segunda-feira, 27 de abril de 2009

Gramsci

Gilvan Cavalcanti Melo
DEU EM GRAMCI E O BRASIL

Seremos marxistas? Existirão marxistas? Tolice, só tu és imortal. (Gramsci)

Em 27 de abril de 1937, morria aos 46 anos Antonio Gramsci, o mais importante, talvez o maior pensador da tradição marxista ocidental do século passado. A morte o derrotou no instante em que conseguira a liberdade: dois dias antes, recebera o documento com a declaração de que não havia mais qualquer medida de segurança em relação a ele, assinado pelo juiz do Tribunal Especial de Roma. Fora preso por ordem de Mussolini, em 8 de novembro de 1926. No processo-farsa montado pelo Estado fascista, o acusador pediu aos juízes sua condenação e, diante de Gramsci, sentenciou: “É preciso impedir este cérebro de funcionar”. Condenaram-no, é verdade, mas não conseguiram impedir que, de dentro da prisão, fosse escrita uma obra monumental.


Encarcerado, fez com que sua inteligência penetrasse na densidade sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e o dogmatismo degenerado de outros. Não pensou em formular uma nova e original concepção da práxis. Só mais tarde manifestou a consciência do valor de sua produção intelectual. Ousou, de dentro do cárcere, na solidão política, desafiar a ignorância e as banalidades stalinistas. Foi também por muito tempo negligenciado e desconsiderado inclusive por muitos companheiros, os quais deveriam tê-lo valorizado e amado mais intensamente. Em primeiro lugar, comovendo-se por aquele homem frágil, sofredor e perseguido. Em segundo, admirando sua coragem e combatividade. Em terceiro, admirando seu pensamento denso e profundo, bem como seus ensinamentos e a visão inovadora sobre a filosofia de Marx.


Nada mais justo, ao se completarem setenta anos de sua morte, do que recordar algumas contribuições daquele pensamento inovador na tradição de Marx.


Há uma controvérsia sobre o porquê da recusa de Gramsci em usar o termo “materialismo” ou “marxismo”. Parte dos estudiosos explica o fato como uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura. Entretanto, é preciso ressaltar que aqueles termos estavam relacionados a uma leitura economicista, dogmática e ortodoxa de Marx. O símbolo mais conhecido era o Manual (ou Ensaio popular) de Nikolai Bukharin. Em defesa do novo conceito foi buscar o exemplo de Marx no prefácio de O capital. Ali estavam explicitados os termos “dialética racional” e “dialética mística”, em vez de “dialética materialista” e “dialética idealista”. O próprio Marx não quis se identificar com o materialismo vulgar.


Há outra convicção: o uso do termo “filosofia da práxis” foi uma consciente revalorização da atividade cultural e da dimensão ético-política. Ao mesmo tempo que travava uma batalha contra os dogmáticos, não deixou de considerar, também, que a filosofia da práxis deveria reconquistar a força criadora que marcava o pensamento moderno, mesmo que preconceituoso e desfavorável a priori em relação a Marx: Bergson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, William James e, através de Spengler, também Nietzsche.


Seria interessante relacionar a crítica que Gramsci fez a duas correntes filosóficas existentes: uma ortodoxa, outra eclética. A primeira tendência era representada por Plekhanov, cujo ensaio mais conhecido era Os problemas fundamentais do marxismo. A obra não foi poupada por Gramsci, que a chamou de materialista vulgar e típica do método positivista. A segunda, que queria ligar a “filosofia da práxis” ao kantismo e outras correntes não positivistas e não materialistas, era representada por Otto Bauer, o qual chegou a afirmar que o marxismo poderia ser fundamentado e integrado por qualquer filosofia. Daí sua preocupação em colocar em circulação o pensamento de outro italiano: Antonio Labriola. Era o contraponto ao grupo intelectual alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de Marx, na Rússia. Por isso, Gramsci valoriza a idéia de Labriola de que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia, sendo auto-suficiente.


Qual o núcleo central do pensamento gramsciano? A palavra-chave é o homem como bloco histórico, categoria que adquiriu de Sorel e a que deu outra dimensão. Discutiu o tema, contrapondo-se à teoria da dualidade, presente inclusive em Georg Lukács. E assim se expressou: “Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente. Mas, se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (através também da história da ciência), como então a dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação às teorias barrocas do Ensaio popular, caiu no erro oposto, em uma forma de idealismo” [1].


Reafirmou sua concepção unitária do homem, quando escreveu: “É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filósofo é — e não pode deixar de ser — nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade significa adquirir consciência destas relações, modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações” [2]. Aí também está presente uma leitura antipragmática, uma reelaboração inovadora da teoria do conhecimento expressa por Marx na décima-primeira tese sobre Feuerbach: “Os filósofos de limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo” [3]. Isto é, o conceito unitário: conhecer a realidade e transformá-la.


O bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e não intelectuais, através dos conceitos de senso comum e bom senso. Gramsci evidenciou que todos os homens são filósofos, inconscientemente, e definiu os limites e as características dessa peculiaridade. Esta singularidade está contida, em primeiro lugar, na própria linguagem, que é um conjunto de conceitos com conteúdos; ou seja, em qualquer simples manifestação intelectual fica explícita uma concepção de mundo. Em segundo lugar, a religião popular, com todo o sistema de crenças, superstições, etc. E encontrou a chave para unificar, criticamente, essas duas instâncias. Resolveu a questão de maneira muito original. Estabeleceu uma relação entre a passagem do saber ao compreender e ao sentir, e, ao mesmo tempo e inversamente, do sentir ao compreender e ao saber.

Destacou que o popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe. O intelectual sabe, mas nem sempre compreende, em especial, sente. É indispensável, portanto, reconciliar senso comum e bom senso. Sem essa conexão entre intelectuais e a grande maioria da população, não se faz política.


Essa relação unitária perpassa todo o trabalho e a formação de outros conceitos e categorias. Está presente, também, no estudo da estrutura e superestrutura. Outro exemplo claro é quando se refere às “ondas” dos movimentos históricos: de um lado, chamou a atenção para o exagero do economicismo ou do doutrinarismo pedante, e, de outro lado, para o limite extremo de ideologismo. Essa separação poderia levar a graves erros na arte política de construir a história presente e futura e daria lugar a fórmulas infantis de otimismo.


Outra contribuição importante: estabeleceu uma distinção metodológica de dois momentos para a análise de uma situação concreta, circunstância ou conjuntura: a) um momento unido à estrutura objetiva, de acordo com o grau de desenvolvimento das forças materiais de produção: a formação dos agrupamentos sociais, suas funções e posição na produção. Essa análise permite dizer se, numa determinada sociedade, já existem as condições indispensáveis e suficientes para sua transformação; b) outro momento é a relação política de forças, a avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência e organização adquirido pelos diferentes grupos sociais. Na vida real, entretanto, considerou que estes momentos se confundiam reciprocamente.


E, com base na análise de conjuntura, procurou resolver duas questões apresentadas por Marx no “Prefácio” de Para a crítica da economia política: a) “uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade”; b) é por isso que “a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, captadas no processo do seu devir” [4]. Na sua enorme pesquisa fragmentada, apresentou e desenvolveu a categoria de revolução passiva. Inferiu-a dos dois princípios estabelecidos por Marx no “Prefácio” de 1859, reportando-a à descrição daqueles dois momentos que podiam distinguir a situação concreta e o equilíbrio das forças, com a máxima valorização do segundo momento [5].


A chave bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso problema da separação entre Estado e sociedade civil, separação que só existe metodologicamente. Mas deixou muito bem explicitado que esta relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional. Ao analisar as formações sociais pouco desenvolvidas e comparando com as mais desenvolvidas, chegou a uma conclusão importante: nas primeiras, o Estado é tudo, a sociedade civil é primitiva, gelatinosa, sem consistência; nas segundas, há entre o Estado e a sociedade civil uma relação de disputa, pendência, e, diante de qualquer tremor ou oscilação do Estado, imediatamente descobre-se uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado, por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada.


A partir dessa leitura, reexaminou o conceito leniniano de hegemonia. E, entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores do sistema de hegemonia: a) as organizações e instituições políticas e culturais, nas quais esse sistema se materializou; b) os sujeitos, forças sociais e instituições que o construíram e o reproduzem. Mas demonstrou, também, que os sistemas hegemônicos não eram eternos, mas históricos, bem como salientou os processos e possibilidades de se construir novas hegemonias político-morais.


Através de uma série de problemas do pensamento filosófico examinados por Gramsci no início da década 30, foi possível antecipar as novas contradições das sociedades modernas, suas complicações, crises econômicas e morais, bem como a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática, uma nova hegemonia. Vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Em Americanismo e fordismo demonstrou sua enorme capacidade de olhar o mundo além do seu tempo.


A mesma coerência unitária esteve presente na sua visão de partido político. Recusou um tipo de organização oriental, burocrática. Iniciou a análise partindo do questionamento da necessidade histórica da sua existência e propôs algumas condições, entre elas a possibilidade de triunfo ou, pelos menos, a perspectiva de alcançá-lo. Mas, para isso, era necessária a unidade de três grupos de elementos: a) um elemento de homens comuns, cuja participação seria caracterizada pela disciplina e fidelidade; b) o elemento principal de coesão, que unificaria no campo nacional, tornando-o eficiente e poderoso, um conjunto de forças. Este grupo seria dotado de determinadas premissas, como criatividade, perspectiva e união; c) um elemento médio, que articularia o primeiro grupo com o segundo, colocando-os em sólido contato intelectual e moral.


Seu pensamento avançava por fragmentos, abandonados logo em seguida; em outros casos, aperfeiçoava-os. Não era uma obra sistemática. Por isso, há estudiosos e especialistas de sua obra que apresentam grande diversidade de interpretações: uns, com matizes, formas e graus diferentes, colocam-na no campo exclusivo do leninismo; outros interessam-se, fundamentalmente, pelas inovações que ele introduziu na análise das superestruturas; e ainda há quem o prefira como filósofo da sociedade industrial. A controvérsia é natural numa obra inconclusa.


O que é o homem? Para Gramsci, era a grande questão, a primeira e principal pergunta da filosofia. E questionou: como respondê-la? Sua conclusão foi resumida em ritmo de novas perguntas, mais ou menos assim: o que o homem pode se tornar? o homem pode controlar seu próprio destino? ele pode se fazer? ele pode criar sua própria vida? E concluiu que o homem é um processo — exatamente, o processo de seus atos. Em suma, a humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de distintos elementos: a) o indivíduo; b) os outros homens; c) a natureza [6]. Isto é, em outras palavras, o bloco histórico. Só metodologicamente é possível fragmentá-lo.


Não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e mais fecundo que formava as grandes correntes de opinião. Assim o fez quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, relacionando-o com o conceito de elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto Croce seu principal interlocutor. O conjunto dos Cadernos do cárcere, na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista do marxismo.


E, hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas nos meios acadêmicos e políticos como instrumentos de análise da modernização conservadora brasileira e suas complexas superestruturas.


Sua vida, pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia ser designada como a de um homem derrotado. Na escuridão de uma época, fez valer a extraordinária força moral e o rigor intelectual do homem que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas novas fontes de energia para recomeçar e avançar. Suportou seu destino com coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e ao patético, conservando sempre o controle racional dos sentimentos. Diante disso, como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua obra tão rica e fecunda, dando-lhe, ao mesmo tempo, o papel de herói num mundo cheio de vilões teóricos?


Referindo-se a Marx, Norberto Bobbio diz que, para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador deve obter o reconhecimento de três qualidades: a) deve ser considerado como intérprete tão importante da época em que viveu que não se possa prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) deve ser sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de relê-lo, e, relendo-o, dedique-lhe uma nova interpretação; c) deve ter elaborado categorias gerais de compreensão histórica das quais não se possa prescindir para interpretar uma realidade mesmo distinta daquela a partir da qual derivou essas categorias e à qual as aplicou [7]. Esta afirmação caberia também para Gramsci? Ninguém hoje duvida de que deva ser considerado um clássico na história do pensamento.


Finalmente, nessa pequena homenagem, não poderia faltar um trecho de sua carta de 10 de maio de 1928, enviada para a mãe: “Gostaria muito de abraçá-la bem apertado para que sentisse o quanto eu gosto de você e como gostaria de consolá-la por esse desgosto que lhe dei, mas não podia agir de outro modo. A vida é assim, muito dura, e os filhos algumas vezes têm de dar grandes desgostos às suas mães, se querem conservar a sua honra e a sua dignidade de homens” [8].


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Gilvan Cavalcanti de Melo, 71 anos, é membro efetivo dos Diretórios Nacional e Regional/RJ do PPS e do Conselho Editorial da revista Política democrática.
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[1] Gramsci, Antonio. Concepção dialética da história. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 173.
[2] Id., p. 40.
[3] Marx, Karl. “Teses sobre Feuerbach”. 2. ed. São Paulo, Abril (Col. Pensadores), 1978, p. 53.
[4] Marx, Karl. “Prefácio” de Para a crítica da economia política, ib., p. 130.
[5] Vianna, Luiz Werneck. A revolução passiva — iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 18-88.
[6] Gramsci, Antonio. Concepção dialética da história, cit., p. 39.
[7] Bobbio, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 114.
[8] Fiori, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 360.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.


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