segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Surto populista

Marcelo de Paiva Abreu
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Uma racionalização plausível da estratégia do presidente Lula até meados do segundo turno poderia dar destaque à conciliação de uma política macroeconômica prudente - isto é, ao arrepio das parvoíces programáticas do PT na área econômica - com uma política externa "progressista", com laivos terceiro-mundistas.

É claro que o presidente, mestre inconteste nas melhores técnicas do dividir para reinar, tratou de criar mecanismos que tornassem esse projeto estratégico submisso ao seu controle. Na área econômica houve cuidadosa administração política de controlado apedrejamento por fogo amigo da "ortodoxia", entrincheirada inicialmente no Ministério da Fazenda e que tem hoje o Banco Central como seu último reduto.

Em relação à política externa, consagrou-se um formato de responsabilidade coletiva que solapou a autoridade do Ministério das Relações Exteriores. Enquanto o Itamaraty, fazendo uso da propensão presidencial ao protagonismo, trabalhou para consolidar o caminho do Brasil rumo a um recauchutado Conselho de Segurança das Nações Unidas, a política regional sofreu forte influência direta do Palácio do Planalto. A relação especial com Cuba, sustentada por afinidades ideológicas do PT com o regime, transformou-se em relação especial com a Venezuela de Chávez e em aproximação com os dirigentes populistas de esquerda vitoriosos em diversas eleições sul-americanas após 2002.

Com base no sucesso econômico propiciado pela política econômica prudente, que viabilizou a volta ao crescimento com taxas respeitáveis e, depois, pela capacidade de resistir à crise mundial, fortaleceram-se a posição internacional do Brasil e o prestígio presidencial.

Com o benefício da visão retrospectiva, essa posição de relativo equilíbrio não poderia ser sustentada. Os fatores de perturbação essenciais têm que ver com a aproximação das eleições presidenciais de 2010. Sucessivos escândalos inviabilizaram as candidaturas presidenciais de José Dirceu e de Antonio Palocci. O PT - o velho e verdadeiro PT - foi implodido. Longe de ser o partido que, por seu exemplo, poderia continuar a estimular a renovação das tradições partidárias na política brasileira, o partido revelou ser similar, se não pior, que os outros. E um anjo pecador sempre parece mais pecador do que pecadores de sempre.

Num quadro em que se impôs como crucial o objetivo de continuação - e, se possível, perpetuação - no poder, Lula, o construtor institucional do PT, desapareceu de cena, dando lugar ao Lula populista. Na falta de candidatos viáveis nas fileiras partidárias, o dedazo presidencial apontou para Dilma Rousseff, nome com tradição no PDT, mas sem tradição no PT, sem experiência eleitoral, com estilo abrasivo e reputação de operosidade e pertinácia.

A essa altura não há mais margem para dúvidas: a candidatura é politicamente pesada. Sua decolagem tem requerido ingredientes populistas que passam pela redefinição de diversas políticas que marcaram a fase mais prudente dos mandatos de Lula. No terreno macroeconômico, o que se vê é o crescimento explosivo dos gastos do governo, com a progressiva erosão do compromisso com metas de gastos que foram essenciais para recuperar a credibilidade da política macroeconômica. Na discussão do pré-sal, ministros, presidente e candidata presidencial têm explicitado posições que revelam falta de compromisso com as reformas que viabilizaram o relançamento do Brasil como país capaz de crescer de forma sustentada. Pior: há a clara intenção de maximizar o custo de reversão futura dos retrocessos de hoje.

Em meio ao rolo compressor da propaganda oficial prospera a confusão entre nacionalismo, estatismo e patriotismo. Ressurgem dois pilares semipétreos da política econômica pré anos 90: proteção quase absoluta do mercado brasileiro e hipertrofia da participação do Estado na economia. O papel reservado à Petrobrás na exploração do pré-sal, em meio a defesas apaixonadas do nacionalismo, revela visão acrítica quanto ao desempenho do Estado empreendedor no passado, além de desprezo pelos mais comezinhos critérios de equidade na distribuição de benesses a grupos especiais, em detrimento do interesse coletivo. É óbvio que compras públicas podem ter papel relevante na política industrial. Mas a justificativa de decisões em relação a compras de equipamentos petrolíferos deixa dúvidas quanto à memória de seus formuladores. Será tão curta que não há lições a tirar da experiência passada com reservas de mercado?

Em clima de uso indevido da máquina pública, a opção pela rota populista agrava também os riscos gerados por política externa crescentemente imprudente, em sintonia também com as exigências de radicalização impostas pela agenda eleitoral. Os episódios recentes em Honduras são constrangedores. Qualquer que seja o resultado da crise deve ficar devidamente registrada a posição vulnerável em que se colocou o Brasil em meio a uma briga de golpistas. Meias palavras não resolvem: trata-se de diplomacia inepta em relação a tema de interesse subsidiário para o Brasil. Hugo Chávez viu coroada de sucesso a sua estratégia de consolidar a posição do Brasil como linha auxiliar do chavismo. Os tartamudeios do governo brasileiro em defesa da democracia soam incoerentes. A quem engana a sinceridade na defesa veemente de princípios democráticos quando entremeada com abraços a ditadores sinistros como Mugabe ou Khadafi, e endosso irrestrito a eleições duvidosas no Irã?

Está só começando. É duro fazer um poste decolar.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

Um comentário:

Bruno Maffeo disse...

Prezado Marcelo,
Ótimo artigo. Parabéns.
Um abraço.
Bruno
PS Sugiro uma continuação abordando o tema: "Como resistir?"