que crie linhas de fomento, com financiamentos que possam ser - aí, sim, democraticamente - disputados pelos interessados, mediante regras públicas e transparentes. Usar dinheiro de publicidade para fortalecer os "alternativos" não consta das diretrizes legais para a publicidade oficial. Esse argumento, portanto, não tem sustentação legal. Se o gestor público que favorece jornaizinhos de parentes age mal, aquele que dá uma força aos sites dos correligionários age mal do mesmo modo. Nos dois casos, o servidor extrapola o seu poder discricionário. E, mais do que isso, deixa claro que, para ele, não importa se a mensagem oficial será recebida e compreendida pelo público esperado; seu negócio é fazer média com os veículos.

Concentrada nos grandes ou "democratizada" nos pequenos, a publicidade oficial tem sido a moeda dos governos para relações promíscuas com a imprensa. Até quando?

Em todo caso, feliz 2011.


Jornalista,é professor da ECA-USP e da ESPM

Novo governo é PT, mas Dilma não é Lula:: Maria Inês Nassif

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A vida do partido mudou no governo e mudará mais ainda

A vida do PT mudou muito, desde que assumiu pela primeira vez a Presidência da República, em 1º de janeiro de 2003. Num primeiro momento, sofreu perdas importantes de quadros internos, absorvidos pelo governo que começava. A ausência de uma direção forte, como a que existia sob José Dirceu, presidente do partido entre 1994 até a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, e de quadros históricos que foram para o ministério petista, fizeram ascender nas instâncias partidárias quadros que se firmaram por posições consolidadas na máquina burocrática do partido, centralizada por José Dirceu no momento anterior. Eram quadros sem grande liderança interna, apoiados por um Campo Majoritário que também estava presente com muita força no governo.

O PT foi atingido em cheio pelo Escândalo do Mensalão, em 2005. Ficou credor de Lula, que com sua liderança pessoal ganhou a disputa pela reeleição, em 2006, enquanto o partido, abalado pelos escândalos, chegou a reduzir a sua bancada na Câmara.

Os escândalos levaram junto lideranças que tinham uma grande ascendência sobre a máquina partidária. José Dirceu, o presidente do partido que articulou o Campo Majoritário, estava fora. O grupo paulista foi muito atingido. A renovação tornou-se inevitável. Como o PT tinha prática de articulação orgânica, e não tinha mais lideranças absolutas, acabou fazendo uma transição menos traumática do que era previsto. A perda de setores mais à esquerda facilitou a articulação de novos termos de convivência entre as facções que ficaram. Ao mesmo tempo, o avanço do partido fora de São Paulo e a redução da força petista no reduto paulista ajudaram a ascensão de outras lideranças, em especial do Nordeste.

Para resgatar seu eleitorado, o PT precisou da liderança pessoal do presidente Lula. Volta ao Congresso, depois das eleições deste ano, como primeira bancada na Câmara e segunda no Senado. A relação com o novo governo, todavia, será outra.

Há quem aposte na total dependência de Dilma Rousseff ao partido, já que seu vínculo com o PT é muito menos forte que o de Lula - e a presidente eleita depende do apoio do seu partido no Congresso. Há quem assegure o contrário: que o PT, em disputa dentro do governo com o PMDB, será subserviente à presidente eleita. A soma de um presidencialismo forte como o brasileiro e um partido articulado como o PT, todavia, pode resultar numa relação talvez mais equilibrada do que a mantida entre o PT e Lula. Partido e presidente se misturavam, tanto internamente como para o eleitor, embora Lula, depois de 2005, tenha se tornado muito maior do que o PT. Dilma e o PT não se misturam, mas dependem um do outro. Isso não é uma desvantagem, mas apenas um dado novo, que indica que a relação da presidente eleita com o seu partido será diferente. Se a distância entre ambos se resolver com a formulação de políticas públicas e no debate político, essa relação pode ganhar qualidade. Se ficar na disputa por espaço político no governo, pode perder qualidade. É o que se saberá a partir de 1º de janeiro.

Se Dilma Rousseff fizer do debate político o elemento de ligação com o seu partido, poderá manter nos mesmos termos a relação com outros partidos aliados de perfil clientelista, como o PMDB. A presidente eleita tem a seu favor também uma base de apoio parlamentar reforçada, que Lula não teve a sorte de ter em nenhum dos seus dois governos. Isso fortalece Dilma e enfraquece os partidos da coalizão, já que as dissensões podem ter efeito limitado de pressão dos partidos sobre o governo. Nos dois mandatos de Lula, se uma parcela muito grande do PMDB roesse a corda, não era possível aprovar nenhuma medida importante. Hoje, a base é mais diversificada. A dissidência pode prejudicar mais ao partido desunido do que ao governo.

Existe ainda um espaço para o governo avançar na base oposicionista. Lideranças do DEM e do PSDB que têm um eleitorado mais tradicional se ressentiram muito nas últimas eleições e estão com grande dificuldade de sobrevivência. Essa é uma perspectiva que fortalece a posição do novo governo, mesmo que a adesão desse setor oposicionista não se concretize.

No dia 1º de janeiro, um carro aberto desfilará com a primeira mulher eleita presidente do Brasil. Há oito anos, o carro que se movia lentamente pela Esplanada dos Ministérios levava o primeiro operário eleito para o cargo mais alto da República. A história andou muito a partir de 1989, primeiras eleições diretas para a Presidência da República, num ritmo mais acelerado do que o carro que desfila com presidentes empossados.

Há quase 47 anos o Brasil iniciava seu último período ditatorial. Faz 25 anos que acabou o último governo militar. 21 anos nos separam da primeira eleição direta para presidente; e há 20 anos se promulgava a nova Constituição brasileira.

Uma geração que já é adulta nasceu na democracia e sequer tem lembranças do período negro da ditadura. Essa geração não tem a dimensão do que é, para a história do país, o fato de uma mulher que foi presa política assumir a presidência da República. Isso é história em seu estado puro.


Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras

Política e globalização, hoje e amanhã :: Pedro da Motta Veiga

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Termina a primeira década do século 21. Sob a ótica das relações internacionais, o contraste entre esta década e os anos 90 do século 21 não poderia ser maior. Os anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim e ao colapso do socialismo alimentaram a hipótese de um mundo que convergiria em torno de políticas domésticas e regimes internacionais de corte liberal. O triunfo do capitalismo e da democracia prenunciava algo que Fukuyama identificou como o "fim da história". Ledo engano.

A primeira década do novo século começou sob o signo do atentado de 11 de setembro de 2001 e termina sob os impactos duradouros da crise econômica desencadeada na segunda metade de 2008. Entre os dois eventos, o que caracterizou a década foi a emergência de um cenário em quase tudo diferente do que se previa nos anos 90. A década que termina assistiu à erosão, nos países centrais do capitalismo, do consenso liberal que respaldou a ordem econômica global vigente a partir da 2ª Guerra Mundial. A emergência da China como ator de primeira grandeza na economia internacional acelerou e aprofundou este processo, que desembocou em questionamento do sistema multilateral de governança e da própria globalização - cada vez mais percebida, na opinião pública dos países desenvolvidos, como fonte de insegurança econômica e política. Descrédito do liberalismo, ressurgimento do nacionalismo econômico e emergência de novos atores nacionais alavancados por modelos diversos de capitalismo de Estado são os traços dominantes do ambiente político em que hoje evolui o sistema internacional.

Nada disso, no entanto, impediu que, ao longo da década, a globalização se aprofundasse, em sua dimensão microeconômica. Desenvolveram-se novos canais e modalidades de interdependência, muitos deles vinculados à emergência chinesa: as exportações de commodities latino-americanas para a China, as crescentemente diversificadas relações econômicas entre a China e a África, sem falar na relação macroeconômica que vincula EUA e China.

A desenvoltura demonstrada pelos vetores da globalização econômica e financeira perante a um ambiente político que lhes é crítico, se não refratário, nos países líderes do capitalismo, não deixa de surpreender. Não é razoável esperar que esta configuração tenha a vida longa, especialmente no cenário que prevalecerá nos primeiros anos da nova década. Nesse cenário, os países desenvolvidos terão crescimento anêmico, o dinamismo econômico estará concentrado nos emergentes e a crise de legitimidade do sistema multilateral de governança não será superada. A hipótese de que, desse cenário, emergirá naturalmente uma ordem global multipolar é frágil: como observam Bremmer e Roubini em recente artigo, os principais concorrentes dos EUA estarão muito ocupados com problemas domésticos e em suas fronteiras para assumir responsabilidades internacionais significativas.

Uma ordem global "não polar" seria a resultante dessas evoluções, reduzindo incentivos para a difícil busca de soluções cooperativas em escala internacional (vide o G-20) e ampliando pressões para a adoção de políticas nacionais de proteção do emprego doméstico e "exportação" dos custos dos ajustes a fazer. A trajetória de acumulação de tensões domésticas e internacionais relacionadas à crescente interdependência e competição entre as economias - característica da década que termina - seguirá seu curso e se intensificará.

O ambiente político acabará por cobrar um preço à globalização. Como isso se dará e quais os seus efeitos sobre uma ordem global em transição são questões em aberto, mas a simples perspectiva desta "cobrança" não dá margem para otimismo. Não há, porém, nenhum desfecho inelutável para essa evolução, nem ela nos leva necessariamente aos piores cenários de crise e conflito internacional. Os principais players da economia e da política internacional - especialmente China e emergentes - ainda precisam muito da estabilidade e do crescimento global para encaminhar sérios problemas domésticos e afirmar-se regionalmente.

Diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento