segunda-feira, 15 de setembro de 2008

As armações de um delegado

Editorial
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A seqüência de revelações dos últimos dias sobre as relações subterrâneas entre a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e a Polícia Federal (PF) configura um quadro - decerto ainda incompleto - simplesmente abrumador. Nele, pesados jogos de poder se desenrolam não apenas ao arrepio da lei, mas à revelia de um governo que nunca cuidou de prevenir abusos de poder nesses organismos vitais para a segurança do Estado e a defesa do interesse público. Principalmente depois da escandalosa revelação do grampo de que foi vítima o titular do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, o que se vê é um presidente Lula tão surpreendido quanto qualquer cidadão comum a cada descalabro trazido ao conhecimento do público. Não sabia, talvez, porque preferisse não saber.

O mais grave deles, por enquanto, foi a armação ao que tudo indica arquitetada pelo delegado Paulo Lacerda, quando no comando da PF - antes, portanto, de assumir a chefia da Abin. Uma investigação sigilosa do próprio órgão, aberta no mês passado a pedido do Ministério Público, confirma que agentes e assessores policiais “inventaram” e “adulteraram” fatos para desmoralizar dois ministros do STF, o seu atual presidente, Gilmar Mendes, e o colega Sepúlveda Pertence, que deixou a Corte em agosto de 2007. No episódio mais conhecido, dias depois de Mendes conceder habeas-corpus a um dos investigados na Operação Navalha - que desarticulou um esquema de fraudes montado pela construtora Gautama -, a PF, em represália, disseminou o que sabia ser uma falsidade.

Fontes próximas do delegado Paulo Lacerda vazaram a informação de que o nome de Gilmar Mendes figurava numa lista de autoridades às quais a Gautama havia distribuído “mimos e brindes”. Agiram como se não soubessem que o brindado era um homônimo do juiz (um ex-secretário da Fazenda de Sergipe). Ainda pior foi a calúnia - que consta, como “indício”, de um relatório oficial da PF - visando a Sepúlveda Pertence: uma sentença por ele proferida em 6 de outubro de 2006, numa ação cautelar, teria sido negociada com os seus beneficiários. Na realidade, o que se desejava era solapar as chances de Pertence de suceder ao criminalista Márcio Thomaz Bastos no Ministério da Justiça (a que a PF responde).

Tendo acertado a sua saída do governo, Bastos chegou a aventar que seria substituído ou por Pertence, que havia manifestado a intenção de deixar o Supremo em breve, ou pelo então titular das Relações Institucionais, Tarso Genro, afinal escolhido. Transferido para a Abin, Paulo Lacerda manteve o padrão ético, envolvendo a agência no que o Planalto chama, eufemisticamente, “incidentes políticos”. Contando com o delegado Protógenes Queiroz - o “delegado da esperança”, cultuador dos “guerreiros da sombra” -, seu protegido na PF, ele se imiscuiu profundamente na Operação Satiagraha, como se investigações policiais fossem da alçada do serviço secreto para o qual tinha sido nomeado e que existe para prover o presidente da República de informações relevantes à gestão do Estado.

Na última quarta-feira, a bomba rebentou. Em depoimento à CPI dos Grampos, o diretor (afastado) do Departamento de Contra-Inteligência da Abin, Paulo Maurício Fortunato Filho, disse que 52 agentes do serviço foram cedidos para trabalhar na Operação Satiagraha - da própria PF trabalharam ao todo 23 funcionários. Os arapongas, apurou este jornal, participaram de grampos telefônicos e analisaram mensagens de correio eletrônico interceptadas com autorização judicial. Em suma, a Abin interferiu ativamente numa investigação que deveria correr sob segredo de Justiça. Exorbitâncias do gênero, por sinal, marcaram a trajetória do Serviço Nacional de Informações (SNI) que, sob o regime militar, se arrogou poderes de polícia judiciária.

Exposto o alcance do envolvimento espúrio da Abin na operação conduzida pelo “delegado da esperança”, como Protógenes Queiroz se imagina, o presidente Lula decidiu tornar definitivo o afastamento temporário de Lacerda e de três outros membros da cúpula da agência. A primeira decisão de Lula foi tomada depois que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, informou que a Abin havia comprado equipamentos antigrampo, mas capazes também de grampear ligações telefônicas. Resta saber se o desligamento de Lacerda abrirá caminho para o governo, enfim, controlar os seus órgãos de segurança.

A anistia

Aurélio Wander Bastos
Professor de Direito e Doutor em Ciência Política
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Anistia é um mecanismo de recuperação de direitos essenciais à convivência entre políticos dissidentes de frações vitoriosas que assumem o poder violando atividades que ameacem o seu projeto. Na recente história brasileira não tivemos uma Lei de Anistia, mas um processo cujas negociações prosseguiram-se no período que antecedeu à convocatória da Constituinte (Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985) e se concluiu com a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988. A essência destes documentos não guarda entre si divergências, mas na sua sucessão ampliam direitos no processo de abertura.

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal José Paulo Sepúlveda Pertence, quando relator no Conselho Federal da OAB do Projeto da Lei de Anistia (em julho de 1979), reconheceu que a futura Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, que retroagia a 2 de setembro de 1961, estava em frontal incompatibilidade com o próprio conceito de Anistia, afirmando que na tradição legal brasileira a Anistia não é destinada a beneficiar algumas pessoas em detrimento de outras, mas a apagar o crime. Complete-se que a anistia exige prévia punição daqueles que praticaram crimes políticos tipificados, muito embora a Lei de Anistia tenha sido promulgada sem que explicitasse o seu fundamento constitucional.

A Lei de Anistia não alcançou alguns cidadãos que tinham sofrido punições por crimes políticos, principalmente após o ano de 1968/69, restringindo-se aos atos praticados por militantes até 1968. A Lei não se referiu aos representantes de organizações estudantis, embora se referisse a representantes sindicais. Por outro lado, beneficiava àqueles que praticaram crimes políticos conexos: crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou atos praticados por motivação política. Conceitualmente, todavia, sem que haja punição judicial, não há Anistia, porque não tem o que se perdoar. O "perdão mútuo" é um "pacto" entre partes dissidentes e não ato unilateral da autoridade, o que não aconteceu exatamente no Brasil, ao contrário do pacto de Moncloa.

Esta Lei mais se destinou àqueles que foram vítimas da ação governamental impeditiva ou restritiva de direitos políticos e não àqueles que não sofreram punição pelo Estado, mas excetuou dos benefícios os condenados por crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. Neste quadro, no período do estado de segurança nacional, os fenômenos mais candentes foram a radicalização de militantes estudantis de esquerda (entre 1968/1974) e dos "bolsões sinceros, mas radicais" (após 1979).

Tendo em vista as circunstâncias da Lei de Anistia, a primeira iniciativa constitucional sobre a matéria foi a Convocatória da Constituinte, com base na Constituição de 1967/69. Esta etapa do processo, em seus artigos, trata dominantemente da questão da Anistia, e não da Constituinte, mas reconhece os direitos, dos representantes estudantis e das lideranças de entidades privadas punidas, assim como, estende os benefícios da anistia até 1979. Esta convocatória não se referiu àqueles que foram condenados por crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal, assim como não tipificou novas formas de delito.

Finalmente, a Constituição de 1988, que criou o Estado Democrático de Direito, retroagiu os prazos de Anistia para 18 de setembro de 1946 e ampliou-os até 5 de outubro de 1988, incluindo as vítimas políticas dos atos de exceção. Neste sentido, a Constituição de 1988 não tipificou nem desconheceu o requisito da punibilidade, ficando em aberto o perdão dos "bolsões radicais", segundo o presidente Geisel, e dos movimentos de esquerda que restavam judicialmente infensos.


O centenário de um discurso histórico


Paulo Brossard
DEU NO ZERO HORA (RS)

Sábado próximo registrará o aniversário da Revolução Farroupilha, mas evoca também o centenário de um discurso memorável, proferido por Assis Brasil em Santa Maria, onde se pretendia organizar o Partido Republicano Democrático. Ninguém ignora os atributos intelectuais do orador de 20 de setembro de 1908, de modo que não surpreende o quilate da oração proferida por quem se achava em plena maturidade e, além do mais, portador de variada experiência nada desprezível. Foi publicado sob o título Ditadura, Parlamentarismo, Democracia, seguido de uma versão em língua alemã e reeditado em 1927. O Senado, entre outras obras doutrinárias do estadista, inseriu o discurso de Santa Maria. Passado um século, ele não perdeu o merecimento, quando nesse entretempo tudo mudou e o Brasil conheceu dias de progresso inegável e de amarguras deploráveis.

A esse tempo, Assis Brasil, que se retirara das pugnas internas, acumulara valiosa experiência diplomática na Argentina, em Portugal e nos Estados Unidos. Nesse país enfrentou situação difícil com a entrega pela Bolívia a um sindicato anglo-americano de rico pedaço de seu território, segundo modelo praticado em África. Tanto assim, que Rio Branco, ao assumir o Ministério do Exterior, no governo de Rodrigues Alves, chamou o nosso representante em Washington para atuar no que viria a ser o Tratado de Petrópolis, que pôs termo ao caso do Acre. Sem favor, foi relevante o papel desempenhado pelo gabrielense no mundo diplomático, como também pelo gabrielense Plácido de Castro no campo da luta, tanto mais importante quando o Itamaraty defendera ponto de vista oposto.

A uma análise dos fatos ocorridos desde a adoção da República, vigorosa na crítica, mas cortês na forma, seguiu-se a glosa às teses programáticas inseridas no programa exposto, bem diferente do estilo oratório do tempo. A linguagem é simples, objetiva e cristalina, sem falar na invejável vernaculidade. Aqui e ali o epigrama espirituoso, para não dizer a graça que nunca faz mal à seriedade dos temas e à gravidade dos problemas. A meu juízo, é uma das grandes orações políticas em língua portuguesa. Nela não faltam conceitos lapidares e de viva atualidade. “Quem tem honra não precisa de honras”, diz a certa altura. São abundantes as comparações com outros países. Referindo-se ao nosso, aponta este dado, que não deixou de existir cem anos depois:

“Temos no Brasil uma população de muitos milhões de almas que não produzem nem consomem, que são, portanto, nihil na economia nacional. É a matéria inorgânica, o plasma primitivo que espera o sopro criador de uma administração bem orientada para vir tomar a seu lugar na torrente da vida e da atividade”.

Para dar um exemplo da limpidez da forma e da elegância do pensamento, ouso reproduzir o fecho do discurso centenário:

“Aconteça o que acontecer, sejam quais forem os meandros que tenha de descrever a fonte límpida que hoje começa a manar dos flancos da Serra Geral, este dorso inflexível do indômito Rio Grande, a que se reclina a gentil Santa Maria –, o tênue fio de linfa cristalina há de tornar-se caudal inexaurível onde o povo irá matar a sede da liberdade que o tortura. A democracia há de prevalecer. Não vos impressione o vigor aparente dos elementos que se lhe contrapõem.

Nenhum partido, nenhuma situação, pode jamais perpetuar-se fora da sua oportunidade. O que aí está há de cair também, ou modificar-se no bom sentido. A vida política obedece à mesma rotação, ao mesmo turbilhão eterno que domina todo universo. Como nas florestas, os velhos troncos, que já foram incomovíveis colunas de naves colossais de verdura, se abatem e restituem à terra e ao céu a substância de que se formaram e se nutriram, assim as combinações humanas cumprem o seu destino, percorrem o seu ciclo de crescimento, atividade, declínio e morte, morte que não é morte, porque os restos desagregados do que tomba vão fecundar o terreno donde a vida renasce”.

*Jurista, ministro aposentado do STF

Rupturas na ordem do dia


Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Na Bolívia, no Cáucaso, na África e até mesmo na consolidada Europa a moda é separar-se. Ao invés de juntar-se em torno de Estados sólidos e ideais humanistas, a humanidade aposta em divórcios, não agüenta a pressão para aproximações, prefere diferenciações. As tecnologias associam criaturas e entidades, as ideologias as dissociam. Ser livre, absolutamente livre, tornou-se mais importante do que ser igual. Um frenesi pela identidade percorre o mundo contemporâneo e como efeito perverso fortalece o tribalismo.

O Brasil não está infenso à praga da desunião. Messianismos agigantam os egos e, onde há egos superdimensionados, o singular tenta impor-se ao plural. Mal começada a Era da Globalização prenuncia-se a Era das trincaduras e rachas. O resultado é visível nos quatro cantos do mundo: os impulsos federativos produzidos no pós-guerra deságuam em ímpetos separatistas.

Apontada como paradigma de ordem, estabilidade e prosperidade, a Bélgica deixou de ser um ente nacional a partir de 1993. Sede da União Européia, o pequeno país-modelo torna-se progressivamente um estado bi-nacional, ou não-nacional, dividido entre valões (francófonos) e flamengos (de fala holandesa). Como são civilizados, não se guerreiam, confiam nas forças centrífugas e aguardam a cisão final, o que levou o rei Alberto II a apelar, desesperado: “Devemos inventar novas formas de conviver.”

Não menos desesperado e frustrado sentiu-se Simon Bolívar ao assistir ao desmembramento da América espanhola nas primeiras décadas do século 19. O fervor independentista e as desmesuradas ambições das novas lideranças políticas inviabilizaram qualquer movimento associativo das províncias recém-liberadas. Ganharam a liberdade e perderam a força.

A Bolívia foi, talvez, a maior vítima da fragmentação. As divisões étnicas, associadas às descontinuidades geográficas e, principalmente, ao sectarismo ideológico criaram um país retalhado em todas as direções. Seduzido pelo sonho de redimir os indígenas – aimaras e quíchuas – o presidente Evo Morales não prestou atenção às disparidades intrínsecas e preferiu abrir mão de ser o presidente de todos os bolivianos.

Ao invés de unir, exacerbou fissuras. O fantasma do secessionismo, que novamente ameaça a integridade territorial boliviana, não pode ser visto simplisticamente como tentativa de “golpe civil”. Esta figura não existe, a tomada do poder fora do calendário eleitoral só poderia fazer-se manu militari e as forças armadas do país vizinho felizmente cansaram-se de aventuras, intervenções e quarteladas.

No entanto, a Bolívia precisa ser urgentemente amparada por vizinhos dispostos a oferecer-lhe doses maciças de cola e cimento. O país precisa agregar-se, a influência bravateira de Chávez só fortalecerá seus instintos desagregadores e suicidas.

A dramática situação em nossa fronteira oeste deveria servir de reflexão para os estrategistas instalados no Planalto Central com oas suas almas massageadas pelos espetaculares resultados das pesquisas de opinião.

A esdrúxula e ilegítima cooperação entre a PF e a Abin no decorrer da Operação Satiagraha foi mantida na clandestinidade ao longo de meses e só veio a público porque certas facções extremistas resolveram sair das sombras através de vazamentos docilmente publicados na grande imprensa.

E, de repente, somos obrigados a nos defrontar com uma realidade “boliviana”: os órgãos de segurança do Estado estão em litígio, sem comando e cumprem desígnios alheios às suas funções constitucionais. O Estado de Direito, de repente, ficou capenga. A tal “firmeza da verdade” inspirada na vida do Mahatma Gandhi ao invés de produzir estados contemplativos acionou uma dinâmica irracional.

Um racha dessas dimensões, em área tão sensível, na véspera de eleições, pode produzir efeitos desastrosos. O episódio, felizmente, não foi politizado como aconteceu há quase dois anos com a divulgação do dossiê Vedoin. Mas ninguém sabe o que a nova safra de “aloprados”, livres e altamente equipados, são capazes de urdir nos subterrâneos do Estado.

» Alberto Dines é jornalista.

Em nome do filho


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Estudo do Ipea, divulgado na semana que passou, aponta que entre 1993 e 2006 aumentou o número de mulheres chefes de família, em casais com filhos, que pulou de 3,4% para 14,2%. Como se trata de pesquisa para desenhar o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça no Brasil há o risco de supor que nesses resultados estamos em face de uma melhora nas crônicas desigualdades entre mulheres e homens. No mesmo dia em que o Ipea divulgou seus dados, os jornais noticiaram que o presidente da República havia sancionado, com vetos, a lei que estende a licença-maternidade de 4 para 6 meses. Mais água, portanto, no imaginário do moinho da igualdade.

Nos dois casos há problemas ocultados pela euforia que acompanha esse tipo de informação. Que haja famílias em que o chefe deixou de ser o homem para ser a mulher não demonstra que a igualdade social tenha crescido um milímetro sequer. A organização da família aí registrada continua sendo a do consagrado modelo patriarcal que a pressupõe como uma estrutura de dominação, presente na idéia de chefe da família. Incremento na igualdade haveria se a pesquisa do Ipea registrasse a reorganização da família com base num padrão igualitário, não apenas na distribuição das tarefas do tanque e do fogão, ou na inversão da autoridade doméstica, mas sobretudo no relacionamento tanto entre homem e mulher quanto no relacionamento igualitário entre as gerações, entre os pais e os filhos. Isso, de fato, não está acontecendo na sociedade brasileira numa escala que se pudesse definir como admirável e promissora. A família ainda é uma instituição de autoridade e poder, de mando e obediência.

A persistência de um padrão iníquo de relações sociais, mesmo nos números que parecem negá-lo, reaparece nas informações e considerações sobre o trabalho infantil. A pesquisa do Ipea expõe dados relativos à participação no mercado de trabalho de meninos entre 10 e 15 anos de idade e aponta a diferença entre negros e brancos, assumindo que a injustiça social se revela no fato de que é maior a proporção de crianças negras que trabalham em relação às crianças brancas. Na verdade, o fato de que, nessa faixa etária, haja 5% mais negros do que brancos não indica que haja injustiça contra as crianças negras, mas injustiça e desigualdade contra todas as crianças, independente da cor. Se a diferença fosse zero ainda assim estaríamos em face de uma vergonhosa expressão das nossas desigualdades sociais, as crianças precocemente trabalho, tornando-se adultas antes do tempo.

O que a pesquisa do Ipea aponta não é uma mudança social, mas uma mudança no padrão da injustiça social, em conseqüência da persistência de um ordenamento arcaico das relações entre o homem e a mulher. O que se vê quando os pesquisadores agregam a essas porcentagens os dados relativos a famílias chefiadas por mulheres sozinhas. Nesse caso, famílias chefiadas por mulheres cresceram no mesmo período 1,5 vez, de 19,7% para 28,8%. Esses números estão, portanto, muito longe de indicarem algo como uma crescente emancipação da mulher, sobretudo quando se toma em conta os casos de mulheres que arcam sozinhas com a maternidade e seus desdobramentos sociais. O que temos é não uma crescente desorganização da família que persiste como modelo das relações pai-mãe-filhos, como também um claro declínio da família como núcleo da ideologia da reprodução humana e da reprodução da sociedade.

Em boa parte porque em nossa sociedade persistem fundamentos para os quais a justiça social e a igualdade não são prioritários. A querela já iniciada em torno da ampliação da licença-maternidade é bem indicativa de quanto estamos longe de um trato decente da fundamental questão social que é a da sucessão das gerações. O Brasil, mesmo em leis assim, não tem o menor apreço pela maternidade como instituição social na qual o futuro se propõe. Porque essa lei continua sendo reducionista, ao não deixar claro que a maternidade não é uma variável dependente da produção. Trata-se de um remendo, benvindo, aliás, como todo remendo em face da alternativa de coisa nenhuma.

Tanto no caso do retrato da família brasileira, que os números do Ipea desenham, quanto no caso da ampliação da licença-maternidade estamos em face de curiosíssimas indicações de que neste País os presumíveis avanços sociais são vistos sempre na ótica do prejuízo econômico que causam e não dos benefícios sociais que indicam ou acarretam. Na verdade o que importa considerar, tanto nas alterações estatísticas relativas à família quanto nas ressalvas da lei relativa aos benefícios da licença-maternidade, é a direção das alterações nas condições de nascimento e de primeira socialização das novas gerações de brasileiros. O que está em jogo, mesmo, é o tipo e grau de orfandade que esta sociedade continua impondo aos que estão chegando ao mundo. Houve um tempo em que os cientistas sociais se interessavam pelas análises de Abraham Kardiner e de Michel Duffrene sobre a chamada estrutura de personalidade básica, o resultado do lado invisível das relações fundamentais de acolhimento dos nascituros. Quando essas relações estão em crise, como indica a pesquisa do Ipea, a tendência é a de que a socialização primária das crianças fique afetada pela mutilação dos padrões apropriados relacionamento à sua integração na sociedade. Isso vai se manifestar nas alterações que sua conduta sofrerá, quando adultas, até mesmo na direção da desagregação social. Crises de ruptura social são noticiadas diariamente pela mídia, como a deterioração de valores sem os quais esta sociedade deixará de existir. A tragédia ocorrida em Ribeirão Pires, de pai e madrasta matando cruelmente dois adolescentes, que haviam aliás recorrido à chamada autoridade competente e pedido o socorro que não lhes foi dado, é um dos reflexos possíveis no processo dessa socialização primária carente na geração dos pais e também do conformismo decorrente naqueles supostamente encarregados de evitar a consumação do rompimento.


*José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de O Sujeito Oculto (Ordem e transgressão na reforma agrária), Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003; A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008) e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008).



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