quarta-feira, 22 de abril de 2009

Excelências sem fronteiras

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Não há boa vontade ou espírito de tolerância democrática que considere aceitável a nota oficial do presidente da Câmara, Michel Temer, confessando malfeitorias, admitindo mentiras, reconhecendo que os parlamentares brasileiros não têm noção de limite nem conseguem distinguir entre o certo e o errado.

Tampouco é possível crer que possa haver reforma administrativa ou política que resolva o problema se o agente público - do servidor mais humilde ao presidente da República, passando pelo juiz, o deputado, o senador - não mudar seu modo de agir e de pensar.

A crise vai muito além do Poder Legislativo e suas condutas erráticas, quando não criminosas. A crise é moral, de valores, de ausência de espírito público, de dissolução de princípios, de descaramento absoluto.

Doze dias depois de atribuir as agruras do Congresso a uma campanha da imprensa e defender o repúdio às denúncias em defesa da democracia, Michel Temer assinou o seguinte texto: "Em razão da ampla utilização de passagens aéreas nos gabinetes parlamentares, o presidente da Câmara reconhece que deputados, inclusive ele próprio, destinaram parte dessa cota a familiares e terceiros não envolvidos diretamente com a atividade do Parlamento. Tudo porque o crédito era do parlamentar, inexistindo regras claras definindo os limites de sua utilização. Por outro lado, surgem às vezes equívocos na utilização da verba indenizatória, na de postagem, na de impressos e no auxílio-moradia.

Daí porque o presidente da Câmara dos Deputados determinou estudos para a readequação e reestruturação geral e definitiva de todos os pagamentos feitos pela Casa. As diretrizes dessa readequação serão a transparência absoluta (já definida nas verbas indenizatórias), a redução dos gastos e a sua publicidade para que todos a elas tenham acesso. Marcos legais claros e definitivos serão colocados à disposição dos parlamentares e de todos os interessados ainda nos próximos dias".

Dizendo de maneira clara: as denúncias tinham fundamento, os parlamentares entendem que se o erro não é proibido é permitido, há abusos no uso de outros benefícios, a direção da Câmara mentiu quando anunciou medidas moralizadoras, não há regra de transparência, a Casa é, pois, uma caixa-preta.

Presidida por um professor de Direito Constitucional que já foi secretário de Segurança Pública de São Paulo, pretendeu por diversas vezes ser ministro da Justiça, considera-se preparado para pleitear a Vice-Presidência da República, mas não sabe que as passagens aéreas pagas com o dinheiro público não são bem de uso privativo do parlamentar, destinam-se ao exercício do mandato que, delegado pelo cidadão nas urnas, não é extensivo à família nem aos amigos.

Da mesma forma o Senado. É presidido por um ex-presidente da República, por duas vezes ex-presidente do Senado, ex-governador, 50 anos de vida pública e a condução da transição democrática nas costas, mas acha normal usar agentes de segurança do Senado (pagos com o dinheiro público tal e qual os funcionários domésticos contratados com verbas da Câmara por deputados) para vigiar suas propriedades no Maranhão.

O antecessor e atual parceiro, Renan Calheiros, também achava natural ter despesas pessoais pagas por um lobista e apresentar notas fiscais frias como documentação de defesa no Senado. Concepção compartilhada pelos "nobres colegas" que o absolveram na acusação de quebra de decoro parlamentar.

Visão esta, disseminada pela Esplanada dos Três Poderes afora. Alcança o presidente da República, que, entre outros maus costumes, joga papel no chão, fuma no gabinete a despeito da proibição legal porque considera o espaço como "seu", zomba dos outros e acha a contabilidade paralela em campanhas eleitorais uma prática tão aceitável que não se constrange em usá-la como argumento de defesa de seu partido.

E o que dizer de ministros do Tribunal de Contas da União que moram indevidamente em imóveis funcionais do Congresso? Falar o que de funcionários que se aproveitam de qualquer oportunidade para patrocinar, emprestar seus serviços para oficializar e também usufruir dos abusos?

E dos ministros que se licenciam do Parlamento e levam junto a cota de passagens achando tudo muito ético porque supostamente não há veto na lei? Só supostamente, porque o Ministério Público vem reiterando que há, sim, ilegalidade.

Alertou inclusive à Câmara recentemente. Na semana passada mais precisamente. Aconselhou o corte de passagens para os Estados de origem a deputados e senadores residentes em Brasília, no Distrito Federal, seu Estado de origem. Fez mais duas ou três sugestões, solenemente ignoradas por um colegiado de dirigentes que preferiu desafiar a tudo e a todos com a oficialização das viagens financiadas pelo Legislativo.

Como solução, o presidente da Câmara determina a realização de "estudos" para "readequação" de procedimentos, numa demonstração de que a desfaçatez não tem fronteiras.

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