terça-feira, 18 de novembro de 2008

Claudio Napoleoni, 1927-1988

Alfredo Reichlin
Novembro 2008
Fonte: Gramsci e o Brasil
Tradução: Josimar Teixeira

Confesso que minha recordação de Claudio Napoleoni está dominada por uma grande nostalgia. Nostalgia do homem extraordinário que ele era, mas também daquela Itália, daquele mundo político e moral em que a política podia ser pensada como história em ato, e a esquerda como função do destino da nação, como o instrumento da dialética entre “escravo e senhor”, a tese e a antítese hegeliana, sobre a qual os jovens da Rivista Trimestrale construíram sua confiança na existência de um sujeito revolucionário. Tal mundo não existe mais. E eu (não só eu, creio) vejo-me atormentado pela sensação de que chegamos a uma passagem crucial, a qual coloca em questão todo o modo de ser, de pensar a si mesmo e de ser percebido, do conjunto de forças, idéias e legados que chamamos de esquerda. E no entanto, justamente em face desta mudança radical do quadro histórico, desta autêntica cesura, parece-me que a figura de Claudio Napoleoni assume um significado quase profético.

Não falo dele como filósofo nem da relação complexa e difícil, mas muito profunda, que tinha com a religiosidade e com a Igreja. Falo do refinado intelectual que dizia de si: “O lugar em que tento estar, como posso, e do qual tento falar, como posso, é a política, é a dimensão política. Na minha vida, jamais enfrentaria uma questão teórica se não fosse levado a fazê-lo por um interesse político. Mas o que posso dizer, ou melhor, arrisco-me a dizer, é que o significado da política, como lugar em que se está e do qual se fala, eu o deduzo do fato de que a política seja concebida como o instrumento de uma libertação”.

No fundo, esta foi sua visão. Napoleoni sabia muito bem que a política se nutre de concretude e a ela cabe definir num tempo determinado, e num contexto determinado, as relações entre os homens, igualmente determinados, mas tudo isso ocorria no contexto de uma visão mais geral do caminho do homem. A política, em substância, concebida laicamente como instrumento da luta que o homem há séculos trava por sua progressiva emancipação de todas as servidões, as crenças, os temores mais ancestrais que acompanharam sua história. Inclusive, como ele diria, a luta pela emancipação do trabalho, que se organizara com base na concepção da história como história da divisão entre as classes. E aí compreendido — ele acrescentava, e eu quero sublinhar — o risco de que a Igreja exclua de si não só os “infiéis” e os “pagãos”, tal como nos séculos medievais, mas os próprios cristãos, entendendo-se a palavra “cristão” como sinônimo da liberdade da resposta humana à messagem evangélica.

No fundo, sua idéia era a de um novo humanismo. E ele viveu a política, assim concebida, com extrema dramaticidade. A dramaticidade da dúvida, quando não da certeza (e nisso ele me parece hoje profético: falava há 25 anos), de que havíamos chegado a uma espécie de “crise histórica” por causa do advento de uma forma inédita de supercapitalismo, a ponto de mudar a própria condição humana. A inaudita potência dos mercados mundializados, o dinheiro como a única medida de uma riqueza abstrata, pela qual o capitalista e o operário, ainda que na persistência do conflito, tornam-se figuras ou máscaras de uma mesma alienação. Previa, em síntese, a novidade e as conseqüências da virada que ocorreu nos anos 1970 e que infelizmente, com muitas incertezas e atrasos, nós, dirigentes do PCI, entendemos pouco. Uma virada que depois se configurou como algo mais do que uma mudança do paradigma da economia: como o advento de uma autêntica revolução econômica e política, ainda que conservadora. E da qual hoje vemos o resultado desastroso.

Terminava o chamado compromisso entre democracia e capitalismo, ou seja, desaparecia a base mesma daquela formulação reformista que havia conseguido moderar os desequilíbrios do mercado com a função redistribuidora do Estado social. Tratava-se, pois, de uma virada, e a tal ponto que punha em questão muitas coisas. E, relendo os escritos de então, fico muito surpreso com o fato de que, muito antes e muito mais agudamente do que outros, Napoleoni compreendeu que estava mudando todo o curso histórico. Por esta razão, a esquerda terminou por se ver diante de uma encruzilhada que ele — e relê-lo causa impacto — representava mais ou menos nestes termos: ou se dá um passo para trás, privilegiando as lógicas do mercado e do novo capitalismo, em detrimento das razões da democracia, ou se vai adiante. E ir adiante — acrescentava — não significa chegar ao reformismo, mas superar os próprios termos daquele compromisso. Com quais implicações? A sua resposta (recordo uma polêmica comigo, na condição de relator de um seminário econômico) era muito radical, no sentido de que colocava o problema de uma superação do mecanismo dado, rumo a ordenamentos que ele, no entanto, reconhecia como indefiníveis, mas, em todo caso — dizia —, implicariam a necessidade de repensar as forças em campo, seu modo de disposição, o papel da política, a função do Estado.

Este é o problema dramático que apresentava ao partido comunista, mas, na realidade, apresentava a si mesmo. É impressionante a radicalidade das questões que dirige ao Congresso de Florença do PCI (1986). “Vocês — dizia — declararam esgotado o impulso propulsor do experimento soviético e consideram que desapareceu, como objetivo possível, a idéia, de resto jamais precisada, mas idealmente caracterizadora, da superação do capitalismo? Bem. Se for assim, cabe-lhes indicar os seus novos objetivos, uma vez que é em torno de motivações e fins que se funda o consenso e é em função deles que as pessoas se movem, participam, lutam, empunham as bandeiras. E é em torno disso que se decide o desenvolvimento ou o declínio, até rápido, a perda ou não de significado para a sociedade italiana de um partido como o de vocês”. Por isso, dizia-se desconcertado por não se discutir isso abertamente, sem excluir que se colocasse em questão até mesmo o nome. E estamos — observem — bem antes da virada de Occhetto [a transformação do PCI em PDS, entre 1989-1991]. Mas atenção. Não confundamos Napoleoni com Bertinotti ou Ferrero [adeptos da “refundação comunista”]. Inteiramente diferente era a sua cultura e completamente diversa era a leitura das coisas que sustentava sua polêmica e o levava até a provocação.

No fim das contas, sua questão verdadeira era a seguinte. Dado que a velha perspectiva do comunismo não é mais historicamente adequada para exprimir a instância de libertação que o inspirava, que outra perspectiva pode representar não um recuo e uma renúncia a valores e fins, mas um avanço e um desenvolvimento que recupere e cumpra sua própria verdade interna? Na realidade, buscava a resposta a esta questão numa revisão radical do pensamento econômico-social inspirado no marxismo. O que é preciso — dizia — é libertarmo-nos da idéia demasiado limitada da exploração entendida como domínio de classe exercido mediante a apropriação de trabalho não pago. É a teoria do valor-trabalho que não funciona e, portanto, a exploração deve ser fundamentada de modo diferente. Esta era a idéia de fundo. Ela nascia da consciência de uma cesura com a história precedente, a qual consistia na confluência de todas as classes para uma condição de subordinação ao mecanismo econômico. Não era só — e nem tanto — a redescoberta do tema marxiano da alienação. Napoleoni, que foi também um grande revisionista, começava a pensar que todo o curso da história realizava um salto, e isto porque a mundialização atribuía ao capitalismo, sobretudo financeiro, uma potência capaz de submeter toda a realidade a uma lógica que se chocava de modo radical com a subjetividade e a autonomia do homem.

O que dava ao seu pensamento uma extraordinária tensão e dramaticidade era a sensação de que se estava atingindo um limite insuperável do ponto de vista da política. E, se as coisas eram assim, estava em discussão toda a perspectiva do grupo que se reunia em torno de Franco Rodano e da Rivista Trimestrale. Abria-se um problema crucial, que ele assim define: “Posto que a história contemporânea culmina numa ‘sociedade’ dominada por um desenvolvimento novo do capitalismo que, para o homem, tem um caráter destrutivo, é possível uma superação de tal sociedade por via puramente política? Entendo por ‘puramente política’ uma via em que não se dêem outras razões para a operação política a não ser aquelas internas à própria política, não sustentadas por nada além da referência a uma moral estritamente natural, que evidencie os valores da igualdade e da liberdade. Em resumo, uma via ‘laica’, pela qual não é necessária nenhuma referência a valores religiosos nem a qualquer filosofia da história, incluindo o marxismo”.

Esta é a grande dúvida que o assediava e que dominou a última parte da sua vida. Até a dramática questão final sobre se, chegados a esta “crise histórica”, se deveria proclamar com Heidegger o esgotamento da filosofia e de qualquer outra reflexão e ação humana, de modo que se concluísse que “agora só um Deus nos pode salvar”. A sua dúvida, mas também a sua exortação aos amigos e a nós: “continuem a procurar”.

E não posso deixar de me perguntar se e em que medida, depois da sua morte, continuamos a procurar e a quais conclusões chegamos.

O balanço não é animador. Mas, se encararmos bem de frente a realidade e nos perguntarmos por que não conseguimos incidir além de um certo ponto sobre os processos reais, as respostas podem ser muitas, mas a verdade, no fundo, é que em conseqüência do fenômeno grandioso que chamamos globalização, não mudaram só os poderes, as necessidades e as expectativas, mas desapareceram os velhos instrumentos da ação política da esquerda: a moeda nacional, as funções redistributivas do Estado, a economia pública, a fronteira nacional que, só ela, havia garantido ao cidadão a representação pública e o sistema de deveres e direitos. Se não se partir daqui, não adiantarão muito o arrependimento, a flagelação, o pedido de desculpas contínuo, para em seguida não mudar nada. Contam certamente nossos erros e nossas divisões, mas conta sobretudo o fato de que não conseguimos situar nossa ação no nível daquela que é a grande injustiça, mas também a grande contradição do nosso tempo: por um lado, a potência da economia, que aniquila o poder da política como liberdade igual e interesse geral, mas, por outro, o fato de que a sociedade não pode ser reduzida a sociedade de mercado, sem criar problemas insolúveis de governabilidade e efeitos catastróficos até mesmo morais, de perda de identidade. Tenhamos cuidado, porque, se a esquerda não ocupar este terreno, e não verbalmente (debates, seminários), mas liberando forças, mobilizando interesses, mundos, demandas, movimentos reais, ela se condena a um papel subalterno: o hospital que cura na medida do possível os excessos de crueldade da direita.

Gostaria de lembrar a este nosso mundo político, que agora só representa os restos daquela grande organização autônoma em face do poder dominante que foi a velha esquerda, o enorme poder de condicionamento que está implícito na explosão das comunicações e no seu caráter difuso. Desencadeou-se uma força inaudita e, portanto, um poder capaz de “colonizar” os mundos vitais, as identidades dos indivíduos e dos lugares que até agora fizeram a diversidade do mundo. Uma força que alcança diretamente e quase sem mediações a experiência da vida cotidiana. As pessoas requerem novos bens não só materiais, os quais dêem sentido e significado às suas vidas, mas a resposta (verdadeiramente insensata) é a avalanche do consumo supérfluo. E a televisão se encarrega de confundir o verdadeiro e o verossímil.

Só um Deus poderá nos salvar? Para mim, não crente, este Deus é a capacidade de conquistar um pensamento autônomo em face daquele de direita, entendendo por direita — repito — não só Berlusconi, mas o conjunto de forças reais e de culturas (se for demasiado dizer “pensamento único”, digamos espírito do tempo) que governou o mundo nas últimas décadas. A começar pela idéia imponente segundo a qual o colapso do comunismo assinalava uma espécie de “fim da história”, isto é, dos grandes conflitos e das alternativas que podiam ser pensadas.

Como se vê particularmente nestes dias com a crise que está abalando a finança mundial, a missão do homem não pode consistir na criação de um mercado global em que capital, recursos naturais, países diversos, trabalho humano não sejam nada além de fatores de produção destinados à conquista de lucro e produtividade cada vez maiores. É essencial que emerja neste ponto uma outra dimensão da política. Não basta a luta de classes nem se vai longe com as receitas de tipo keynesiano. Quando a substância das contradições atinge a fronteira extrema da salvaguarda da espécie humana e da biosfera, então as contradições exigem respostas que não podem se esgotar num ato, num voto, numa providência legislativa. Devem ter o sentido da construção de um processo em que o compromisso político deve encontrar-se gramscianamente com a ética, deve fazer-se reforma intelectual e moral. Reconstrói-se a hegemonia da esquerda colocando no centro a pessoa humana e sua libertação. Não sei se há necessidade de um Deus para nos salvar. Sei que são necessários novos partidos mais “sociais” e, ao mesmo tempo, mais políticos, menos nomenclatura do econômico-corporativo. Porque é verdade que estamos em presença de sociedades que são, muito mais do que antes, sociedades de indivíduos, mas, uma vez que o capital que alimenta o desenvolvimento não é mais tão constituído por recursos físicos, é do conjunto das relações pessoais e dos modos de vida que decorre a capacidade de criar os novos bens e de metabolizar as inovações técnicas e científicas. Em resumo, a politização das sociedades não diminuiu, antes cresceu, quando menos pelo fato de que surgem em cena problemas sempre novos que dizem respeito ao destino da coletividade humana.

Eis por que uma nova esquerda se torna essencial na era global. Trata-se de redefinir os bens comuns e as linhas de evolução da sociedade diante de fatos grandiosos, cuja novidade consiste exatamente em colocar em questão bem mais do que os governos: a própria evolução da sociedade humana e o seu destino. Trata-se, pois, de redefinir os princípios éticos com base nos quais estamos juntos e as novas responsabilidades para com a comunidade. Se não for assim, em que bases pensamos construir uma nova esquerda? Sobre um acordo entre fragmentos de camada política?

Na minha imaginação, esta é a pergunta que nos dirigiria Claudio Napoleoni. E eu, não crente, responder-lhe-ia com estas palavras de Enrico Berlinguer:

“Estamos convencidos de que o mundo, mesmo este intrincado mundo de hoje, pode ser conhecido, interpretado, transformado e colocado a serviço do homem, do seu bem-estar, da sua felicidade. A luta por este objetivo é uma experiência que pode preencher dignamente uma vida. Não queremos impor um destino à história. O assalto ao céu — esta belíssima imagem de Marx — não é, para nós, um projeto irracional de escalada ao absoluto. Ao contrário, empregaremos todas as energias de que somos e seremos capazes no sentido de tornar concreto e efetivo o que está maduro dentro da história”.

Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma. Este texto foi apresentado em seminário sobre Claudio Napoleoni realizado em outubro de 2008 pela Fundação Biella Domani.

Roberto Freire: “É difícil falar em fusão agora”


Adriano Barcelos
DEU EM ZERO HORA (RS
)

Enquanto correligionários articulam a fusão com o PSDB, o presidente do PPS, Roberto Freire, prefere cautela. Para ele, o único movimento de aproximação é o apoio mais do que certo do PPS a José Serra ou Aécio Neves, potenciais candidatos em 2010. Freire considera a discussão capitaneada pelo gaúcho Nelson Proença (PPS) legítima, mas pondera que o tema não está em pauta. Do lado tucano, o principal entusiasta é Serra – que já fala até mudar o nome do PSDB de Partido da Social Democracia Brasileira para Partido Social-Democrata Brasileiro, mudança sutil para acolher os possíveis novos companheiros. A seguir, a síntese da entrevista:

Zero Hora – O que há de concreto em torno da possibilidade de fusão entre o PPS e o PSDB, ?

Roberto Freire – Existe um debate de alguns parlamentares, mas por enquanto o partido trata apenas da discussão de aliança na eleição presidencial de 2010. Hoje há um certo consenso de que a aliança deverá ser com o PSDB, com as candidaturas de Serra ou de Aécio. A aliança deve ser com um deles, mas nada de fusão até agora.

Zero Hora – Qual é a sua opinião pessoal sobre essa possibilidade?

Freire – Não acho que (a fusão) deva ser a posição mais correta. Um projeto em torno de José Serra, com o PPS bem articulado, pode representar uma vertente de esquerda importante para esse bloco político.

Zero Hora – O mau desempenho do PPS nas eleições municipais é um argumento a favor da fusão?

Freire – Não. O PPS não foi bem nas eleições se você comparar com 2004, mas em relação ao PPS que nós tínhamos antes de 2004 houve um grande crescimento.

Zero Hora – O fato de integrantes do partido estarem articulando essa fusão lhe incomoda?

Freire – Com meu partido não me incomodo. As mudanças nos partidos de esquerda estão ocorrendo em vários países do mundo, e nós temos isso de forma permanente como parte da nossa discussão. Não há nada de estranho quando se discute isso.

Zero Hora – O PPS foi gestado por egressos do PCB. No governo de Fernando Henrique, o PSDB ficou marcado como neoliberal. Não é incoerente falar em fusão ou mesmo aliança?

Freire – Nunca vi tanto neoliberalismo quanto no governo do PT, o que não significa que o PT tenha isso no seu programa, nem o PSDB. O PSDB é uma esquerda moderna, ao contrário do que querem dizer. A social democracia é mais avançada porque entende mais esse mundo novo do que a velha esquerda. É como eu disse em 2002. Lula foi apoiado pela esquerda, mas o candidato de esquerda era o Serra.

Zero Hora – Como o senhor vai tratar essa questão dentro do PPS?

Freire – É difícil falar em fusão agora porque não está em discussão, é idéia de uns poucos. Mas, se for do interesse da ampla maioria dos dois partidos, claro que os entraves se superam com facilidade. Se alguns desses problemas forem suficientemente fortes para impedir essa discussão, digo agora que não vai prosperar.

Extinção da espécie


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO



Cabeça no travesseiro na solidão do quarto escuro, cada governador, parlamentar, prefeito ou petista cheio de votos talvez se pergunte por que todos são preteridos pelo presidente Luiz Inácio da Silva na escolha da candidatura do PT à Presidência da República em 2010.

O que a ministra Dilma Rousseff tem que eles não têm, a não ser uma vida desprovida de relação com o eleitorado contra carreiras sobejamente testadas, e muitas aprovadas, nas urnas?

Se a curiosidade não lhes aguça os espíritos, significa que estão anestesiados. Se a dúvida lhes assola as almas, mas não ousa dizer seu nome, é mais grave: sinal de que estão com medo de confrontar, desagradar ao chefe e, com isso, perder a chance de um dia virem a merecer dele uma unção semelhante.

Em qualquer hipótese, o que se tem é um partido de um homem só rodeado de satélites por todos os lados. Não é uma novidade na estrutura de funcionamento do PT, cuja presença País afora e representação no Congresso cresceram sustentadas nas cinco candidaturas de Lula à Presidência da República.

A singularidade agora é que Lula não pode ser candidato nem dispõe do poder de conduzir as escolhas do eleitor ao molde de sua popularidade.

Constatação singela, óbvia e previsível. Natural, portanto, teria sido o partido, sob a condução de Lula, ter se preparado nos últimos anos para a passagem do bastão. Não a um clone do líder. Este é único em suas características, como de resto é peculiar cada ser humano. Mas a alguém com atributos eleitorais mínimos.

No PT está cheio de gente assim. Tanto está que é com essas pessoas que o partido vem assumindo nos últimos 20 anos o comando de Estados, de um número cada vez maior de prefeituras, aumentando suas bancadas na Câmara, no Senado, nas assembléias legislativas, nas câmaras municipais.

Há lideranças para todos os gostos: locais e nacionais. Nenhuma delas, contudo, jamais recebeu o estímulo do investimento como aposta futura do PT.

Os poucos que tentaram anteriormente, ou saíram do partido ou ganharam vaga no limbo. Dos três que já tentaram abertamente disputar a legenda para presidente, Cristovam Buarque está fora, no PDT, Eduardo Suplicy não passa nas estreladas goelas e Tarso Genro fica limitado às fronteiras do Rio Grande do Sul.

Há muito outros - sem contar os dizimados por escândalos - que poderiam ter cumprido esse papel se houvesse empenho. Não havendo e isso, em tese, contrariando os interesses do partido, só pode haver uma explicação para Lula escolher uma candidata sem-votos e ignorar uma plêiade de companheiros com traquejo e patrimônio eleitorais: impedir o crescimento de alguma liderança que possa vir a lhe fazer sombra.

Ou pior, se revelar bem melhor.

Operação Pinóquio

Os delegados Protógenes Queiroz e Paulo Lacerda mentiram à CPI das escutas ilegais ao negar a participação de agentes - depois confirmada na quantidade de 85 - da Agência Brasileira de Inteligência na Operação Satiagraha.

Podem ser punidos com um pedido de indiciamento por crime de falso testemunho. Já o governo, que também mentiu ao alegar que Protógenes havia sido afastado do caso por livre iniciativa para fazer um "curso de aperfeiçoamento", pelo visto não pagará nenhuma conta, agora que novas gravações provam que o delegado na verdade foi punido por ter cometido infrações legais e funcionais no curso das investigações.

Um pássaro, um avião...

Araponga é uma ave nervosa, canta alto, briga muito e se assusta com facilidade. Por seu comportamento estridente, serviu de codinome ao espião atrapalhado vivido por Tarcísio Meira em minissérie da TV Globo produzida em 1990.

Desde então, o apelido passou a ser usado para designar com ironia os agentes secretos brasileiros lotados no SNI, serviço secreto da ditadura à época em franco processo de desmoralização.

Hoje, o termo araponga está incorporado ao vocabulário cotidiano. O sentido original se perdeu no tempo, mas recupera-se em sua inteireza graças ao minucioso trabalho de restauração feito pela Abin em parceria com a Polícia Federal.

Sem dono

Quando a oposição critica o governo por excesso de gastos, mas ajuda a aprovar no Senado aumento estimado em R$ 9 bilhões nas despesas da Previdência, o roto fala mal do esfarrapado.

O faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço é acionado quando a Justiça proíbe o governo de obter créditos extras por medida provisória, mas manda pagar R$ 2 bilhões em auxílios-moradia atrasados para juízes em todo o País.

São atos de naturezas e motivações diferentes, mas, no que tange ao cofre de origem - o Tesouro -, a falta de cerimônia é a mesma.

O jogo da Amarelinha


Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O governador José Serra (PSDB) e a ministra Dilma Rousseff (PT) disfarçam, mas avançaram uma casa no jogo da sucessão presidencial. Os dois procuram vestir agora o figurino de o melhor gerente da crise. O feitio cabe melhor em Serra, que tem mais tempo de janela no assunto, mas não fica desajeitado em Dilma, que rapidamente adaptou o discurso do PAC e do pré-sal às "medidas anticíclicas" necessárias para combater os efeitos da crise internacional.

Os aliados de Serra negam que o tucano tenha mudado estrategicamente de fase e procura agora se expor mais nacionalmente, quesito no qual acreditam que o governador de São Paulo perde para a ministra-chefe da Casa Civil: eles se queixam de que um ato no Palácio dos Bandeirantes com a presença do ministro Guido Mantega (Fazenda), por exemplo, atrairia menos a mídia nacional que um balanço do PAC.

A menos, claro, quando Serra anuncia ao lado de Mantega uma bilionária linha de crédito para a indústria automobilística, como fez semana passada, e põe o governador do maior Estado do país no centro do combate à crise, no nível do governo federal.

Serra começou devagar, acertando acordos fiscais com um ou outro Estado, acelerou nas eleições municipais, ao apostar na candidatura de Gilberto Kassab a prefeito de São Paulo, e hoje fala sem cerimônia sobre assuntos que até bem pouco tempo reservava para conversas de bastidor, algumas com o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, outras com Mantega. A crítica às políticas cambial e monetária do Banco Central (BC), por exemplo.

"Temos a maior taxa de juros do mundo. Aliás, é o único país com uma taxa assim, porque todos os outros países baixaram no meio da crise, e o Brasil, não", disse Serra, recentemente, em uma entrevista ao jornal gaúcho "Zero Hora".

A crise definitivamente passou a fazer parte da discussão sobre as alternativas à sucessão de Lula. Dilma e Serra se apresentam como as melhores opções para gerenciá-la e fazer a travessia. Serra exibe um longo currículo de gestor e afirmações que fazem tremer um mercado - cujas opiniões já foram mais reverenciadas -, como a de que, se estivesse no governo, teria reduzido a taxa de juros. Dilma aposta todas as fichas numa política que mantenha os investimentos previstos e num processo de crescimento que contemple o "mercado interno de massas".

Serra e Dilma ainda enfrentam problemas em casa. No caso de Dilma, manifestações de Lula favoráveis a sua candidatura, em Roma, reativaram antigas armadilhas no PT, segundo as quais a definição do candidato, sem relevar a opinião de Lula, dependerá do PT, dos aliados históricos do partido e do PMDB. O ministro Tarso Genro (Justiça) já havia dito algo parecido antes das eleições municipais - e também que outros ministros pensavam exatamente como ele.

O PT, se puder, sem dúvida impõe um candidato ao presidente Lula. Ocorre que a frustração de algumas das expectativas eleitorais petistas, nas eleições municipais passadas, só confirmaram ainda mais uma vez que o ativo eleitoral de Lula ainda é maior que o do partido.

"O agente político mais importante para a sucessão de 2010 é o presidente Lula, não é o governador José Serra", diz o cientista político José Luiz Niemeyer, coordenador do curso de graduação de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais. "As pessoas ficaram um pouco inebriadas com a vitória de Kassab, mas o Lula tem um poder muito grande junto às centrais sindicais, aos governadores do Nordeste às prefeituras dos grotões. É o Lula que vai lá, fala no comício na praça. Então ele ainda é um cabo eleitoral importante. Não vamos poder diminuir a importância do presidente no processo não".

Só que, em vez de Dilma Rousseff, o professor fala em uma outra escolha de Lula, nome que volta e meia embala conversas políticas de Brasília: o do ministro Henrique Meirelles, presidente do Banco Central. "A saída Meirelles é uma saída estratégica para o presidente começar a criar - o que eu acho cada vez mais importante -, que é um nome novo dentro do partido". Um nome aceito pela banca internacional, com vínculos no PSDB, capaz enfim de juntar o "lulismo" a um segmento importante dos tucanos, formado por Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Tasso Jereissati, no ponto de vista do professor do Ibmec.

É óbvio que o nome de Meirelles aparece na esteira da crise financeira internacional. Pretensões eleitorais o ministro-presidente do BC tem, embora elas sempre apareçam camufladas com uma candidatura ao governo do Estado de Goiás ou até mesmo à Prefeitura de Anápolis - um teste para sua filiação partidária feito ano passado. Sua escolha por Lula causaria, sem dúvida, uma reviravolta - além de reações desesperadas no PT - num jogo que atualmente parece encaminhado à indicação dos primeiros da fila: José Serra e Dilma Rousseff.

"Eu acho o Meirelles uma candidatura muito interessante para Lula usar, mas não para o PT usar", argumenta o cientista político José Luiz Niemeyer. "Essa seria a característica da candidatura. Um candidato mais do grupo de Lula e menos do partido, como se o presidente Lula quisesse dar uma guinada mais ao centro - não para a direita, mas para mais ao centro".

A teoria do professor é clássica: embicada em direção ao centro, a candidatura de Henrique Meirelles, na realidade, significaria mesmo a aproximação do atual governo "de um ponto de vista do PSDB, do ponto de vista de política econômica, o que seria rico". Por quê? "Porque alguns setores do PSDB se aproximariam mais de Lula, como já estão próximos alguns setores, e não do PT. E se Meirelles vencesse mesmo o Serra, com grande apoio de Lula, você teria um Congresso mais fácil de trabalhar, a partir de 2010".

Sem dúvida, esquematicamente, parece a comprovação do teorema de Aécio Neves. Mas nada indica hoje que tanto Serra quanto Dilma, caso eleitos, venham enfrentar grande dificuldade para compor uma maioria estável. a partir de 2010.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Desmistificando Obama


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Se havia alguma dúvida de que a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos não tem nada a ver com a de Lula no Brasil ou a de outros governos da América Latina, como Evo Morales na Bolívia ou Hugo Chávez na Venezuela, como o próprio Lula imagina numa tosca visão histórica, essa dúvida ficou superada pela primeira entrevista de Obama como presidente eleito. Ao contrário do auto-endeusamento de Lula, e da constante propaganda que ele e seus companheiros regionais fazem de suas origens humildes, que supostamente justificariam todos os desmandos e lhes dariam poderes reparatórios das injustiças históricas, se há alguém interessado em desmistificar sua própria figura, evitando o endeusamento que muitas vezes dominou o noticiário da campanha presidencial, é o próprio Barack Obama.


Diante das dificuldades que tem pela frente, ele tratou de recolocar sua eleição histórica no rol dos fatos políticos inerentes à democracia americana, e não no de vitórias pessoais ou de grupos.

A entrevista ao programa "60 Minutos" da CBS, se não teve novidades políticas relevantes, mas apenas reiterações de posições políticas já conhecidas -, como a de restaurar a estatura moral dos Estados Unidos fechando a prisão de Guantánamo e assegurando que não se tortura mais como política oficial - ou de medidas econômicas, como não se preocupar nos dois primeiros anos com os gastos públicos, para garantir que a economia se reequilibre, trouxe um retrato pessoal de Barack Obama que dá uma boa indicação de sua qualidade de líder nesse momento tão nebuloso do mundo.


A começar pelo fato de que ele não valoriza em benefício próprio sua posição de primeiro negro a ser eleito presidente dos Estados Unidos. Não fez isso durante toda campanha presidencial e continua na mesma postura de colocar-se como um presidente eleito por suas virtudes, e não pelo que simboliza na superação da discriminação racial.

Perguntado diretamente por um repórter, Obama admitiu que pôde sentir um sentimento de emoção que cruzou o país, sintetizado na face de sua sogra, que "criou uma filha na Chicago segregada dos anos 50 para hoje vê-la tornar-se a primeira-dama dos Estados Unidos".

Obama classificou sua eleição como um sinal do enorme progresso alcançado, "um gesto de decência e generosidade" da sociedade americana, mas ressaltou que entrou na disputa na presunção, confirmada segundo ele, de que o eleitorado iria escolher baseado apenas na percepção sobre sua capacidade de liderar o país.

Michelle Obama disse também que, ao ver o retrato do marido na televisão como sendo o presidente eleito, disse a ele: "Você é o 44º presidente dos Estados Unidos. Que (grande) país é esse".

Os Obama confirmam assim que não estão dispostos a viver como símbolos da ascensão social e política dos negros nos Estados Unidos, o que nos leva ao segundo ponto de destaque da entrevista, que foi a clareza com que colocou as dificuldades que o país tem pela frente e a impossibilidade de resolver as coisas num piscar de olhos, ou pela pura vontade política.

"O povo americano não espera milagres", disse Obama, mas sim um trabalho árduo, uma clareza de intenções, um senso comum na abordagem dos problemas que restaure a relação de confiança entre o público e o governo.

Para enfrentar as enormes dificuldades que terá pela frente, o presidente eleito Barack Obama deixou claro que não hesitará em buscar ajuda até mesmo nas hostes adversárias, confirmando que seu gabinete terá pelo menos um republicano.

Ele confirmou que anda lendo muito sobre o governo Lincoln e se inspirará, nesse caso, em Abraham Lincoln, que o repórter lembrou ter levado uma série de adversários para seu governo, atitude que Obama considerou "sábia".

Também o governo de Franklin Delano Roosevelt tem sido objeto de estudo por parte de Barack Obama, especialmente os primeiros cem dias, numa indicação de que considera que algumas medidas de emergência terão que ser usadas.

O que mais o impressiona, revelou, é a atmosfera de confiança que o presidente Roosevelt conseguiu imprimir num país castigado pela crise econômica desde 1929. Embora tenha ressaltado que as crises têm diferenças entre si, e por isso mesmo não pretende recriar, como foi especulado, agências de estímulo à economia do tipo das criadas por FDR, o presidente eleito ressaltou que tomaria medidas para revitalizar a economia, "sejam de Roosevelt ou de Ronald Reagan", desde que funcionem na atualidade.

A comparação com Roosevelt leva inevitavelmente à comparação de George Bush com Hoover, o antecessor de FDR. Bush, que se consolidou no posto de talvez o pior presidente dos Estados Unidos pela quebra do sistema financeiro internacional, tomou o lugar de Herbert Hoover, que, um ano depois de ter sido eleito, teve que comandar um país quebrado financeiramente pelo crash de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York.

Entregou ao seu sucessor Franklin Roosevelt um país em recessão, da qual só saiu muitos anos e vários planos econômicos depois. O que assusta os republicanos é que nos cinqüenta anos seguintes a 1933, o partido só conseguiu eleger dois presidentes, e só teve a maioria no Congresso em 4 anos.

O democrata Franklin Delano Roosevelt foi eleito nada menos que quatro mandatos seguidos, e um sucesso de Obama pode significar um novo ostracismo republicano.

Agora, falar em socialismo é fraude


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


SÃO PAULO - Esse tal de capitalismo é tão forte, mas tão forte, que consegue ouvir juras e cantos de amor mesmo no meio de uma baita crise.

Diz o documento do G20, composto excepcionalmente no sábado pelos 22 países mais importantes para a economia mundial: "Nosso trabalho será guiado por uma crença compartilhada de que os princípios de mercado, abertura comercial e de regimes de investimento e mercados financeiros eficazmente regulados estimulam o dinamismo, a inovação e o espírito empreendedor, essenciais para o crescimento econômico, o emprego e a redução da pobreza".

As escolas liberais seriam provavelmente incapazes de afeto maior. O livre mercado até reduz a pobreza, quem diria, hein? Nem é novidade, no entanto, que tenha sido dito, pela simples e boa razão que não há, entre os líderes do G20, qualquer um que se oponha ao capitalismo.Afinal de contas, Cuba, Coréia do Norte e Venezuela não são membros do grupo.

De todo modo, para efeitos políticos internos, vale notar que um dos líderes que assina a ode ao capitalismo acima reproduzida chama-se Luiz Inácio Lula da Silva (para não falar em Cristina Fernández de Kirchner, da Argentina, e em Hu Jintao, da China, que deixo para os colunistas de seus países).

A conversão radical de Lula ao liberalismo puro e duro tampouco é nova -desde que assumiu, faz seis anos, casou-se sem pudores com os "princípios de mercado".

Mas há ainda petistas -inclusive a candidata "in pectore" de Lula para 2010, a ministra Dilma Rousseff- que continuam falando em socialismo e que acham o governo de esquerda. A assinatura de Lula no texto do G20 transforma em fraude ideológica insistir nessa tolice.

PS - Cometi domingo o gravíssimo erro de tratar o jornalista Vladimir Herzog como terrorista, o que nunca foi. Perdão.

A crise poderá ser a solução para os problemas da economia brasileira


Yoshiaki Nakano
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Entre os erros humanos documentados empiricamente pela psicologia temos a tendência do ser humano ser otimista e confiante. Estes fatos são estudados pela chamada "economia comportamental". Assim, é "normal" que as previsões econômicas tendam a este viés otimista e que sejam, posteriormente, ajustadas para convergir com as previsões chamadas "pessimistas". Os economistas brasileiros estão prevendo que o crescimento da economia brasileira em 2009 será de cerca de 3,0%. Os pessimistas prevêem crescimento de 2,0%. Com a divulgação das informações sobre o desenrolar da crise, haverá revisões para baixo e o crescimento de 2,0% passará a ser a taxa "otimista". A duração da crise financeira e da contração econômica deverá ser mais prolongada do que gostaríamos de admitir.

É com este quadro de recessão ou forte desaceleração em 2009 e 2010 que temos que conviver e avaliar as medidas de política econômica. Se crescermos 5,2% este ano, a desaceleração no crescimento do PIB deverá ser de mais de 3% em 2009 e em 2010. A demanda agregada deverá sofrer uma contração maior ainda. A despesa de consumo das familias, que vinha crescendo em torno de 7%, deverá sofrer redução nos próximos meses, pois a oferta de crédito, que vinha crescendo mais de 30%, já sofreu forte redução, com simultânea elevação da taxa de juros, e o nível de emprego já dá os primeiros sinais negativos.

Da mesma forma, os investimentos produtivos que vinham crescendo mais de 15% deverão sofrer contração mais forte ainda pois são mais sensíveis ao quadro de grande incerteza e de paralisia no sistema de crédito. Os dados recentes de exportações são ainda mais preocupantes, pois aqui se associam a paralisia no crédito externo, a violenta queda no preço das commodities e uma recessão global muito mais profunda do que esperado. A depreciação do real deverá ter efeitos positivos nas exportações, mas sabemos que esta só responde com um lag que poderá ser de dois anos. As importações, que estão do lado da oferta agregada, deverão ter forte queda já que se ajustarão à queda na demanda agregada. Esta queda atuará como freio na redução no nível de atividade interna, mas é importante lembrar que seu efeito doméstico depende também da taxa de câmbio, que sofreu forte depreciação - da ordem de 40% - e isto atuará negativamente subtraindo demanda agregada, neutralizando aqueles efeitos positivos.

Quais as consequências desta forte desaceleração na demanda agregada sobre a economia brasileira? O que à primeira vista parece ser uma tragédia, poderá ser bastante benéfico para o futuro da economia brasileira. Na verdade, podemos dizer que ela antecipa, em alguns anos e de uma forma favorável, ajustes que teríamos que fazer num futuro próximo com custos muito mais elevados se a crise financeira não tivesse ocorrido.

De fato, a economia brasileira vinha crescendo nos últimos anos a uma taxa mais acelerada após 25 anos de semi-estagnação. Mas a transição para a nova trajetória de crescimento vinha apresentando alguns problemas: 1) elevado patamar da taxa de juros vinha provocando a apreciação do câmbio e consequente elevação dos salários reais gerando um excesso de demanda expresso no crescimento explosivo do déficit em transações correntes; 2) o rápido crescimento da economia mundial e a especulação financeira vinham excedendo forte pressão sobre o preço do petróleo, metais e alimentos gerando uma inflação mundial; 3) o excesso de liquidez global vinha gerando "boom" de entrada de capitais com forte pressão sobre os preços dos ativos financeiros e imóveis com geração de bolhas especulativas, como na bolsa de valores; e 4) o crescimento de mais de 30% na oferta de crédito ao consumidor, por sucessivos anos, levava a antever crise de inadimplência.

Neste quadro, o governo Lula vinha reagindo apenas ao problema da inflação com elevação dos juros, mas com política fiscal frouxa. Esta política estava agravando o problema da apreciação cambial e, ao estimular a entrada de capitais do exterior, não dava sinais de ser capaz de controlar a excessiva expansão do crédito nem de evitar bolhas especulativas. Assim, no curto prazo, a elevação da taxa de juros traria, com certeza, uma desaceleração no crescimento econômico e deterioração das contas fiscais com elevação da dívida pública. No médio prazo, era previsível que a excessiva apreciação do real e o explosivo crescimento do déficit em transações correntes terminariam numa crise de balanço de pagamentos. Ainda, poderia ser agravada com uma crise financeira interna em função do excessivo crescimento do crédito e das bolhas financeiras.

A verdade é que a crise financeira internacional seguida da contração no crédito, depreciação da taxa de câmbio e recessão, iniciou um forte ajuste na economia brasileira que poderá resolver ou encaminhar os problemas listados acima. A depreciação cambial, num quadro recessivo, é ideal pois neutraliza a inflação e permite um ajuste nas transações correntes retirando do horizonte problemas futuros com balanço de pagamentos. As fortes contrações no crédito e na demanda agregada associados à grande queda nos preços do petróleo e das commodities tem sido de tal magnitude que vêm reduzindo e neutralizando os efeitos inflacionários da depreciação da taxa de câmbio. Simultaneamente, os problemas da excessiva valorização de ativos e da expansão de crédito também desapareceram. Ao contrário, a grave crise de liquidez internacional e a contração doméstica de crédito é de uma magnitude não vista desde a crise de 30 e requer medidas mais agressivas do Banco Central de ampliação da liquidez e, certamente, ele será obrigado, num futuro próximo, a novas reduções no depósito compulsório e na taxa de juros, para evitar um colapso maior no nível de emprego.

Assim, a crise financeira está fazendo os ajustes necessários e trouxe para o Brasil uma grande oportunidade de eliminar anomalias como uma taxa de juros excessivamente elevada. Como a taxa de juros é muito elevada, a crise de liquidez abriu muito espaço para sua redução a fim de evitar recessão econômica mais grave e sem impactos inflacionários. É a grande oportunidade para que nossos juros convirjam para níveis internacionais. Como há grande espaço para redução na taxa de juros e a ampliação na liquidez é imperativa, não cabem medidas de estímulo fiscal no Brasil. Seria um erro, pois só a austeridade fiscal daria sustentação no longo prazo ao novo patamar de juros. Se a combinação da política macroeconômica for sábia, a crise financeira num golpe abre possibilidade do Brasil ter estabilidade e retomar crescimento com vigor como nos quatro últimos anos. Estabilidade e moeda forte só é possível com equilíbrio fiscal e nas transações correntes. Isto é, com baixas taxas de juros consistentes com taxa de câmbio estável e competitiva. Juros altos e câmbio apreciado são sinais de desequilíbrio, instabilidade e resultam em baixo crescimento.

Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.

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