segunda-feira, 20 de julho de 2009

E o general Golbery, afinal, não se enganou

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Ao elogiar Collor, Renan e Sarney, Lula retrocede na história e confirma avaliação inicial do guru da ditadura

Quem viu as fotografias e leu o noticiário sobre a visita do presidente Luiz Inácio a Palmeira dos Índios, em Alagoas, deve ter estranhado exuberantes elogios (além da carona no Aerolula) ao ex-presidente Collor, extensivos a Renan Calheiros, que teve problemas na presidência do Senado. A que se pode juntar os elogios e o empenhado apoio que nestes dias deu a José Sarney, presidente do Senado, enrolado na questão dos atos secretos de nomeações para funções naquela casa do Congresso.

O Lula e o PT de hoje são irreconhecíveis em face do que disseram que seriam, no manifesto de fundação do partido, em 1980. Eles se tornaram interessantes enigmas para a compreensão dos nossos impasses políticos, os de uma história política que avança recuando. Em discurso de 1980, na Escola Superior de Guerra, o general Golbery do Couto e Silva, militar culto, ideólogo do regime instaurado pelo golpe de Estado de 1964, deu indicações sobre a armação do futuro político do País e do lugar que nele vislumbrara para Lula. O discurso está centrado nos requisitos da segurança nacional e se refere ao âmbito da liberdade política que romperia a dependência de facções da oposição em relação à polarização da Guerra Fria.

Para ele, a redução da liberdade política criara uma rede de organizações extrapolíticas de oposição ao regime. A abertura se justificava como meio de fazer com que os partidos renascessem "na plenitude de sua função de partidos", para que a política retornasse ao seu leito natural, forma de manter as oposições divididas. Dedica umas poucas palavras à "ala esquerdista da Igreja", e é quando cita Lula enquanto membro de uma elite sindical de líderes autênticos, "sem revanchismo ideológico". Lula "poderia ter sido" um desses líderes, diz Golbery, que se confessa desapontado com ele porque fora atraído "para as atividades mais políticas do que propriamente sindicais".

Intuitivo e prático, tudo sugere que Lula aos poucos compreendeu o plano de Golbery melhor do que o próprio Golbery. Era evidente a orfandade das esquerdas, que culminaria com a queda do Muro de Berlim no fim de 1989. No Brasil essa orfandade se traduzia numa fragmentação tão extensa que Paulo Vannuchi, hoje secretário de Direitos Humanos, chegou a escrever utilíssimo manual que mapeia e lista todos os grupos partidários da esquerda clandestina, indicando a origem de cada um como fragmento de outro. Sem passar pela aglutinação de ao menos parte dessa esquerda fragmentária, Lula nunca teria conseguido a legitimidade propriamente política que o tornaria a personagem que é.

Assim como Golbery, Lula também compreendeu que a Igreja Católica estava dividida em consequência das inovações do Concílio Vaticano II e que nela havia uma importante facção, que ia de leigos a bispos, ansiosa por aliar-se às esquerdas com base no capital político das comunidades eclesiais de base. A Igreja tinha seus motivos, temerosa de ver-se repudiada por ponderáveis parcelas da população, vitimadas por notórias carências sociais. A primeira manifestação da Igreja em favor da reforma agrária fora em 1950 e viera de um bispo conservador da diocese de Campanha (MG), dom Inocêncio Engelke, que alude em sua carta pastoral ao risco de que o êxodo de trabalhadores rurais para a cidade os colocasse à mercê do proselitismo comunista. É evidente que essa Igreja também compreendeu que Lula era um personagem politicamente à deriva ao qual poderia aliar-se, como se aliou.

Operário qualificado e bem pago de multinacional, Lula compreendia que o sindicalismo da era Vargas se tornava obsoleto e agonizava, impróprio para a nova militância do entendimento e da mesa de negociação. O sindicalismo lulista era apenas o instrumento da nova realidade das relações laborais, divorciadas da concepção de classes sociais, tendente ao fortalecimento das categorias profissionais e setoriais. Longe, portanto, do mito da greve geral, a greve política, mais de confronto com o Estado do que com o capital, que era a estratégia dos comunistas, fortes no ABC operário. Lula e o PT serão decisivos na demolição da esquerda característica e histórica.

O carisma crescente de Lula, a figura mítica buscada pelas esquerdas órfãs e pelo catolicismo social, foi fundamental para o salto de modernização política representado pelo surgimento do PT (e também pelo PSDB, entre outros partidos), com a abertura política promovida pela ditadura no marco das concepções de Golbery. Lula e o PT cresceram, aglutinando o que nem sempre corretamente se autodefine como esquerda. O manifesto de 2002, pelo qual o PT realinha suas orientações ideológicas a favor de uma generosa aliança com o capital e com as multinacionais, bem como com os grupos políticos de origem oligárquica, representa o cume na construção de esquerda do partido e o início do processo de sua desconstrução de direita. Ainda antes das eleições presidenciais daquele ano, Lula, falando a usineiros de açúcar e fornecedores de cana de Pernambuco e da Paraíba, fez a crítica do socialismo e lhes prometeu benefícios de política econômica, o que resultou na imediata adesão de todos a sua candidatura.

Daí em diante, Lula no poder e o próprio PT foram descartando pessoas e facções internas à esquerda de sua opção conservadora. Foram descartando também as organizações que atuam como movimentos sociais, abandonando ou atenuando programas e projetos. Inicialmente, para trazer o apoio do latifúndio e do grande capital a sua pessoa e a seu governo. Depois, para agregar a sua base política o que de mais representativo há do remanescente oligarquismo brasileiro e da obsoleta, e não raro corrupta, dominação patrimonial.

O solidário e empolgado abraço de Lula, com sorrisos, nesses três aliados, emblemáticos senadores da República, é sobretudo um fraterno e decisivo abraço no retrocesso histórico e nos reacionários arcaísmos da política brasileira. O general Golbery achou que se enganara. Não se enganou.

*Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano

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