segunda-feira, 22 de junho de 2009

A cereja do bolo?

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em conversa sobre os atos secretos do Senado, alguém salientava com exasperação que se trata do descumprimento de uma norma que visa a permitir a vigilância quanto à observância das normas. Com efeito, há algo de peculiar e revelador nos fatos agora denunciados. Fazem-se normas para assegurar conduta ajustada ao bem público; como tais normas com frequência não são cumpridas, é preciso vigiar seu cumprimento. Faz-se então norma que manda dar publicidade às ações relevantes; mas as pessoas deixam de cumprir também essa norma. Que fazer? Norma mandando cumprir as normas?

O que a situação contém de confuso e mesmo paradoxal tem a ver com o fato de que normas cuja efetividade dependa de vigilância são precárias como normas, não sendo objeto da adesão pronta e supostamente espontânea que prescinde da reflexão e do cálculo. A vigilância, trazendo a ameaça de sanções de um tipo ou outro (punições ou prêmios) conforme a conduta se ajuste às normas ou delas se afaste, visa justamente a impor o cálculo nas decisões sobre como agir, o que implica salientar nessas decisões as considerações de interesse: se faço isso ou aquilo, que em princípio corresponde ao meu interesse, sofro consequências negativas (vou preso...) e meu interesse é fortemente contrariado, melhor não fazer - a menos que possa esconder o meu ato.

Num livro de anos atrás, "O Surgimento do Racionalismo Ocidental", Wolfgang Schluchter propõe a distinção entre moralidade, entendida como algo que diz respeito ao indivíduo, e ética, entendida como de natureza coletiva e, em alguma medida, convencional. Apesar do paradoxo envolvido na ideia importante de uma moralidade não convencional, em que o indivíduo pondere os princípios de sua conduta de maneira reflexiva e autônoma perante a coletividade, a questão prévia e decisiva de como se caracteriza, do ponto de vista moral-ético, a política (ou a economia, ou a vida privada em geral) é a de tornar convencionais certas regras - fazer que elas se transformem propriamente numa ética, no sentido de Schluchter, difundindo-se na coletividade e tornando automática, natural e irrefletida a adesão a elas no plano da moralidade dos indivíduos, justamente, em grau importante, pela pressão difusa da coletividade.

A indagação complicada que os atos secretos sugerem é a de como lidar com as limitações da ética coletiva no condicionamento das ações dos indivíduos (de sua moralidade), o que envolve o reconhecimento de que essa ética pode ela própria ser precária como tal, ou seja, em sua difusão e penetração junto à coletividade. Resta, nesse caso, a possibilidade de que, em vez de contar com a adesão moral às normas e seus efeitos na motivação das pessoas, a intensificação da vigilância (que supõe o "artificialismo" da ação legal e institucional da aparelhagem do Estado) altere "apropriadamente" essa motivação por meio dos fatores cognitivos associados ao cálculo dos interesses. Com a eficácia da fiscalização e das sanções ocorrendo de maneira duradoura e corroborando regularmente as expectativas correspondentes que os agentes venham a desenvolver, pode-se eventualmente chegar ao que promete velho preceito sociológico: expectativas que se reiteram e corroboram acabam por se transformar em prescrições ou normas, e o resultado seria propriamente uma cultura ou ética efetiva.

Infelizmente, além da perspectiva de longo prazo e o que pode conter de desalentador, há pelo menos um aspecto adicional nas complicações do assunto. Pois a aposta em percepções e expectativas (cognitivas) que acabem por transformar-se em boas normas esquece algo que as análises e pesquisas mostram há tempos, isto é, o fato de que fatores de ordem cognitiva remetem a um problema de coordenação que se acha na raiz da própria precariedade da situação de que se parte. Se a consolidação das normas em normas reais e mesmo a eficácia da vigilância dependem amplamente da ação dos demais, que tende geralmente a ser ação "esperta" e orientada pelo interesse próprio, estarei sendo simplesmente otário ou trouxa ao agir de maneira moral e condizente com uma ética que na realidade não prevalece. Em outras palavras, até mesmo a percepção que eu chegue a ter da conexão entre minha ação imediata e meu interesse maior dependerá da percepção do grau em que existe uma cultura ou ética efetiva.

Como não cabe contar com a "conversão" mais ou menos súbita e convergente de todos, não há alternativa verdadeira à aposta nos artificialismos da ação estatal, com seu componente repressivo, e no eventual amadurecimento e frutificação "culturais" deles em direção propícia. De toda maneira, o problema a esclarecer não é o de que se chegue a ter atos secretos no Senado (que surgem, de certa forma, como uma espécie de cereja do bolo dos nossos muitos desregramentos menos ou mais recentes), mas antes o do que estará por detrás de algo mais que aqui tenho lembrado às vezes: o fato de que o Brasil, em pesquisas que se repetem há anos, é com sobras o campeão mundial na proporção dos que pensam que, em geral, não se pode confiar nas pessoas. O que sugere uma cultura "errada" já enraizada com força especial.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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