quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A economia política da crise no Senado

Hamilton Garcia de Lima
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

A palavra fisiologismo é empregada no linguajar político e intelectual para designar práticas marcadas “pela busca de ganhos ou vantagens pessoais, em lugar de ter em vista o interesse público” (Aurélio Buarque de Holanda). Alguns intelectuais ligados aos grupos no poder, todavia, descartam seu uso conceitual por ser ele “muito controverso e pouco claro”.

Não resta dúvida de que o uso cotidiano desse e de outros conceitos úteis para o entendimento da dinâmica político-social vem se dando mais em sentido conotativo do que substantivo, como ferramenta de compreensão da realidade, mas isso é natural e não deve justificar seu abandono pelos analistas em prol de definições fragmentadas, extraídas, no mais das vezes, dos próprios conceitos rejeitados.

No caso específico do fisiologismo, sua substituição pela “busca pragmática pelo poder” ou “mera falta de identidade ideológica e/ou programática” não satisfaz, não apenas por sua má formulação — o correto seria falarmos da “busca pelo poder a qualquer preço, sem a observância do bem-comum” —, mas, sobretudo, por carecer de valor explicativo sobre o fenômeno.

Muito pior do que tais remendos é a tentativa de tornar o fisiologismo “válido (e) politicamente muito interessante” por meio da sua vinculação implícita à livre iniciativa dos sujeitos econômicos, transformando-o numa espécie de epifenômeno, tal como fazem os economistas liberais diante da corrupção dos atores competitivos na economia de mercado, considerada uma prática, se não aceitável do ponto de vista legal e ético, pelo menos natural e inevitável numa sociedade livre e com custos insignificantes diante dos benefícios gerados pela circulação monetária.

A corrupção econômica, todavia, ao contrário do que pensam esses intelectuais, é um fenômeno de natureza distinta da corrupção política, cujos efeitos são também diversos.

Sendo verdade que a corrupção econômica é uma fase primitiva da modernização do mercado, que, propiciando o avanço do capitalismo e a revolução dos meios de produção arcaicos, cria, pelo menos em tese, as condições de possibilidade para relações econômicas menos predatórias no tempo — entre outros motivos, pelo aumento da concorrência capitalista e o fortalecimento do movimento social regulatório do capital —, o mesmo não poderíamos falar da corrupção política, que, propiciando o desmanche da dominação tradicional em proveito de atores individualistas possessivos ávidos por oportunidades no Estado-mercado, não cria, por si, as condições de possibilidade para relações político-sociais menos predatórias no tempo.

Muito pelo contrário, ocorre, em particular com o fisiologismo, que a corrupção política hipertardia, ou seja, combinada com aparelhos burocráticos expressivos — que manipulam quase 40% do PIB, em contraste com os cerca de 17% da época de ouro do “rouba, mas faz” do adhemarismo —, entra em contradição com a modernidade capitalista quando se torna um elemento permanente do processo de arranjo do poder, extrapolando seu papel inicial de corrosivo do domínio oligárquico tradicional. É o caso do Brasil desde o término de seu processo acelerado de urbanização nos anos 1980.
Estendendo seu papel sistêmico para além do “necessário”, o fisiologismo truncou o processo de burocratização do Estado (impessoalidade, publicidade e economicidade), obstaculizando os caminhos da modernidade capitalista plena e criando as condições objetivas para crises políticas crescentemente graves, como as que assistimos desde a redemocratização, de Sarney presidente da República (extensão artificial do mandato) até Sarney presidente do Senado (oligarquização do Senado), pontuadas pela positividade do impedimento de Collor e a negatividade da cooptação geral promovida por Lula — tanto em relação aos representantes como aos representados.

Mesmo treinada na sustentação pragmática das inúmeras farras que a classe política promoveu com o dinheiro público por décadas no Brasil, a sociedade civil burguesa se vê hoje obrigada a uma mudança de postura, disseminando canais de controle social de governo país afora, na tentativa de estancar a sangria de impostos sem contrapartida em serviços que onera seus negócios e impede a expansão sustentada do mercado. O mesmo Estado ineficiente que catapultou Collor de Alagoas a Brasília, nos anos 1990, em sua cruzada antimarajás, persevera hoje, com o apoio do mesmo personagem, incapaz de ofertar à sociedade, do empresariado aos trabalhadores, as condições necessárias para o desenvolvimento sustentado num ambiente agravado pelo súbito estreitamento do mercado internacional.

Sarney, por tudo o que representa em suas práticas fisiológicas históricas, se transformou numa espécie de catalisador da crise, em meio a um cenário de retração econômica, em particular industrial, que parece sinalizar o fim da possibilidade de convergência entre os interesses da classe política conservadora e oligárquica (fisiológica) e os da sociedade civil burguesa — bem mais ampla, diversificada e complexa do que o interesse do capital.

Mesmo que a recessão nos países desenvolvidos seja superada em curto prazo, o fato é que o declínio das potências ocidentais e o novo padrão de competição asiático deixam pouca margem para a produção de novas bolhas financeiras e, sem elas, fica difícil imaginar a continuidade de um casamento tão oneroso como esse que se fez no Brasil, às expensas da sociedade, entre os interesses estratégicos da burguesia de mercado e os da burguesia “patrimonialista” que parasita o sistema político nacional.

Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense, em Campos/RJ.

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