sábado, 8 de novembro de 2008

A sucessão e, ainda, a Frente Democrática


Vagner Gomes de Souza[1]

Givaldo Siqueira está de parabéns pelo seu artigo “O PPS E A SUCESSÃO” pois um ator político não deve ficar aguardando os fatos. Ao contrário, um partido político democrático da esquerda sempre deve pleitear dirigir os elementos de fortuna da conjuntura. Entretanto, seu ponto de vista poderia ser complementado com algumas considerações sobre a conjuntura nacional. Assim, sugerimos que uma atuação política no pleito de 2010 deve partir de uma reafirmação da política partidária em relação ao Governo Federal.

Vamos completar 20 anos de hegemonia economicista na gestão pública brasileira. O Governo Collor inaugurou esse mundo pragmático pela via radical do neoliberalismo, o que afastou as forças políticas da tradição republicana. Entretanto, a luta política democrática foi colocada em segundo plano pela ideologia do “choque de capitalismo” divulgada pela candidatura do PSDB em 1989.

A transição do Governo Itamar foi uma oportunidade perdida diante da hiperinflação que abriu caminho ao Plano Real. Não percebíamos o quanto a sociedade havia transformado nos anos 80 com a emergência de uma classe média urbana sem valores cívicos. Essa foi a base da opinião pública que se calou diante das privatizações das empresas estatais (particularmente a telefonia) e se afastou da atuação em esferas públicas (associativismo de bairros, sindicatos, partidos políticos, etc.). Não fizemos um programa para essa nova classe média que entendeu a política cada vez mais de forma americanizada. Assim, a instituição da reeleição fortaleceu uma tendência ao bipartidarismo na competição da Presidência da República entre as duas vertentes dessa nova classe média liberal e utilitarista (PT e PSDB).

Não há grandes mudanças na correlação das classes sociais no intervalo de 1994 (primeira eleição de FHC) e 2006 (segunda eleição de Lula). Enfim, as mudanças ocorreram para se conservar a lógica do economicismo em que o desenvolvimentismo, aos poucos, foi reinventado a serviço dos interesses da burguesia financeira cada vez mais internacionalizada após o PROER. A falta de mudanças estaria associada a uma incapacidade na atuação no interior do processo transformista de nossa sociedade, o que foi resultado de uma postura sempre eleitoreira dos diversos partidos políticos do campo democrático e progressista.

Esse segundo Governo Lula aprendeu, com a crise política do “mensalão”, a ampliar seu campo de aliança política e social com grande capacidade de cooptação de lideranças políticas e intelectuais em torno do desenvolvimentismo economicista. Nesse caso, não é estranho as tendências pró-Lula no PSDB (vide o caso de Belo Horizonte) e no PPS (segundo indicações do artigo de Givaldo Siqueira), pois desenvolvimentismo e eleitoralismo é o casamento do conformismo no capitalismo brasileiro. Não há espaço para a “grande política” diante da ausência de uma política que aprofunde contradições na base social do atual governo. Entretanto, a chamada oposição (PSDB/DEM/PPS) segue o legado da liberdade dos modernos, ou seja, não formulou uma política pública que interpele a nova classe média dos anos pós-transição democrática e os “emergentes sociais” do governo Lula (conhecidos como “lulistas”, pois discordo com a simplificação “protofascista”).

Há elementos de um “fascismo de mercado” que o simples compromisso com o desenvolvimentismo não implicará na abertura das mudanças na rota política brasileira. Portanto, não apoiamos uma adesão a oposição de centro liberal (PSDB/DEM) pelas velhas linhas da estratégia democrática e nacional, pois isso seria um adesismo semelhante ao reingresso a base governista ou ao apoio da alternativa mineira. Por outro lado, não há elementos favoráveis a uma candidatura própria de opinião ou no campo oposicionista da velha esquerda (PSOL/PSTU/PCB/PCO).

Consideramos que a sociedade necessita de um processo de reformismo democrático que ainda não recebeu atenção da nova classe média. Essa nova classe social encontra-se eleitoralmente polarizada entre governismo e oposicionismo, mas verificamos que sua força majoritária está à margem da disputa eleitoral tendendo para valores conservadores caso não seja interpelada politicamente. A estratégia passa pela transformação democrática com o aprofundamento dos princípios estabelecidos na Constituição de 1988.

Devemos formular uma constituinte de uma nova força política que seja tenha uma dinâmica eleitoral e que reforce o associativismo da sociedade civil nas camadas médias e nas periferias do capitalismo. Uma política de transformação social com política, cultura e juventude o que está para além de uma simples posição por uma candidatura presidencial em 2010. Hoje, é necessária a fundação do PCB (“partido da constituição brasileira”), portanto a Frente Democrática ainda é a melhor alternativa para fazer chegar a nossa formulação política até as forças políticas em disputa.

Nesse sentido, justificaríamos nossa aproximação com as forças políticas do “centro político liberal” pela política do reformismo democrático que compreenda o novo papel do judiciário brasileiro em mobilizar os interesses dessa nova classe média e dos “emergentes sociais” que vivem à margem do associativismo. O aprofundamento da democracia passa por um Judiciário forte e que adquira canais fortes de participação da sociedade – isso não implica no controle externo do judiciário. Na verdade, há uma possibilidade de americanizarmos esse judiciário com instrumentos até eleitorais (vide o exemplo do Juiz de Paz eleito citado na Carta de 1988 e ainda não regulamentado).

Além disso, o modelo legislativo brasileiro merece ser mais democratizado por uma Reforma Política e Eleitoral que deve contar com um programa mínimo que inove com as chamadas “candidaturas independentes” nas listas partidárias. Por isso, há espaço para diversas candidaturas de opinião nas eleições parlamentares de 2010 que force uma “guinada” do desenvolvimentismo para o democratismo econômico e social. 2010 deve ser o início do ciclo do “Choque de Democracia” e, ainda, com a Frente Democrática.

[1] Mestre em Sociologia

O TECNICISMO COMO FIM


Wilame Jansen
Escritor, paraibano


Darwin tinha razão. Meu micro ficou velho aos 3 anos de idade. Tive de substituí-lo por um jovem poderoso, veloz e com mais utilidades que bombril. Meu televisor está condenado à morte ainda na flor da idade, vem aí o digital.

Aposentei uma coleção de máquinas de calcular que me acompanharam na profissão por longo tempo. Elas ficaram, a cada geração, mais capazes, mais velozes e, ao longo do tempo, diminuíram de tamanho até... desaparecerem.

Hoje, encontram-se escondidas em computadores, celulares e até em máquinas fotográficas. Não falo da velha Kodak (velho já era), falo das novas, das que fazem tudo em tempo real: fotografam e remetem imagens para visualização ou impressão.

Não é a mudança que é importante, e sim, a velocidade da mudança. Na telefonia, a operadora X troca o celular do cliente a cada 6 meses, sem custo. São atitudes surpreendentes da agressiva competição globalizada. A operadora X está apenas fazendo o que as outras fazem

Não há tempo a perder, o mercado – novo ente transcendental – é ávido por novos produtos. As pessoas querem comprar qualquer coisa nova. Comprar não é mais um meio desse consumidor contumaz. É um fim, é a própria felicidade. Uma vez alcançada, essa efêmera e frustrante felicidade tem necessidade de perseguir nova compra. E o ciclo da competição globalizada se completa em suposta harmonia, cada vez mais veloz. E essa velocidade custa caro às empresas, obrigadas a comprar ou desenvolver tecnologias para atender a esse ritmo alucinante, se quiserem apenas sobreviver.

Hoje, até a pesquisa nos dá a impressão de se voltar exclusivamente para atender essa urgência constante da técnica em atender à competição. E a técnica em si não está, como nunca esteve, preocupada com os objetivos superiores da humanidade. Por outro lado, era a Ciência quem nos prometia a felicidade pelo conhecimento do mundo. Refiro-me aos modernos: iluministas, positivistas - esses nomes significativos inventados pelos geniais Descartes, Look, Kant, etc. Mas zombaram da harmonia cósmica, parcelaram o mundo para melhor analisá-lo e apostaram no desenvolvimento da humanidade exclusivamente pela técnica. E deu no que deu.

E aí? Como interferir nessa ciranda? O capitalismo globalizado fragiliza as nações e só permite a interferência dos governos nas crises por ele mesmo criadas. Quando o negócio fica preto, desenterram Keynes, como agora, socializando os prejuízos. As pessoas que entram no pesado jogo do consumismo só se preocupam em ganhar dinheiro, o máximo que puder, e administrar seus cartões de crédito a fim de alcançarem aquela felicidade efêmera e, por isso, frustrante.

Aparentemente, são indivíduos isolados que, mesmo residindo em médios e grandes centros urbanos, não participam de qualquer tipo de associativismo e não se interessam por assuntos que digam respeito ao destino da humanidade. Digo aparentemente, porque me parece não ser o comportamento da maioria.

A eleição, ontem, de Barak Obama me faz reportar (noutra dimensão, claro) a votação extraordinária de Gabeira, no Rio. Ambas deverão ser objeto de muita reflexão e estudos pra quem é do ramo.

Em seminário de avaliação das últimas eleições brasileiras, semana passada, em Brasília, tive a oportunidade de assistir o depoimento do companheiro Raulino, assessor da campanha de Gabeira, explicando a estratégia utilizada para o sucesso daquela campanha. Em síntese: Gabeira, um intelectual antenado com o mundo, deixou de lado a lógica dos partidos (o que a população já fez há anos) e falou para as redes sociais de interesses comuns, ou seja, praticou o que os teóricos estão chamando de a democracia das minorias. E foi ouvido.

Três cientistas sociais de fama internacional escreveram sobre o assunto: Marilyn Fergusson (Conspiração Aquariana), Anderson e Alvin Toffler (A Terceira Onda), por coincidência, todos em 1980. Portanto, há 28 anos discutiram coisas que os partidos brasileiros, até hoje, nem desconfiam.

Alguns movimentos sociais fazem parte dessas redes, mas não são apenas eles. Há redes permanentes e redes temporárias, que lutam por um objetivo e se extinguem tão logo alcançam o que querem. Há toda uma teoria que justificam as redes, em cima dos novos paradigmas (abordei o assunto no livro Na curva do rio). Alguns marxistas apontam as mudanças nas relações de produção como a causa mais profunda desses movimentos.

Pois bem, Gabeira falou para essa gente, por fora e por cima dos partidos. E foram essas redes que defenderam ele e o Kassab, quando os dois foram agredidos por preconceituosos.


Wilame Jansen lançou recetemente, em Recife, seu novo romance, "Na Curva do Rio"

É preciso ignorar idéias conservadoras


Paul Krugman
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Novo presidente dos EUA não deve temer um deslocamento para a esquerda

Se a eleição de nosso primeiro presidente negro não o comoveu, há algo errado com você. Mas será que a eleição marcará também um ponto de inflexão real na política? Barack Obama pode realmente introduzir uma nova era de políticas progressistas? Sim, ele pode.

Nesse momento, muitos analistas estão conclamando Obama a pensar pequeno. Alguns usam argumentos com base política: os EUA ainda são um país conservador e os eleitores punirão os democratas se eles se deslocarem para a esquerda. Outros dizem que a crise financeira e econômica não permite, por exemplo, reformar o sistema de saúde.

Esperemos que Obama tenha o bom senso de ignorar esse conselho.

Sobre o argumento político: se alguém duvidar de que tivemos um grande realinhamento político, seria bom que observasse o que aconteceu com o Congresso. Após a eleição de 2004, houve declarações de que entramos numa era de predomínio prolongado, talvez permanente, dos republicanos. Desde então, os democratas tiveram vitórias sucessivas, conquistando pelo menos 12 cadeiras no Senado e mais de 50 na Câmara - contando agora com uma maioria no Congresso que o Partido Republicano jamais teve em seu reinado de 12 anos.

Tenham em mente também que a eleição presidencial deste ano foi um claro referendo sobre filosofias políticas - e a filosofia progressista venceu.

A melhor maneira de destacar a importância desse fato talvez seja contrastar a campanha deste ano com a anterior. Em 2004, o presidente George W. Bush escondeu sua verdadeira agenda.

Ele concorreu basicamente como um defensor do país contra terroristas casados com gays, deixando até seus partidários confusos quando anunciou, logo após o fim da votação, que sua prioridade inicial seria a privatização da Previdência Social. Não era nisso que as pessoas achavam que estavam votando e a campanha da privatização rapidamente degenerou de um rolo compressor a uma farsa.

Neste ano, porém, Obama concorreu com uma plataforma de garantia de assistência à saúde e diminuição de impostos para a classe média, financiadas com aumento de impostos para os ricos.

O republicano John McCain acusou seu adversário de ser socialista e "redistribuidor", mas os americanos votaram nele mesmo assim. Esse é um mandato real.

E quanto ao argumento de que a crise econômica inviabilizará uma agenda progressista? Bem, não resta dúvida de que combater a crise custará muito dinheiro. Salvar o sistema financeiro provavelmente exigirá grandes despesas além dos fundos já desembolsados. E, por cima disso, precisamos urgentemente de um programa de aumento dos gastos públicos para impulsionar a produção e o emprego. O déficit orçamentário federal poderá alcançar US$ 1 trilhão no próximo ano? Sim.

Mas os manuais de economia dizem que é correto, na verdade apropriado, incorrer em déficits temporários diante de uma economia deprimida. Durante esse período, um ou dois anos no vermelho não deveriam obstruir o caminho de um plano de saúde que, mesmo que rapidamente sancionado em lei, provavelmente não entrará em vigor antes de 2011.

Além disso, a resposta à crise econômica é, em si, uma chance de avançar na agenda progressista.

Agora, o governo de Barack Obama não deveria imitar o hábito da administração Bush de transformar tudo e qualquer coisa em argumento para suas políticas preferidas. (Recessão? A economia precisa de ajuda - vamos cortar os impostos dos ricos! Recuperação? Os cortes de impostos dos ricos funcionam - então, vamos cortar um pouco mais.)

Mas seria justo a nova administração assinalar como a ideologia conservadora - a crença de que a ganância é sempre boa - ajudou a provocar essa crise. Nunca soou mais verdadeiro o que Franklin D. Roosevelt disse em seu segundo discurso de posse: "Nós sempre soubemos que o interesse próprio imprudente era má moral; agora sabemos que é má economia."

E acontece que o momento em que vivemos agora é um daqueles em que o inverso também é verdadeiro, e boa moral é também boa economia. Ajudar os mais necessitados num tempo de crise com uma expansão do seguro-saúde e do seguro-desemprego é a coisa moralmente certa a fazer. É também uma forma muito mais efetiva de estimular a economia do que reduzir os impostos sobre ganhos de capital.

Fornecer ajuda a governos estaduais e municipais em dificuldade para que eles possam manter os serviços públicos essenciais é importante para os que dependem desse tipo de assistência; é também uma maneira de evitar perdas de empregos e limitar a profundidade da recessão econômica.

Assim, uma agenda progressista séria - podem chamá-la de um novo New Deal - não só é economicamente possível, é exatamente do que a economia necessita.

Assim, o resumo da ópera é que Barack Obama não deve ouvir as pessoas que tentam assustá-lo para ser um presidente que não faz nada. Ele tem um mandato político; ele tem a boa economia do seu lado. Pode-se dizer que a única coisa que ele tem a temer é o próprio medo.

*Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia de 2008, é colunista do ?New York Times?

O Brasil e Obama


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. A partir do momento em que o presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, pôs em diversas oportunidades a Venezuela na lista dos "países bandidos", ao lado do Irã, a América Latina passou a estar presumivelmente no radar da futura administração americana, e não exatamente numa boa posição. Tudo indica que é um equívoco a ligação que o presidente Lula está fazendo, de que a eleição de Obama pode ser tida como um reflexo de um movimento maior, que teve início da América do Sul, com a eleição do próprio Hugo Chávez na Venezuela, de Evo Morales na Bolívia, e assim por diante.

Para começo de conversa, ninguém acredita que a região vá passar a ser prioritária para uma gestão que terá muito a fazer tanto no plano interno, administrando a crise econômica, quanto externamente, em especial no Oriente Médio.

O embaixador do Brasil em Washington, Antonio Patriota, no entanto, espera que o relacionamento dos dois países, que ele considera bastante vigoroso no momento, se fortaleça ainda mais.

Ele é um dos que fazem o paralelo entre a eleição de um negro nos Estados Unidos com a de Lula no Brasil, considerando que as duas eram improváveis e aconteceram como conseqüência de evoluções políticas nos dois países.

Ele vê alinhamentos possíveis entre os dois governos. Existe um alinhamento potencialmente possível entre Lula no Brasil e Obama nos Estados Unidos, especialmente devido à visão social dos dois governos.

E ironiza, dizendo que no Brasil a distribuição de renda que o governo Lula está conseguindo fazer não é considerada uma medida socializante, referindo-se indiretamente à acusação do republicano McCain ao programa econômico do presidente eleito de "espalhar a riqueza" cobrando mais impostos dos mais ricos.

Patriota também não teme que o Congresso democrata possa ser um impeditivo à melhoria das relações comerciais entre os dois países, lembrando que o memorando de entendimentos sobre os biocombustíveis foi aprovado, num assunto delicado que pode afetar potencialmente os interesses dos produtores americanos de etanol.

Entre os programas de cunho político de interesse comum, ele citou também ações contra o racismo. Brasil e Estados Unidos são os dois países com maior número de descendentes africanos, e era estranho que até agora não tivessem ações conjuntas para promoção social, lembra Patriota.

Foi criado também um grupo que reúne CEOs dos dois países, no mesmo sistema que já havia com a Índia, que se encontram periodicamente há quase dois anos.

Ele garante que o governo brasileiro não está desconfortável com as relações com os Estados Unidos, que para muitos não têm relevância política. Ao contrário, Patriota analisa que, a partir do segundo mandato, superados os problemas ocorridos na discussão sobre a Alca, foi atingida uma fase de entendimento, especialmente por causa do interesse comum nos biocombustíveis.

Patriota lembra que, na questão da energia renovável, o Brasil é um dos pioneiros do assunto, que é dominante na perspectiva do futuro governo. Quase a metade da energia produzida no Brasil tem a base em combustíveis renováveis como o etanol, enquanto o nível mínimo exigido por organismos internacionais é de 17%.

Além do mais, a grande maioria da frota de automóveis utiliza a tecnologia híbrida de etanol e gasolina. O Brasil tornou-se um parceiro estratégico dos Estados Unidos em 2007, uma categoria em que poucos países são considerados pelo Departamento de Estado: Rússia, Índia, China, Japão e Austrália.

O diálogo sobre comércio internacional passou a ser feito também em termos políticos, entre o Departamento de Estado e o Itamaraty, ao mesmo tempo em que os outros canais técnicos funcionam normalmente. Há um esforço conjunto, por exemplo, de incentivar a indústria têxtil do Haiti, como uma maneira complementar de ajudar o país a se recuperar economicamente.

Seria uma maneira de ampliar a atuação do Brasil na região, onde já comanda uma Força de Paz formada por diversos países, a pedido dos Estados Unidos e sob os auspícios da ONU.

A questão mais delicada da relação bilateral continua sendo a do livre comércio, que impediu o acordo da Alca e continua inibindo as negociações da Rodada de Doha, sendo previsível que um Congresso democrata, francamente protecionista, não facilite novas negociações.

Analistas consideram quase impossível uma reviravolta que permita haver algum tipo de acordo na questão da agricultura, já que o presidente eleito Barack Obama já se comprometeu com os agricultores americanos a não retirar os subsídios.

Aos que acusam o Brasil de ter politizado a recente negociação da rodada de Doha, preferindo não usar sua capacidade de pressão para fazer a Índia aceitar novos termos, o embaixador Antonio Patriota responde com os dados atuais do comércio bilateral, afirmando que as críticas de que negligenciamos a relação comercial com os Estados Unidos não correspondem à verdade atual.

Somos os maiores exportadores da região para os Estados Unidos, depois da Venezuela por causa do petróleo; nossa balança comercial com os Estados Unidos está crescendo mais do que a dos outros países dos Brics, por exemplo, com exceção da China; e os países que fizeram acordos bilaterais com os Estados Unidos, como o Chile, têm um comércio declinante, enquanto o nosso é crescente. (Continua amanhã)

A pedra fundamental


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O instituto da reeleição está, desde a última quarta-feira, devidamente instalado no telhado. Chegou até lá levado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado que aprovou uma emenda do senador Jarbas Vasconcelos, obrigando os governantes candidatos a um novo mandato a deixarem os respectivos cargos seis meses antes da eleição.

Pela regra atual, quem concorre ao mesmo posto não precisa tirar licença, ao contrário do exigido aos candidatos a cargos diferentes. Em 2006, por exemplo: enquanto o presidente Luiz Inácio da Silva pôde permanecer na Presidência, seu oponente, o então governador Geraldo Alckmin, precisou se afastar do governo de São Paulo.

Em tese é só uma proposta para corrigir uma suposta deformação involuntária da emenda original, na realidade um subterfúgio para facilitar a adesão de prefeitos e governadores à mudança constitucional proposta pelo PSDB em 1996, com a finalidade de permitir a reeleição de Fernando Henrique Cardoso dois anos depois.

Na prática trata-se do lançamento da pedra fundamental da execução do acordo tácito firmado entre setores majoritários do PT, PSDB e PMDB para pôr um fim na reeleição para os presidentes da República durante o próximo ano, de forma a que a sucessão de Lula se dê sob a nova regra: o eleito em 2014 teria um mandato de cinco anos sem direito a renovação.

O ideal, na cabeça do grande patrono da proposta - o governador de São Paulo, José Serra - seria acabar com a reeleição em todos os níveis.

Mas, como haverá resistências por parte de prefeitos e governadores - amplamente beneficiados pela chance de disputar um segundo mandato subseqüente -, os arquitetos do projeto ficarão satisfeitos se conseguirem acabar com a reeleição para presidente, a fim de imprimir mais velocidade à fila de pretendentes ao Planalto.

E o que tem a ver os seis meses de licença aprovados na quarta-feira com o fim da reeleição se, em princípio, parece até um gesto de aperfeiçoamento da regra em vigor?

Tudo. É a forma de começar a pôr o assunto em pauta sem alarde, sem ferir suscetibilidades, sem criar atritos, amaciando o terreno, conquistando adeptos para o debate.

A discussão é difícil e requer muita habilidade, embora os partidos envolvidos sejam os mais fortes e influentes do cenário político. O problema é que não há consenso interno em nenhum deles.

O mais unido em torno da proposta é exatamente o PSDB, o inventor da obra ora em demolição.

A única liderança importante do partido a falar contra o fim da reeleição é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Seus correligionários afirmam, no entanto, que FH só defende essa posição em público por puro constrangimento de entrar em cena como fiador de dois casuísmos: um em 1996 e outro 12 anos depois.

No PT, Lula é favorável, mas a turma mais aguerrida não vê com agrado acertos que atendam às expectativas do PSDB. Algo na base do "o que é bom para os tucanos é ruim para o PT".

No PMDB a idéia tem o apoio da maioria, a começar do presidente Michel Temer, mas conta com um adversário de peso: o governador do Rio, Sérgio Cabral, que, se não mudou de opinião, acha a proposta um enorme equívoco.

Há seis meses, quando Temer defendeu a volta do mandato único, Cabral avisou que, mesmo isolado, ficará contra. "Mexer na reeleição é arranhar a imagem do Brasil como um país de regras consolidadas, onde não se faz e acontece ao sabor das conveniências. Isso vale para a economia e vale também para a política."

Pensando bem

A pressão do PMDB e a resistência do PT em abrir mão da presidência do Senado na próxima legislatura não impõem um obstáculo intransponível entre os dois maiores parceiros da base governista.

Não é nenhum absurdo pensar que o governo acabe por interceder em favor da entrega do comando do Congresso ao PMDB, em troca do apoio ao candidato da situação à Presidência da República. A oposição, nessa hipótese, não terá como fazer concorrência ao Palácio do Planalto no leilão das boas ofertas.

Dois pássaros da envergadura das presidências da Câmara e do Senado bem seguros na mão dificilmente alguém troca pelo difuso direito de apreciar uma revoada no céu. Por mais que os oposicionistas representem melhores perspectivas eleitorais, por ora os pemedebistas se atêm objetivamente ao presente.

Aqui e agora

O ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, costumava recorrer a uma metáfora para responder às cobranças sobre as mudanças de posição do PMDB.

"Quando alguém bate na porta, ou chama ao telefone, você pergunta quem é ou quem foi?"

Isso ele dizia na época da aliança com o PSDB. Hoje, em pleno tempo de união ao PT, é possível que o ministro atribua àquela figuração um sentido muito relativo.

A burla da reforma política


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Todo começo ou fim de ano, no palco iluminado do Congresso, em Brasília, o elenco de senadores e deputados tenta exibir a reforma política, mas não passa de alguns ensaios e às vezes nem isso. Ainda agora, no apagar das luzes da temporada legislativa, líderes e candidatos ao posto de sacrifício de manter o rebanho unido movimentam-se em frenética série de reuniões, encontros, almoços, jantares e noitadas para definir os temas fundamentais de uma reforma que corrija as deficiências da rotina legislativa com o enxugamento da burocracia e outras beneméritas mudanças nos hábitos de um dos piores congressos de todos os tempos.

No menu requentado, a gororoba de sempre: financiamento público de campanha para terminar com a desigualdade de recursos dos milionários e dos ricos; a fidelidade partidária para acabar com o bailarico do troca-troca de partidos depois de cada eleição, com as suspeitas de sempre sobre a compra e venda da fidelidade a princípios e, para confeitar o bolo, um aumento nas vantagens, privilégios, mutretas e mordomias que elevam os mandatos à categoria de um dos melhores empregos do mundo.

Brasília é sempre acusada de responsável pela decadência moral do Legislativo e, por extensão, em níveis diversos, do Executivo da gastança e do Judiciário dos palácios e das equiparações de vencimentos, quando um puxa o outro pra lá e pra cá.

Um despiste que não cola. Brasília é uma maravilhosa criação de gênios, como o traçado em cruz de Lúcio Costa e as curvas sensuais com que Oscar Niemeyer enfeitou o Patrimônio da Humanidade, reconhecida pela Unesco, em palácios como o do Ministério das Relações Exteriores, que parece flutuar no lago que o circunda, da Catedral que bole com a alma de quem levanta os olhos para a abóbada que roça no céu, os palácios geminados do Senado e da Câmara.

Por que se degradou em 50 anos, com o estouro da população prevista para o máximo de 500 mil habitantes para os mais de 2 milhões, que se amontoam nas favelas que invadiram a área urbana e exibem todos os vícios do tráfico de drogas à violência da insolúvel desordem da antiga Cidade Maravilhosa?

Bem, é uma história de mais de meio século, que começa com a mudança da capital em 21 de abril de 1960, com a obstinação de JK de olho na reeleição em 1965, com a cidade em obras. As compreensíveis e justificadas resistências dos obrigados a mudar a toque de caixa foram vencidas com o tradicional jeitinho brasileiro. JK foi informado da má vontade dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a tempo de ajeitar as coisas com a construção das mansões à beira do Lago de Paranoá.

No Congresso o fuzuê assumiu as proporções de uma rebelião das famílias, inconformadas com a troca da praia de Copacabana pelo cerrado. Deu-se um jeito, que se estendeu a setores do funcionalismo público, mas que no Legislativo plantou a semente que germinou, subiu ao céu com a farra das mordomias.

Os excelentes apartamentos mobiliados e com todo o conforto para senadores e deputados foram rejeitados pela maioria dos parlamentares. Deu-se um jeito: para o senador e o deputado federal não passar o fim de semana longe da família, foi ele agraciado com as quatro passagens mensais de Brasília para o seu feudo eleitoral e com a escandalosa verba indenizatória de R$ 15 mil mensais para o ressarcimento da suas despesas. O que é um privilégio que cria uma desigualdade entre o candidato ao primeiro mandato que tem de se virar para pagar as despesas de campanha e o que se farta com o dinheiro da Viúva.

Ainda é pouco. Para desfrutar das passagens e da gratificação, a semana parlamentar foi encolhendo e hoje as sessões são de dois a três dias úteis, das terças às quintas, quando começa a revoada que entope o Aeroporto de Brasília. Nos dois períodos da estafante atividade parlamentar, de 25 de fevereiro a 30 de junho e de 1º de outubro a 15 de dezembro, com o molho de facilidades, são 15 subsídios de R$ 24.600, no total de R$ 369 mil. Ah! A verba para contratar assessores para os gabinetes dos parlamentares raspa nas nuvens de R$ 50.815, que em 15 parcelas totalizam R$ 752.250.

Ufa! Tem mais: R$ 3 mil mensais de auxílio moradia; caixa postal e telefônica, média de R$ 4.268; R$ 6 mil para imprimir discursos e textos na gráfica. Vida de parlamentar é um luxo!

O mundo respirou história nesta semana


Renato Janine Ribeiro
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A MUDANÇA chegou aos Estados Unidos, disse Obama, na primeira frase de efeito de um discurso repleto de expressões bem escolhidas para entusiasmar o povo.Quer dizer, a mudança veio de fora.

Quer dizer, os Estados Unidos estavam atrasados. Bush representava o atraso. A Europa, outros países, inclusive o nosso, escolheram a mudança antes deles. No século 19, a liberdade estendia seus braços para acolher no porto de Nova York os mal-amados do velho mundo. A "América" era pioneira. Hoje, com a eleição de seu primeiro presidente negro, os Estados Unidos recebem uma mudança cujos ventos já sopravam em outras partes.

Mais para o fim do discurso, porém, Obama retoma a crença norte-americana de que seu país é líder do mundo, um "povo eleito" moderno: "Esse é o verdadeiro talento da América -a América é capaz de mudar". Sim, a mudança tardou, mas, quando chega lá, o mundo todo muda. A mudança começou em outros países, mas é quando vence na "América" que ela ganha escala e se torna mundial.

Bush, após o 11 de Setembro, para vencer a guerra "contra o terror", rogou a seu povo que consumisse mais, não menos. O usual nas guerras é pedir poupança e sacrifícios, canhões em vez de manteiga. Bush prometeu um Eldorado, só que feito de consumo, e não de valores. Como disse Michael Mandelbaum, seu governo foi um caso único de transferência de riqueza do futuro para o presente. Bush negou tudo o que é positivo nos próprios valores conservadores -austeridade, comedimento, poupança. Dilapidou dinheiro, sangue, fé e esperança. Gastou o futuro. Hipotecou até as vidas de quem ainda não nasceu.

Não sabemos como serão os próximos anos. Obama não prometeu maravilhas. Alertou que haverá atrasos e fracassos. Implicitamente, pregou a poupança, não a dilapidação. E foi depois dessa advertência que desenvolveu sua utopia, sua esperança num país de valores.Há algo espantoso nisso. Com o avanço da campanha, a oposição entre valores da mudança e da esperança e valores da conservação e do medo foi se convertendo numa oposição entre o candidato dos valores e aquele que herdava a falta de valores.

McCain era o único candidato possível para o Partido Republicano justamente por ser o menos bushista dos republicanos. Mesmo assim, não conseguiu encarnar valores em que, seguramente, acredita. Não convenceu.

É curioso que o partido mais liberal, o dos nova-iorquinos afrescalhados que tomam "capuccino" (que George W. Bush condenou quatro anos atrás, porque não seria o da "verdadeira América"), acabasse sendo o único que sustenta valores. Porque o termo "valores" soa, com freqüência, conservador. Mas esse conservadorismo básico, que representa um compromisso com o país, com sua história, nenhum presidente dos Estados Unidos pode dispensar.

A diferença é que justamente o novo, o negro, o jovem, o candidato da internet (não a internet dos negócios, mas a da cidadania), tenha sido quem expressou os valores -e não o herói de guerra, o prisioneiro torturado no Vietnã, a derradeira reserva moral do Partido Republicano.

O simbolismo dessa vitória é duplo.

Está no fato de que os progressistas conquistaram o legado de uma preocupação ética que muitas vezes foi conservadora. As repercussões disso para a ética pública serão importantes. E também está na esperança despertada, na mobilização dos jovens, dos que votaram pela primeira vez, dos excluídos das urnas. Já em 2004 o governador Howard Dean mobilizara os jovens e usara a internet -mas não conseguiu a indicação democrata.

Dessa vez, a estratégia das "grassroots", da base mobilizada, deu certo.

Ora, quem se mexeu pela mudança não ficará parado em casa. Vai continuar participando. Vai exigir de Obama que ele aja. Não é casual a referência do novo presidente a Martin Luther King, e de seus eleitores à grande marcha dos negros em Washington, há 40 anos. É como se, finalmente, eles chegassem lá.

As pessoas respiraram a história.

Podem até se enganar, mas essa sensação se tem poucas vezes na vida -quando se tem. E ela estava presente nos Estados Unidos -e no mundo- nesta semana. Respiremos fundo. Ela pode não durar. Mas, também, pode.

RENATO JANINE RIBEIRO, 58, é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "A Ética na Política", entre outras obras.

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