quarta-feira, 20 de maio de 2009

A filósofa, a atriz e a grandeza de ser mulher

Ubiratan Brasil, RIO
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Simone de Beauvoir, um ícone do feminismo, ganha a voz e a força de Fernanda Montenegro

Um único facho de luz ilumina a atriz sentada em uma cadeira, destacando sua camisa social branca, uma calça preta mas, sobretudo, seus grandes e hipnotizantes olhos. Durante aproximadamente uma hora, Fernanda Montenegro empresta o corpo ao monólogo Viver sem Tempos Mortos, que estreia amanhã para convidados e no sábado para o público, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, em São Paulo.

Trata-se de uma montagem que se destaca em sua carreira de seis décadas. Sem maneirismos nos gestos ou na voz, Fernanda limita os movimentos para concentrar nas falas a narração de uma série de reflexões sobre a vida e a obra de Simone de Beauvoir (1908-1986), a filósofa e escritora francesa, que se transformou em ícone do feminismo e parceira de outro célebre pensador, Jean-Paul Sartre.

"O privilégio está em ouvir a palavra", diz ela, com aquela voz que se tornou característica graças ao timbre e à facilidade com que é modulada. "O (diretor) Felipe Hirsch fez várias experiências de cenário até descobrir que nenhum elemento em cena é mais importante que o discurso de Simone."

Fernanda conversou com o Estado no Rio, em Copacabana. É uma mulher esbelta e elegante, próxima dos 80 anos (completa em outubro), que utiliza um discurso articulado e entremeado por um humor malandro, que compete mas é derrotado por uma profunda bondade.

Longe dos palcos desde 2001, quando encenou Alta Sociedade, a atriz retorna na pele de uma das pensadoras mais influentes do século 20. Inicialmente, Fernanda planejava dividir a cena com o ator Sergio Britto, no papel de Sartre. Mas logo ele estreou A Última Gravação de Krapp/Ato sem Palavras 1, em cartaz no Sesc Santana, e abandonou o projeto.

"Sergio Britto ficou nos braços do Beckett e eu, nos da Simone", brinca ela. "O projeto nasceu de uma vontade de trabalharmos juntos, mas como o acaso criou ali uma separação, eu não quis desperdiçar as várias horas de leitura e envolvimento. E, novamente o acaso me fez encontrar um patrocinador, a Mapfre, que tinha justamente a intenção de apostar em um projeto cultural educacional teatral para zonas menos favorecidas."

Viver sem Tempos Mortos faz parte do projeto Caminhos da Liberdade, que inclui palestras, documentários, debates, exposições e livros. Uma forma de desdobramento social, que permitiu a Fernanda apresentar o espetáculo, muitas vezes sem cobrar ingresso, em áreas mais carentes do subúrbio carioca antes de chegar a São Paulo. É por isso também que as quartas-feiras serão dedicadas à exibição de um documentário e de uma palestra com o historiador Jorge Coli.

No palco, Fernanda não interpreta Simone de Beauvoir, mas uma espécie de porta-voz, que também discursa em primeira pessoa. "Selecionei diversos textos e cartas. Não sei como tinham tempo para escrever tanto, afinal já existia telefone na época", ironiza. "Muita coisa podia ser resolvida com um telefonema. Na verdade, era o exercício pleno da comunicação, que incluía desde tarefas banais, como descer para comprar uma baguete, até a discussão de um novo livro de filosofia."

A atriz, que descobriu o trabalho de Simone com O Segundo Sexo, publicado em 1949 e que rapidamente se transformou na Bíblia do movimento feminista, apaixonou-se pela completa adesão do casal francês à filosofia. "É difícil apontar a fronteira entre vivência e teoria", comenta. "A vida deles ainda é espantosa, especialmente porque ainda hoje se discutem os mesmos valores de homem e mulher. Sem o trabalho de Simone e de Sartre, provavelmente não teria existido a contracultura ou até mesmo Woodstock. Talvez nem mesmo movimentos de recuo, como o surgimento dos yuppies nos anos 1980, homens tão fechados em si mesmos."

Fernanda Montenegro percebeu que, com O Segundo Sexo, a escritora francesa racionalizou e organizou avaliações do feminino que já despontavam na obra de escritoras como George Sand e Virgínia Woolf. "Ela construiu um sistema para se olhar esse fenômeno."

Para a atriz, Simone tinha uma inquietação menos dirigida que Sartre. "Ele era racional, apolíneo, enquanto ela era dionisíaca, com vivências mais dolorosas e zonas demoníacas dentro dela", comenta. "Os homens buscam as grandes causas, as grandes conquistas, os grandes pulos e impulsos. A mulher também traz isso, mas de forma incubada, interiorizada."

As qualidades, porém, não impedem que Simone sempre seja vista à sombra de Sartre. Em 1960, quando o casal visitou o Brasil a convite de Jorge Amado, a imprensa da época ironizava o sucesso das palestras dela - tudo era consequência do interesse gerado pela presença dele. "Quando Sartre morreu, seu enterro atraiu cerca de 50 mil pessoas. Já Simone foi homenageada por representações de movimentos femininos de diversos países. Não foi apenas a comoção de uma nacionalidade, mas de conquistas que trouxeram a presença real de um trabalho transferido para dezenas de organizações ligadas ao feminino, das mais radicais às mais brandas."

Mesmo com um perfil de uma revolucionária, Simone era uma mulher discreta, com roupas sem criatividade, vestuário de uma professora de província, sentando-se com propriedade, coluna reta e com um turbante que lhe dava o contorno devido ao rosto. "Ainda assim, até hoje a França a trata como uma boa puta, uma licenciosa", diz Fernanda.

O importante, segundo a atriz, é evitar um equívoco semântico, em que a palavra ?feminista? possa significar o oposto do machismo, a supremacia da mulher sobre o homem. "Simone dizia não esperar que as mulheres tomassem o poder dos homens. ?O que quero é que elas destruam a ideia de dominação?", afirmava.

O comando incomoda-se com a presença feminina. Fernanda conta ter ouvido que, nas comissões parlamentares do governo, criadas para apurar irregularidades, os homens preferem não trabalhar com mulheres. "Não é que elas não se vendem, mas é mais difícil."

A volta ao teatro acontece depois de um período dedicado especialmente ao cinema. "Desde 1952 e até 2002, vivi diariamente no palco, com pausas apenas para o nascimento dos meus filhos", conta. "Mas em todos os meios, o que me interessa é a dramaturgia. O que me incentiva é descobrir que mulher vai me caber em cada projeto. E Simone de Beauvoir é uma figura imensa, da qual me aproximo de forma modesta."

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