segunda-feira, 29 de junho de 2009

A política boa ou má

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A edição eletrônica da revista "Newsweek" exibe, desde 18 de junho, matéria de Jeremy McCarter ("Reagan Was Wrong") sobre Henry Fairlie, escritor e jornalista britânico radicado nos Estados Unidos a partir de 1966 e falecido em 1990. Fairlie, que se definia como conservador mas criticou duramente o Partido Republicano e o mitificado Ronald Reagan, via na esfera política "o único lugar em que um povo livre pode lutar contra as tiranias das outras esferas - especialmente a econômica". A política era, para ele, "essencialmente boa", e os políticos eram os mensageiros a justificar a esperança no empenho de uma sociedade em apefeiçoar-se e melhorar.

É evidente o contraste dessa perspectiva com a "repugnância" pela política, na expressão usada há pouco até em editoriais da imprensa brasileira, que parece prevalecer entre nós. Esse contraste inclui ou disfarça várias coisas.

Para começar, temos a correspondência, quanto à qual Fairlie representaria clara exceção, entre posições conservadoras ou "progressistas" (ou de direita ou esquerda), de um lado, e, de outro, o ânimo favorável ou desfavorável à ação política e ao Estado: o rechaço à política e ao Estado seria característico de um conservadorismo inclinado a santificar a esfera privada e o mercado.

Mas os valores que aí se revelam costumam reclamar também um fundamento analítico "realista". Contra as ilusões e o "sonho" das esquerdas, que respaldam a concepção da política como a esfera da luta nobre contra as tiranias privadas, cabe ver o enfrentamento dos interesses ou egoísmos privados como natural ou mesmo bom.

De parte a parte, há fatores diversos de confusão, alguns dos quais tenho aqui apontado às vezes. Assim, a desqualificação da política (a "repugnância") pode nascer precisamente da sua idealização. Tratando-se com ela da busca do bem público, supõe-se que o fato de que o interesse próprio seja motivação importante também na política não possa ser visto senão como inaceitável, em contraste com o realismo leniente quanto à conduta guiada pelo interesse na esfera econômica e privada. Seria preciso contar, portanto, com gente feita de massa especial e singular propensão à virtude para dedicar-se à política.

À esquerda, por seu turno, temos a frequente satanização do mercado e a vilificação do interesse como tal, contraposta à utopia da solidariedade e do altruísmo que seria possível pretender como orientação na ação política. O que se tende a esquecer aqui é a complicada relação do valor da solidariedade com o valor da autonomia. Trata-se, com este último, de trazer a cada um a possibilidade de afirmar-se e realizar-se, o que, compondo o ideário tradicional da esquerda, redunda em redefinição ambiciosa da ideia mesma de interesse. Em abstrato, a complicação envolvida pode ser expressa no que alguns têm descrito como a precedência lógica do egoísmo sobre o altruísmo: se alguém não goza pura e simplesmente os frutos do altruísmo solidário, para quê (ou, na verdade, como) ser altruísta? Num plano talvez mais comezinho, não há como favorecer a autonomia dos cidadãos e começar por negar-lhes a autonomia na fundamental esfera econômica, vale dizer, por negar o mercado.

Essa acolhida ao interesse e ao mercado não tem por que deixar de ir além de um liberalismo restrito ao mero plano econômico. Não queremos a sociedade em que a ameaça a interesses ou valores importantes, ou a nossos direitos, exija a permanente mobilização política. Queremos, ao contrário, a sociedade em que nos seja facultado ir para casa em paz, precisamente porque nossos valores (nossos direitos e mesmo interesses) estão garantidos.

Mas essa sociedade tem de ser construída - politicamente. E tal construção, onde surge a política "essencialmente boa" de Fairlie em que a sociedade se empenha em tornar-se melhor, tem necessariamente de valer-se da conciliação, tão hábil quanto possível, da inspiração nobre com interesses diversos cuja simples coexistência tende a produzir conflito, mas cuja capacidade de afirmar-se consistentemente no plano político são um componente indispensável do processo.

A boa política de Fairlie obviamente supõe um Estado suscetível de transformar-se no instrumento eficaz da neutralização ou minimização das tiranias privadas e das desigualdades e antagonismos que as propiciam, sem com isso incapacitar-se para regular com equilíbrio o jogo dos interesses. Se o Estado autoritário, o "sujeito" de políticas que se identifica de vez com certos interesses e desígnios, é um dos extremos negativos a evitar, o outro é o Estado tornado pura "arena", que ele próprio se "balcaniza" e se deixa transformar numa espécie de mercado, aberto a ser usado fragmentariamente para o acesso direto a ganhos privados.

Resta a ponderação de que as condições gerais da sociedade impedem ou facilitam, elas próprias, o êxito do esforço de construção adequada. Em nosso caso, elas parecem, bem ou mal, ter permitido exorcizar o perigo autoritário. Já o do Estado-mercado...

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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