segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Gaudêncio Torquato :: Reforma no freezer

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Uma tática que funciona bem quando se quer armar uma pista falsa é parecer estar apoiando uma ideia que, na verdade, contraria o que a pessoa sente. O método é frequentemente usado por políticos e governantes na ressaca das crises. Exemplo?
A reforma política. Que aparece como esparadrapo para fechar a ferida aberta por escândalos, denúncias, gravações e máfias que agem nos porões da administração pública. O presidente Luiz Inácio, instado a falar sobre o mensalão do DEM, recomendou profunda mudança nos padrões políticos, lembrando que já enviou ao Congresso duas propostas.
A pista parece falsa. Fosse verdadeira, o chefe do Executivo já teria mobilizado seus exércitos para aprovar a matéria, como acaba de fazer com relação aos projetos do pré-sal. É evidente que a maioria dos políticos também não tem interesse em mudar as regras do jogo em pleno campeonato. Algo mais substantivo até poderia ser votado, tendo como parâmetro a aplicação de novas disposições em futuro distante. Batatas quentes como sistema de voto, fidelidade partidária, cláusula de barreira, financiamento de campanha são jogadas de uma mão para outra até esfriarem. Acabam sendo colocadas no freezer. E, assim, chegamos ao fim de 2009 no meio de mais um furacão mensaleiro, sob o lema "vamos deixar como está para ver como é que fica".

Por que a tão propalada reforma política não anda? A resposta começa com a lembrança de Maquiavel: "Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas." Se imprimir nova disposição ao sistema político é tarefa complicada em qualquer democracia, imagine-se o grau de dificuldade que gera no meio de uma cultura inoculada pelo vírus patrimonialista, que costuma corroer as entranhas do Estado. Nossos representantes, como donatários do mandato, querem ter o direito de exercer e usufruir funções e benesses inerentes a ele. Por conseguinte, resistem a votar disposições que possam vir a limitar seu poder. Querem ter liberdade de pular de partidos a seu bel-prazer.

Fazer coligações com siglas aliadas e adversárias. Partidos pequenos, mesmo sem expressão eleitoral, devem continuar a existir? Ajustar a proporção da representação, tornando mais justa a relação entre número de votos conquistados pelos partidos e cadeiras obtidas, nem pensar. Como se sabe, por força de disposição constitucional, estabeleceu-se um mínimo de 8 e o máximo de 70 parlamentares por Estado, gerando desproporção média em torno de 10% na representação territorial.

Aos exemplos acima se somam outros que geram conflitos de visões, como o sistema de voto em lista fechada. Se alguns defendem a ideia de que esse mecanismo contribuiria para o fortalecimento partidário, outros argumentam com a hipótese de que o sistema reforçaria o mandonismo das cúpulas, que comporiam chapas com nomes de sua preferência numa ordem de importância. Formar um sistema misto, sendo uma parte eleita pelo atual modelo aberto e outra por meio de lista fechada, é algo polêmico. Em suma, o território pessoal prevalece sobre o espaço dos anseios coletivos e o mapa de qualificação dos partidos. De tão complexa, a dialética da mudança emperra. Chega-se, assim, ao diagnóstico: a reforma não sai porque não há vontade política suficiente; já a escassez de vontade decorre do particularismo que impregna a vida pública. Noutros termos, o declínio do conjunto partidário, a fragmentação de lideranças, o arrefecimento do engajamento das massas, a deterioração dos padrões e temáticas pontuais - patrocinadas pelo Executivo ou pinçadas de uma agenda de circunstâncias - impedem os projetos de caráter mais estrutural.

A análise pode ser feita sob outro prisma. A reforma política não evolui porque não se extrapola o ambiente onde é artificialmente trabalhada, no caso, o círculo dos três Poderes.

A matéria política circula por ali, saindo de uma Casa parlamentar para outra, às vezes sob o patrocínio do Palácio do Planalto e, eventualmente, ganhando um adicional - interpretações constitucionais - pelo Poder Judiciário. Em face das dúvidas e diante do acirramento de posições entre os próprios aliados, chega-se à acomodação para não votar a reforma política, mesmo com o reconhecimento de que ela é necessária. Não passa de falácia, portanto, a lembrança do presidente de que os projetos de minirreformas do Executivo não andaram. Do alto de sua imensa popularidade, liquidaria essa fatura se assim o quisesse.

Neste ponto, emerge a conclusão: enquanto for um evento centrífugo, de dentro para fora, a reforma não caminhará. Fator decisivo nessa teia é a pressão da sociedade. Para avançar a reforma carece de uma força centrípeta, articulada por entidades e movimentos. Acontece que a matéria política decepciona a sociedade. Este é mais um nó que deve ser desamarrado: o trem da mudança atrela-se à locomotiva social, mas para tanto os políticos devem dar bons exemplos e melhorar a representação. O que se sente é o contrário: comunidade desmotivada ante os escândalos que batem no conceito de mandatários de todas as esferas. Se os atores envolvidos na trama forem capazes de chegar a um consenso, a reforma tem condição de ser uma utopia. Da parte da sociedade, a mobilização passa pela integração de entidades de reconhecido prestígio com a organização de uma agenda focada nesse tema específico. Se o universo associativo se expande, na esteira de uma miríade de entidades, os campos de interesse variam, dificultando a convergência de abordagens e a defesa de projetos de alto interesse social.

Mas, como diria o sábio chinês, uma caminhada de mil quilômetros começa com um primeiro passo. E como até nos pântanos nascem lindas flores, a esperança é que, no meio do lodo que escorre pelos desvãos institucionais, a reforma política desça do espaço etéreo das intenções para baixar em terra firme, limpando o nosso amanhã de vendilhões da política.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação

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