sábado, 2 de maio de 2009

O MURO E O SIGNIFICADO DO MURO

Marcelo Baumann Burgos1
DEU NO BOLETIM CEDES/IUPERJ
MARÇO/ABRIL

O problema não é o muro – obra de tijolo e cimento – mas o que ele significa.

E o que ele significa está relacionado ao contexto político em que está sendo concebido como alternativa à expansão das favelas. No caso, como mais uma iniciativa orientada para a idéia do controle da favela, difusamente entendida como ameaça à cidade.

Pois é preciso lembrar – e sempre será preciso lembrar – que a política do atual governo estadual para a favela foi inaugurada com a Chacina do Alemão, a mega operação policial realizada em junho de 2007, no Complexo do Alemão, que envolveu cerca de 1200 policiais, e que deixou um rastro de sangue, com vários feridos, inclusive crianças, e 19 pessoas mortas com claros sinais de execução, além de uma incomensurável seqüela psicológica em uma população de mais de 70 mil habitantes.

O descompasso entre o custo humano desse tipo de operação e o seu resultado prático para a polícia fica evidente quando se considera que seu saldo foi a apreensão de apenas 14 armas.

Caso fosse concebido em um outro contexto o muro poderia de fato significar outra coisa. Poderia significar, por exemplo, a demarcação de um território – como se faz com as terras indígenas – para desapropriação em favor dos moradores das favelas, que, titulares da propriedade, ficariam fortalecidos para exercer sua cidadania, lutando pela sua qualidade de vida, que é agredida pela especulação imobiliária predatória. Afinal, ainda se faz necessário lembrar e sublinhar que a principal vítima da favelização não é, como se costuma pensar, o morador do bairro vizinho à favela, mas, sobretudo, o próprio morador da favela, que assiste sem defesa a um processo de adensamento continuado de seu bairro, que produz efeitos dramáticos em seu cotidiano, afetando seu acesso à água potável, a luminosidade e ventilação de sua casa, a capacidade de escoamento das águas pluviais e do esgoto sanitário, a qualidade do serviço de coleta de lixo, e de atendimento de serviços básicos como escola, saúde e transporte.

Mas, para que o muro tivesse este outro significado precisaria resultar de um processo de discussão coletiva, no qual os moradores das favelas “beneficiadas” pela obra tivessem voz ativa. Neste caso, entretanto, também seria necessário imaginar um outro modelo de política para as favelas, que fosse desenhado com base em procedimentos democráticos, voltados para o fortalecimento da participação e do diálogo, envolvendo, através de fóruns vicinais e locais, a vida associativa da cidade como um todo, isto é, de seus bairros e favelas.

Não é esse, porém, o contexto em que nos encontramos. Vivemos, ao contrário, o apogeu da política do controle verticalizado, em que as razões de segurança pública são sempre apresentadas como imperativas, sobrepondo-se às demais esferas – o que fica muito evidente quando uma operação policial agride violentamente a rotina escolar.

Se a escola, e não um mandado de prisão de um traficante fosse prioridade; se os moradores das favelas fossem concebidos e tratados como cidadãos pelo Estado, e não como virtuais cúmplices dos traficantes; se as suas associações de moradores fossem fortalecidas como interlocutoras importantes na definição da política para as favelas; e se a especulação imobiliária nas favelas fosse objeto de uma legislação específica, construída através da participação dos moradores de toda a cidade, então, o muro poderia ter outro significado. Mas, na atual circunstância, o muro nada mais é do que uma ação midiática, uma espécie de equivalente funcional das incursões policiais nas favelas, cujo sentido principal não é, como se sabe, o de garantir a cidadania dos moradores das favelas, e sim o de dar satisfação a uma parcela da população da cidade, que tem peso desproporcional na formação da opinião pública local, e que teima em encarar a favela como um território ocupado por potenciais inimigos – e aqui não nos referimos aos traficantes, mas aos moradores em geral –, que precisam ser vigiados e, no limite, cercados para não realizarem seu plano secreto de sedição contra a cidade.

1 Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), professor do Departamento de Sociologia da PUC-Rio e membro da coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ).

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