terça-feira, 28 de abril de 2009

Os amigos de Tim Geithner

Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A edição de segunda-feira, 27 de abril, do jornal New York Times oferece aos leitores a biografia profissional de Timothy Geithner, o atual do secretário do Tesouro dos Estados Unidos. A matéria pretende desvendar as relações entre Geithner e o mundo da alta finança, como se as relações incestuosas entre o Estado e os mercados fosse novidade.

Ainda assim, o rol de equívocos promíscuos cometidos por Geithner em sua função de autoridade reguladora, presidente do Fed de Nova York, é impressionante. Entre tantas proezas figura com "aplomb" afirmação em 15 de março de 2007: "As inovações financeiras, como os derivativos, melhoraram a capacidade de avaliar e administrar os riscos". Para Geithner "as maiores instituições estavam em geral mais fortes no que diz respeito aos requerimentos de capital em relação ao risco". O palpite infeliz foi pronunciado em 2007, quando a crise financeira já mostrava os dentes e afiava as garras. Dois dias depois, entrevistas e gravações mostram que Geithner trabalhou nos bastidores para reduzir o capital dos bancos. A crise veio brava e os amigos do Dr. Geithner foram pegos no contrapé, com capital e reservas insuficientes para contrabalançar as perdas. Remeto o leitor desejoso de informações mais completas sobre as façanhas de Tim Geithner ao texto do NYT.

O propósito aqui não é individualizar as responsabilidades, mas repetir o que já foi dito em outra ocasião no espaço que o jornal Valor generosamente me concede: desde sua fundação, mas sobretudo na posteridade da Guerra de Secessão, o peso dos interesses e os interesses de peso transformaram o Estado americano numa caricatura da República, num mercado de influências e relações perigosas. Essa engrenagem controla o Estado por dentro e precisa produzir as condições que a ajudem a reproduzir a si mesma. Não é, portanto, surpreendente que os episódios de promiscuidade se multipliquem. Os liberais querem resolver isto fazendo com que o Estado deixe de se intrometer nos assuntos econômicos. O problema desta sugestão é que, a despeito das lamentações dos liberais, são os mercados se intrometem na política.

Em um de seus derradeiros ensaios, "A Economia das Fraudes Inocentes", John Kenneth Galbraith fala dos Estados Unidos, a economia capitalista mais avançada do planeta e, por isso mesmo, o país em que as relações entre o público e privado se apresentam sob a forma mais evoluída. Ele diz: "A intrusão do setor nitidamente privado no setor público se generalizou.

Dotados de plenos poderes na grande empresa moderna, é natural que os executivos estendam este papel para a política e para o Estado". As recentes investidas neoliberais conseguiram desfigurar algumas das dimensões do Estado do Bem-Estar, a dano dos subalternos.

O Estado está cada vez mais envolvido na sustentação das condições requeridas para o bom desempenho das suas empresas na arena da concorrência generalizada e universal. Elas dependem do apoio e da influência política de seus Estados nacionais para penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem prescindir do financiamento público para suas exportações nos setores mais dinâmicos e seriam deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de ciência e tecnologia. Muito menos podem dispensar o papel crucial das políticas do Estado quando a euforia do ciclo financeiro e de investimento leva à sobre acumulação produtiva e à ameaça de desvalorização da riqueza.

As transformações ocorridas nas últimas décadas não se propõem a reduzir o papel do Estado, nem enxugá-lo, mas almejam aumentar sua eficiência como agente da acumulação capitalista, em detrimento do seu papel "social". Em alguns países, como nos Estados Unidos da era Bush, o deslocamento do eixo das políticas do Estado é de uma evidência chocante, com o inequívoco enfraquecimento das políticas sociais.

Deveria ser óbvio que a parolagem dos mercados livres serviu aos senhores da grana para colocar a seu serviço as forças da política. Imagino que até mesmo os vendedores de cachorro-quente nas alamedas de Wall Street saibam do contubérnio entre autoridades reguladoras e instituições (des)reguladas.

A concorrência entre as grandes empresas e bancos não só impõe a presença do Estado nos negócios, mas promove a captura da função reguladora pelos privados e incita a luta pela apropriação de recursos fiscais. Os agentes de favorecimentos estão por toda a parte, surgem dos cantos, brotam das paredes dos edifícios públicos. Tentar caçá-los como quem organiza um safári é candidatar-se a um monumental fracasso. O jogo abusivo e agressivo de influências não raro culmina em acusações recíprocas.

As denúncias de corrupção escancaradas pelos meios de comunicação não raro fazem parte da rivalidade cruenta entre grandes empresas e grupos econômicos poderosos. Os protagonistas do minueto entre a lei e sua transgressão sistemática não sabem, mas fazem: dançam conforme os desígnios das relações promíscuas entre a esfera pública e os interesses privados, típicas da economia moderna. Nelas se enlaçam o arbítrio, o segredo, a obscuridade e a denúncia escandalosa, vícios constitutivos do modo de funcionamento do capitalismo realmente existente.

O jogo plutocrático não tem outra regra senão a usurpação sistemática dos princípios do Estado de Direito para uso particular. (A palavra ética frequenta certos círculos que podem comprometer sua reputação.)

Diante da sucessão de episódios sombrios, alguém pedirá a palavra para proclamar que os desmandos das autoridades e as práticas ilícitas são inerentes à natureza humana. Invocar a "natureza humana" é um recurso de preguiçosos. É possível demonstrar que, em certos momentos da história recente, as crenças, os valores e as praticas dominantes na sociedade - a ética, diria Hegel, não os arroubos de moralismo narcisista - conseguiram acuar a corrupção nos becos escuros da vida social.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo , ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

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