segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Lulismo: Para além do PT - Rudá Ricci

Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa.

1. O Lulismo em sua versão acabada

Durante a primeira gestão do governo Lula procurei construir os contornos do que denominei de lulismo (cf. Lulismo: três discursos e um estilo), como sendo um método de gerenciamento político que unia, paradoxalmente, o pragmatismo sindical metalúrgico, o burocratismo partidário e o liberalismo econômico. No final de seu sétimo ano de governo, o lulismo já se configura mais nitidamente.

O pragmatismo sindical e a-ideológico parece evidente e casou completamente com o modelo de coalizão presidencialista, que envolve uma gama imensa de partidos. Algo que, na prática, formata uma espécie de gestão de tipo parlamentarista. Também se aproxima da federação de partidos, proposta natimorta da reforma política inscrita na PL 2.679/2003, que procurava superar as coligações eleitorais naquilo que tinha de efêmero, exigindo que se mantivessem no período pós-eleitoral. O pragmatismo foi além e desnorteou grande parte das organizações populares do país, porque não possui uma agenda de esquerda. O foco está na consolidação de direitos já garantidos em lei o que, na prática, amplia o espectro social daqueles brasileiros que podem ser considerados efetivamente cidadãos. Uma versão governamental do “business union”, o sindicalismo de negócios dos EUA que no Brasil recebeu a alcunha de sindicalismo de resultados. Lembremos que esta concepção foi introduzida no Brasil por Luiz Antonio Medeiros, em 1987, quando concedeu entrevista ao jornal O Estado de São Paulo. Nesta entrevista afirmou: “Desde que saia um acordo bom para os trabalhadores, não interessa se ele foi conseguido por abraços com Mário Amato ou por uma greve de 40 dias.” Medeiros é, hoje, Secretário de Relações do Trabalho, no Ministério do Trabalho. Luiz Werneck Vianna, se apropriando das teorias gramscianas, sugere que este movimento se aproxima do conceito de “revolução passiva” ou “modernização reacionária”.

Retomarei este tema mais adiante.

O legado da burocracia partidária sofreu algumas mutações. Havia, no início do lulismo, uma nítida influência do “habitus” das organizações clandestinas do período do regime militar, plasmado na liderança de José Dirceu, então dirigente da Casa Civil. As negociações para montagem da coalizão presidencialista assumiam um viés castrista, de controle progressivo sobre a base aliada. Por aí, toda lógica participacionista do petismo e da Constituição de 88 foi abandonada porque não dialogava com o centralismo da lógica burocrática. Mas com o ostracismo de José Dirceu, o burocratismo se transmutou. O participacionismo foi expurgado de vez da prática do lulismo. Mas o que era antes uma espécie de neo-leninismo, uma simbiose entre Estado, Governo e Partido(s) – que o próprio Lênin admitiu e condenou em seu último texto, intitulado “Vale quanto Pesa” – foi redesenhado para uma lógica de Governo, aproximando-se, mais uma vez, da lógica parlamentarista. Os partidos aliados, na prática, perderam sua energia crítica e inovadora. São governistas. Basta uma rápida análise sobre a propaganda partidária da base aliada: é a agenda do governo. O lulismo tentou construir uma agenda de Estado. Mas PAC, Bolsa Família (e outros programas de transferência de renda) e aumento de salário mínimo não chegam a constituir uma agenda de longo prazo, tratando-se mais de uma plataforma inicial para o desenvolvimento, um start. O lulismo não conseguiu alinhar-se ao conceito de sustentabilidade. Nâo conseguiu elaborar uma agenda educacional, que ficou restrita ao aumento do acesso e controle da qualidade do ensino universitário. Não relacionou projeto educacional à formulação do papel de liderança no continente. Nem mesmo inovou na formulação de currículos focados na consolidação de cultura cidadã, mesmo tendo á sua disposição várias experiências de Estado, como a Política Nacional de Educação Fiscal (PNEF). Não avançou porque para o lulismo o participacionismo não interessa. Por este mesmo motivo abandonou as audiências públicas para definir o Plano Plurianual (PPA) ou controlar o orçamento. Aumentou o número de conferências de direitos, mas fragmentou as pautas em temas específicos e raramente incluiu as deliberações deste ritual assembleístico em orçamentos e programas. As deliberações das conferências nunca foram prioridade da agenda lulista.

A mudança mais significativa, contudo, foi o liberalismo econômico – traduzido na Carta ao Povo Brasileiro, de 2002 – para o desenvolvimentismo economicista (embora assessores de Lula procurem emplacar um meio aforismo: desenvolvimentismo social). O foco é a ampliação do mercado interno e da produção nacional. Uma plataforma já empregada pelo fordismo norte-americano, que o lulismo pega emprestado, reproduz e dá sua contribuição a partir dos itens destacados anteriormente. O Brasil cresce para a América Latina a partir do mercado interno.

Recentemente, aumentou sua atuação e demonstração de força na região, assumindo parte do papel de garantidor de certa Ordem Democrática que era prerrogativa dos EUA. O Mercosul, neste sentido, perdeu predominância na política externa brasileira, mesmo com a campanha pelo ingresso da Venezuela no nosso mercado comum. O PAC é o carro-chefe do lulismo nesta dimensão econômica. Deverá ser prorrogado em diversas novas versões, pela lógica lulista, assim como já ocorre com o Bolsa Família (que gerou o Bolsa Cultura e deverá se desdobrar em outras políticas de fomento na construção do fordismo tupiniquim).

E o estilo continua o do flerte com a dominação carismática. A melhor tradução do socialismo moreno, sonho de Leonel Brizola.

É por aí que alguns fóruns e autores (com Luiz Werneck Vianna á frente) procuram comparar o varguismo ao lulismo. Seriam, lulismo e varguismo, início e fim de um mesmo projeto: o de administrar o atraso e promover uma agenda reformista que provoque a superação de uma sociedade arcaica (ou híbrida) na direção da sua modernização. Modernização tardia (porque originada de um capitalismo peculiar, híbrido) liderada por um partido de origem operário-popular (Gramsci chegou a destacar que o centro nunca daria lugar a um partido “histórico”, mas poderia servir a um partido deste tipo, mais uma coincidência com a prática lulista).

2. O lulismo seria o vetor da revolução passiva tupiniquim?

Gramsci, ao criar o conceito de revolução passiva pensava, obviamente, na sua Itália, um país que, como afirmava, possuía uma sociedade “gelatinosa”, onde as clivagens sociais não se expressavam nitidamente, onde tradição e laços feudais se misturavam ao mundo fabril e racional. Luiz Werneck Vianna, em Revolução passiva e americanismo em Gramsci (Cf. http://www.lainsignia.org/2007/marzo/cul_006.htm), ao explicar a origem do conceito em Gramsci, recorda que a peculiar modernização tardia da Itália criaria uma

“forma do Estado derivada de uma solução de compromisso entre as elites industriais e agrárias, cada uma ocupando uma base territorial própria — as industriais, o norte; as agrárias, o sul. O domínio burguês não estaria dotado de capacidade de universalização, fusão de particularismos, faltando-lhe um “caráter unitário e uma função unitária” (...)

Tal particularidade, deixaria a periferia européia do capitalismo sob uma dupla lógica: “russa”, pela perspectiva do “elo mais fraco” e da “vantagem do atraso”; e especificamente européia, uma vez que os setores subalternos, principalmente no campo, por meio da mediação de estratos intermediários, mantinham vínculos político-sociais com as classes dominantes, estando sob a sua influência, interditando ao proletariado um acesso direto ao campesinato. (...) O caminho de afirmação do capitalismo europeu ter-se-ia dado em um ambiente “demográfico não-racional”, expresso na existência de “classes numerosas sem uma função essencial no mundo da produção, isto é, classes totalmente parasitárias” (a nobiliarquia agrária e os estratos superiores da burocracia, nas elites dominantes, e o campesinato e a população urbana marginal) seriam incluídas nos sistemas da ordem por vias extra-econômicas, supra-estruturais, quando a sua posição relativa quanto ao Estado seria determinante da forma de apropriação dos recursos sociais e do tipo de controle social a que estariam sujeitas: a hegemonia das classes dominantes seria obra fundamentalmente da política.

Vianna sugere que enquanto a sociedade americana desenvolvia-se a partir de uma estrutura racional, nitidamente capitalista, onde a fábrica era o locus do desenvolvimento de toda nação, nos países europeus com capitalismo tardio (Itália, Rússia e Alemanha, em especial) não havia tal associação entre estrutura social, dominação fabril-capitalista e Estado-política. O conservadorismo europeu se explicaria, em relação aos EUA, a partir daí, onde a cultura e a política “desde cima” dominariam o mundo social e econômico, bloqueando a livre expressão das classes produtivas “no sistema das agências privadas de hegemonia”. Daí a modernização capitalista ter que ocorrer “pelo alto”, gerando o que Gramsci denominaria de Estatolatria (em Claus Offe, adota-se o conceito de estatalização), um Estado sobreposto à sociedade civil:

“[...] a ‘estatolatria’ não deve ser entregue às suas próprias forças, nem deve, sobretudo, se converter em fanatismo teórico e se conceber como ‘perpétua’: ela deve ser objeto de crítica, precisamente para que se desenvolvam e se produzam novas formas de vida estatal, nas quais a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja ‘estatal’, embora não derivada do ‘governo dos funcionários’ (isto é, conseguir uma geração espontânea da vida estatal)”.

Num vôo livre, o lulismo cumpriria tal papel? A resposta afirmativa explicaria a falta de identidade com o participacionismo porque assume declaradamente o papel de demiurgo da modernização. Também explicaria sua base discursiva que exerce este papel de “ponte” entre culturas e hábitos sociais, acabando com a ideologização da disputa partidária do período anterior, quando o lulismo nem mesmo se esboçava, encoberto pelo petismo, um amálgama entre teologia da libertação, marxismo revisado e teorias libertárias (como de Guatarri e outros autores citados pelos intelectuais filiados ao PT que, na origem do partido, mantinham grande destaque nas formulações programáticas).

Neste sentido, lulismo e serrismo se aproximam em muito. Ambos são desenvolvimentistas e colocam o Estado acima da sociedade civil. O serrismo é mais racional-legal, para utilizar um conceito caro ao weberianismo. O lulismo é menos puro, embora o carisma seja mais uma estampa que uma estrutura programática ou política. O lulismo, por aí, é operacionalmente mais estruturado para fazer a transição do Brasil Profundo para o aggiornamento do nosso capitalismo tardio. O serrismo é o discurso do Brasil mais urbanizado e incluído no mundo globalizado. Ambos caminham na mesma direção. A diferença é a capacidade de construir um discurso hegemônico, que convença a todos ou à grande maioria do mosaico social e cultural brasileiro, este hibridismo cultural que adotou o mundo moderno sem superar efetivamente valores morais e estruturas tradicionais, tal como sugeriu Néstor Canclini. O problema é que nenhum dos possíveis sucessores de Lula têm, hoje, predicados que mantenham a lógica e a consistência discursiva do lulismo. O que pode sugerir o lulismo como obra inacabada.

Assim como ocorreu com o getulismo. O velho problema da criatura se confundir com o criador.

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