quinta-feira, 25 de junho de 2009

A política tradicional e Lula, o pragmático

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem grande senso prático, como registrou essa semana o presidente americano, Barack Obama. O excesso de pragmatismo, no entanto, incorporou como normalidade ceder (e muito) em negociações - públicas, legislativas - que incluem claros e notórios interesses privados e expor-se constante e publicamente para manter o status quo de setores e personagens ligadas à política tradicional. O senso prático do governo petista acabou resultando numa soma de movimentos contraditórios que em algum momento forçarão Lula a escolhas que tenta evitar.

O resultado dos programas de distribuição de renda foi a surpresa do primeiro mandato. A injeção de recursos em comunidades muito pobres, que tradicionalmente mantiveram as oligarquias regionais com seus votos, provocou uma mudança estrutural. Os ganhos de cidadania nessas regiões, em especial nas de fraca urbanização, minaram o poder da política tradicional. Está se formando uma geração de políticos apartada das lideranças locais e com forte apoio comunitário, ligada a partidos com maior preocupação social. Essa mudança começa a se delinear e se firma numa relação político-eleitoral da qual foi eliminada a mediação dos chefes políticos locais.

O movimento é outro na política institucional. O pragmatismo de Lula evita o confronto direto com os políticos de sua base de apoio. Assim, o mesmo presidente que viabiliza uma revitalização política nas regiões antes dominadas pela política tradicional, retirando o poder de intermediação do seus chefes, reinventa esses políticos quando eles são parceiros na política nacional. Uma vez acomodados na base de apoio parlamentar do governo, os políticos em declínio nas suas bases voltam a elas pelas mãos do presidente.

Cria-se, então, uma realidade em que a política eleitoral é desintermediada pelos programas sociais e enfraquece os chefes locais; eles, no entanto, voltam aos seus antigos redutos, se aliados do governo, como sócios da popularidade do presidente, e disputam os votos de Lula com as novas lideranças que apenas conseguiram espaço, no momento anterior, quando a política tradicional entrou em declínio.

O apoio explícito de Lula ao presidente do Senado, José Sarney, é parte desse pragmatismo político. Os programas sociais do governo são parte muito importante da economia do miserável Maranhão. A popularidade de Lula no Estado, em função disso, foi para as alturas, ao mesmo tempo em que a família Sarney, que domina a política regional há meio século, entrou em declínio político. Em 2006, Roseana Sarney (PMDB) perdeu as eleições para o oposicionista Jackson Lago (PDT) - retomou o poder recentemente não pelo voto, mas com a ajuda de uma Justiça que quase nunca falha para o grupo político, nem no Maranhão, nem no Amapá, o "puxadinho" oligárquico da família. Quando o brilho do patriarca José Sarney começou a se apagar nacionalmente, devido a sucessivos escândalos, o presidente passou a sustentá-lo. "Sarney tem história no Brasil suficiente para não ser tratado como se fosse uma pessoa comum", afirmou Lula, perigosamente, separando o mundo entre aqueles que podem ser responsabilizados por seus erros e os que ganham o direito de não o serem. O presidente tratou da mesma forma perigosa as denúncias contra Sarney e os desmandos das direções do Senado como "coisas secundárias".

Assim, o mesmo governo petista que balançou politicamente o grupo Sarney no Maranhão, quando desintermediou a relação da população pobre com a administração federal, permite que, num segundo momento, o mesmo grupo retome o controle sobre seus antigos redutos, oferecendo uma "sociedade" nos votos destinados a Lula devido aos programas sociais.

Outro exemplo é a relação de Lula com a bancada ruralista, que é muito forte no PMDB. O governo petista tem cedido reiteradamente à bancada. É um outro lado do pragmatismo presidencial. O governo que redefine estruturalmente o jogo de forças na base social, via programas de transferência de renda, jamais comprou uma briga com a grande propriedade. Independente dos vetos que Lula venha a fazer na MP da Grilagem, a desenvoltura com que agiu a bancada ruralista, no plenário da Câmara e do Senado, para impor alterações muito favoráveis ao agronegócio que prosperou em terras públicas da Amazônia Legal apenas encontrou espaço porque o governo manteve uma posição em regra omissa em relação à questão fundiária. As mudanças feitas na MP 458, no Congresso, teriam o poder de legalizar enormes propriedades como se fossem simples posses. De acordo com as alterações feitas, a ocupação de uma propriedade de 15 quilômetros de terras públicas, ou 1,5 mil hectares - o correspondente a 1.389 campos de futebol - seria enquadrável na definição que a lei dá à posse de terra, ou seja, o uso da terra pública por uma pessoa que vive da propriedade para prover a sua sobrevivência e de sua família - e portanto passível de legalização. Da mesma forma, a bancada incluiu na MP a possibilidade de legalização de terras de proprietários que não moram na região, tem mais de uma propriedade ou que mantiveram terras nas mãos de laranjas.

Nesses movimentos contraditórios, Lula tem o poder de dar uma contribuição à modernização da política brasileira com uma mão e tirar esses avanços com a outra. O resultado final disso será conhecido no final de seu segundo mandato, com grande risco de sair do governo sem ter alterado de forma substancial os arcaismos políticos que sobrevivem nos rincões do país. Na política não há milagres: não existem mudanças efetivas se o governante não correr alguns riscos.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

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