sexta-feira, 29 de maio de 2009

Cortázar inesperado

Janaína Figueiredo
DEU EM O GLOBO / Segundo Caderno


Nos 25 anos de morte do autor argentino, chega ao leitor edição com textos inéditos

A descoberta ocorreu às vésperas do Natal de 2006, após três dias de longas conversas. Era quase meia-noite quando Aurora Bernárdez, viúva de Julio Cortázar, decidiu mostrar ao editor argentino Carlos Álvarez Garriga “uns papeizinhos” guardados numa cômoda de seu apartamento, em Paris. Quando começou a ler o que Aurora tinha para lhe mostrar, o editor, especialista na obra de Cortázar, não conseguia acreditar no que estava vendo. Eram textos inéditos de um dos maiores nomes da literatura latino-americana do século XX, que morreu há 25 anos: contos, autoentrevistas, poemas, cartas para amigos, histórias nunca contadas, discursos, prólogos, textos jornalísticos e artigos políticos. Depois de um cuidadoso trabalho realizado por Aurora e Garriga, o material se transformou no livro “Papeles inesperados” (Papéis inesperados), lançado no início do mês pela editora Alfaguara na Feira do Livro de Buenos Aires e quarta-feira na Espanha. No Brasil, o livro será publicado pela Civilização Brasileira (do grupo Record), mas a data ainda não foi confirmada.

— O leitor que coleciona Cortázar terá agora sua obra completa — declarou Garriga, que catalogou “Papéis inesperados” como o “Cortázar definitivo”, à imprensa espanhola.

Para ele, que escreveu uma tese de doutorado sobre o autor de “O jogo de amarelinha” (1963), existem três tipos de leitores: os que nunca leram Cortázar, os que leram pouco e os cortazarianos incondicionais. Para esse último grupo, afirmou o editor argentino, “a leitura de ‘Papéis inesperados’ será uma festa, um presente saboroso e longo”, já que o livro tem quase 500 páginas.

— Os que nunca leram (Cortázar) ou conhecem pouco sobre ele terão a oportunidade de abrir novas vias, porque este é um livro polifônico, que inclui textos de todas as épocas e de todos os registros — comentou o organizador.

Aurora foi a primeira mulher de Cortázar (o casamento foi em 1953), mas hoje é considerada sua viúva oficial. O escritor, filho de argentinos que nasceu em Bruxelas e voltou à terra de seus pais aos 4 anos de idade, morreu em 12 de fevereiro de 1984, vítima de leucemia. Seu corpo está enterrado no cemitério de Montparnasse, na França, ao lado de sua terceira mulher, Carol Dunlop, também descansa. Em seus últimos anos de vida, Aurora foi sua grande companheira e, por decisão de Cortázar, sua principal herdeira. Durante anos, a tradutora argentina guardou textos inéditos, que somente agora poderão ser apreciados pelos amantes de sua obra.

Dois biógrafos do autor de “Bestiário” (1951) e “Histórias de cronópios e de famas” (1962), entrevistados pelo GLOBO, mostraram-se pouco surpresos pelo surgimento de textos inéditos de Cortázar. Para Emilio Fernández Chico, que escreveu “El secreto de Cortázar” (“O segredo de Cortázar”, editora Universidad de Belgrano), o conjunto “não chama a atenção, porque Cortázar foi um escritor prolífico, gostava muito de escrever”.

— O que deveríamos nos perguntar é se Cortázar, que chegou a queimar um livro, gostaria de que esses textos fossem publicados — argumentou Fernández Chico.

Segundo ele, “é importante avaliar se ‘Papéis inesperados’ faz bem ou mal à obra de Cortázar”.

— Ele se negou a publicar muitos textos, sobretudo anteriores à década de 40, quando ainda não era o famoso Cortázar — lembrou o biógrafo argentino, que em seu livro conta como Cortázar queimou a novela “Soliloquio”, na qual contava a história real de seu amor platônico por uma aluna, chamada Coca.

Na biografia, Fernández Chico incluiu uma entrevista com a misteriosa aluna de Cortázar, que revelou alguns detalhes interessantes sobre a personalidade do escritor, como por exemplo sua extrema timidez (pelo menos em sua juventude). O romance ocorreu nos anos em que Cortázar trabalhou como professor em várias cidades do interior da Argentina, entre elas Bolívar, Chivilcoy e também na província de Mendoza. Fernández Chico visitou as cidades por onde o escritor passou e entrevistou antigos alunos e colegas de trabalho.

— “Soliloquio” foi escrita quando Cortázar era professor (entre 1939 e 1940). Ele mesmo queimou a novela e esse texto nunca mais será recuperado — afirmou o biógrafo.

De acordo com Fernández Chico, outra das obras que Cortázar evitava mencionar em seus anos de glória era “Presença”, seu primeiro livro, assinado sob o pseudônimo de Julio Denis.

— Foram publicados pouquíssimos exemplares. Cortázar tinha vergonha desse livro, que era basicamente de sonetos — contou o biógrafo. Na visão de Mario Goloboff, autor de “Julio Cortázar, a biografia” (editora Seix Barral), o célebre escritor argentino “era muito crítico com ele mesmo, muito exigente, e por isso escrevia muito mais do que publicava”.

— Muitos textos de Cortázar foram publicados após sua morte. Ele era extremamente autocrítico, lembre-se de que publicou seu primeiro livro de contos (“Bestiário”) aos 37 anos — assegurou Goloboff, que conheceu o escritor em Paris, alguns anos antes de sua morte. — Conversávamos muito sobre política, porque eram os anos da ditadura, e Cortázar estava muito comprometido com a luta em defesa dos direitos humanos.

Os textos publicados em “Papéis inesperados” foram escritos entre 1930 e 1980. Os seguidores de Cortázar encontrarão, por exemplo, um capítulo de “O Livro de Manuel” e também um capítulo em que o escritor conta como suprimiu uma parte de “O jogo da amarelinha”. Outras joias preservadas por Aurora e editadas com a ajuda de Garriga são o “Discurso do Dia da Independência”, recitado por Cortázar a seus amigos em 1938, e “Entrevista diante de um espelho”, na qual o escritor fala sobre o regime cubano e faz comentários que refletem seu profundo interesse pela revolução liderada por Fidel Castro: “Uma das mentiras básicas divulgadas no exterior consiste em afirmar que o avanço do poder popular em Cuba é comédia.


Veja bem, se todas as comédias fossem assim, eu seria sócio pelo resto da minha vida dos teatros nos quais elas são representadas”.

Abaixo, o poema inédito "A mosca", publicado em "Papéis inesperados"


"Vou ter de te matar de novo.
Te matei tantas vezes, em Casablanca, em Lima, em Cristianía,
em Montparnasse, numa estância do partido de Lobos,
num prostíbulo, na cozinha, em cima de um pente,
no escritório, nesta almofada,
vou ter de ter matar de novo,
eu, com minha única vida."

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