quarta-feira, 20 de maio de 2009

Almodóvar ao alcance da Palma

Luiz Carlos Merten, Cannes
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / CADERNO 2

Los Abrazos Rotos é uma declaração de amor do diretor a Roberto Rossellini

Pergunte a qualquer um dos jornalistas espanhóis presentes na Croisette e eles porão mais fé no filme de Isabel Coixet, o outro concorrente espanhol à Palma de Ouro. Na Espanha, o novo filme de Pedro Almodóvar foi recebido a pedradas. Los Abrazos Rotos passou ontem pela manhã para a imprensa. Se não é o melhor Almodóvar - convenhamos que não é fácil, nem para ele, superar os pináculos de Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe, Fale com Ela e Volver -, o filme é muito bom. Almodóvar fez outro filme para dialogar com gêneros que lhe falam ao coração, o melodrama e o filme noir. Como ele próprio já disse aqui, Los Abrazos Rotos conta uma história de amor louco que se abre para vários temas - ciúme, poder, culpa -, mas, no limite, se fosse preciso condensar tudo isso num só conceito o diretor não teme apresentá-lo.

"Todos os meus filmes, de uma maneira ou de outra, tratam do cinema e expressam meu amor por essa mídia. Só que Los Abrazos Rotos é a minha definitiva declaração de amor pelo cinema." Como sempre, ele se refere a um filme em particular e, dessa vez, é a Viagem na Itália, o clássico pós-neorrealista com que Roberto Rossellini deu forma definitiva à desdramatização do roteiro que é uma das pedras de toque do cinema moderno. A cena escolhida, e que Penelope Cruz e Luis Homar veem na TV, é aquela em que a dupla de protagonistas, George Sanders e Ingrid Bergman, assiste à exumação do casal que morreu abraçado, devorado pela lava do Vesúvio. O diretor do filme dentro do filme, Homar, acredita que estava abraçado com Penelope quando houve o acidente de carro que lhe tirou a visão e custou a vida da mulher. Sua memória é falsa, mas muita coisa em Los Abrazos Rotos não é aquilo que parece ser. O título vem de um foto que mostra o casal abraçado e que é rasgada durante a evolução da trama.

Ocorrem mais coisas nos 10 ou 15 minutos iniciais de Los Abrazos do que na totalidade dos filmes já vistos aqui em Cannes, com exceção do drama carcerário francês Um Prophète, de Jacques Audiard. Almodóvar parece querer submergir o espectador num redemoinho de informações. Logo no começo, há um diálogo formidável - o diretor conversa com o garoto que o assiste e, eventualmente, é seu corroteirista. É bom acrescentar que o diretor, ao perder a visão, assumiu a identidade de seu duplo, escondendo-se por trás de um pseudônimo. Eles falam sobre a possibilidade de um filme de vampiros e discutem como seria a cena de sexo entre uma vampira e um sujeito que a sugadora de sangue teme morder. O sexo é falado (e hard core), mas a questão, na essência, é - como resistir a uma entrega completa, irresistível, irracional, no cinema ou na vida?

Na história, Homar se envolve com Penelope, mas ela é amante de um industrial poderoso que não aceita a rejeição da mulher. O amor é louco, possessivo, dedicado (como o da produtora que teve um filho com o diretor, mas ele não sabe) e ainda existem personagens como o outro diretor, gay, que quer destruir a imagem do pai opressor mas se comporta pior do que ele. A cena-chave passa-se numa escadaria. Pedro Almodóvar é capaz de ficar horas citando cenas de escadarias - em clássicos de Douglas Sirk, Alfred Hitchcock, Victor Fleming etc, sem falar na mãe de todas as cenas de escada da história do cinema, em O Encouraçado Potemkin, de Sergei M. Eisenstein.

Belo como é o filme de Almodóvar, a imprensa especializada em Cannes já se interroga sobre suas possibilidades de ganhar, enfim, a Palma. Por enquanto, o favorito no quadro de cotações é Ken Loach (cinco cotações máximas no quadro da crítica na revista Le Film Français, que circula aqui uma edição diária). O inverso é representado por Anti-Christ, de Lars Von Trier, com oito (oito!) bolas pretas. Almodóvar tem chance de levar sua Palma? Ainda faltam os novos filmes de Alain Resnais, Michael Haneke e Quentin Tarantino, entre os autores pesos pesados. Marco Bellocchio pode ser uma alternativa com seu Vincere.

O filme que o próprio diretor italiano define como melodrama verdiano retoma a tendência operística que já estava no seu longa de estreia, De Punhos Cerrados, em meados dos anos 60. Conta a história do filho esquecido do Duce e da mulher que Benito Mussolini tentou apagar da história oficial. Vincere pode parecer um título estranho - Mussolini usava muito a palavra -, mas se alguém vence no filme é justamente a personagem de Vittoria Mezzoggiorno. Mulher do Duce, num casamento não reconhecido, ela se recusa a aceitar a rejeição. Na primeira parte, como amante desprezada, ele parece só inconveniente, por mais que Benito a tenha utilizado. A virada do filme ocorre quando a máquina do Partido Fascista resolve eliminar essa mulher e o filho proibido. Embora o próprio Bellocchio se refira a Verdi e ao melodrama, a história desse filho oculto tem algo de O Homem da Máscara de Ferro, de Alexandre Dumas. O diretor usa material filmado e de época e recorre à música para criar um universo operístico (às vezes de ópera-bufa, considerando-se a personalidade do Duce). Com Bellocchio, a Itália está fazendo boa figura em Cannes 2009.

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