terça-feira, 19 de maio de 2009

Von Trier põe Cannes para rir e vaiar

Luiz Carlos Merten
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Anti-Christ é filme difícil, de cenas chocantes, condizente com a seleção deste ano que aponta para um mundo em desordem

Se o objetivo de Lars Von Trier era provocar barulho com seu novo filme no 62º festival, bem, ele conseguiu. Anti-Christ foi vaiado nas duas sessões de imprensa no domingo à noite. A vaia, em si mesma, sinaliza para uma resposta negativa da plateia. Quem não vaiava estava rindo e essa última não é a reação esperada diante de um filme de horror, mas cinéfilo que se preze sabe que grandes filmes foram recebidos sob vaia aqui mesmo em Cannes, bastando lembrar A Aventura, de Michelangelo Antonioni, cuja versão restaurada é uma das atrações da seção Cannes Classics deste ano.

Anti-Christ começa com uma cena de sexo explícito, com o detalhe de uma penetração. O casal que faz sexo é formado por Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg. Enquanto eles se divertem, seu filho está morrendo no quarto ao lado. É o prólogo de Anti-Christ. O restante do filme divide-se em três capítulos mais o epílogo. Os capítulos chamam-se Dor, Luto e Desespero, como os três mendigos que assombram as histórias infantis contadas pela personagem de Charlotte. Devastada pela dor, e pela culpa, a mulher inicia uma viagem alucinada. O marido resolve psicanalisá-la. A ação transfere-se da cidade para uma cabana na floresta, onde marido e mulher iniciam uma descida ao inferno.

É como se Cenas de Um Casamento se cruzasse com A Bruxa de Blair, menos o elemento de mistério. O inferno, você sabe, desde Jean-Paul Sartre sempre foram os outros. Para Lars Von Trier, agora, é a natureza. Diversos signos - animais que se entredevoram, árvores que tombam - passam a expressar a desagregação física e moral do casamento.

E se o Diabo, não o bom Deus, tivesse criado o homem? Talvez seja a tese embutida em Anti-Christ, cujo estilo dramático e visual está mais para Dogma do que para a suntuosidade cênica de Ondas do Destino. Tudo é psicanalisado e a corrida, ontem, à coletiva, foi grande porque quem não queria agredir o diretor esperava, pelo amor de Deus, que Lars Von Trier explicasse o filme e suas intenções. Anti-Christ não é um filme fácil, mas filmes fáceis não são exatamente o que se espera de um grande festival de cinema como Cannes. A experiência é desagradável, um circo de horrores que inclui a dilaceração do próprio clitóris por Charlotte e também um ataque violento da mulher ao pênis do marido. Os signos sexuais estão presentes o tempo todo, mas são signos de morte. O epílogo tenta abrir uma porta para a salvação, mas o pensamento estético e político de Von Trier desconcerta, mais do que provoca admiração.

O festival toma um rumo estranho. A seleção organizada por Thierry Frémaux aponta para um mundo em desordem. Numa cena importante, uma raposa fala - se não fosse ela, teria de ser uma serpente - para dizer o que o espectador já intuiu. Reina o caos. A própria seleção está refletindo isso. Temos aqui, este ano, um gosto acentuado pela violência e pelo humor ?bizarro?, que faz os filmes ?cults?. Neste sentido, o final de semana foi tétrico na Croisette. Uma mulher é esquartejada em Kinatay, o novo filme do filipino Brillante Mendoza, cuja provocação não produz o mesmo respeito, em certas faixas da crítica, do que a de Lars Von Trier. A coreografia violenta de Vengeance, de Johnnie To - capa de Cahiers du Cinéma e único filme para o qual a revista deu cotação máxima, obra-prima, até agora -, pode ser eventualmente divertida, mas To fica na superfície do cinema de gênero, brincando de autor, e não atinge nem de longe a densidade que os grandes diretores de Hollywood conseguiram imprimir aos clássicos que ele emula.

É um cinema que, no geral, fica na exterioridade dos signos. Mesmo Lars Von Trier, que quer ser mais profundo, não chega lá. O diretor, aliás, admite no dossiê de imprensa que escreveu esse roteiro num momento de impotência criativa e tem certeza de tê-lo feito abaixo de seu potencial intelectual. Já tivemos alguns bons filmes - Taking Woodstock, de Ang Lee; Bright Star, de Jane Campion; e, sobretudo, Un Prophète, de Jacques Audiard -, mas a seleção de Cannes em 2009 está apontando para um cinema da crise. Pode-se ver um espelho do mundo atual, mas, através do espelho, cada um pode projetar suas expectativas e desejos. Ainda bem que houve ontem Looking for Eric. Ken Loach é o único que parece não ter perdido sua fé na humanidade.

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